versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.5 São Paulo set./out. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20142014068
A avaliação perceptivo-auditiva da fala é um importante instrumento para predizer a função velofaríngea, pois as características de fala identificadas nesse tipo de avaliação fornecem pistas sobre a dimensão da falha velofaríngea(1–3). Entre os sintomas de fala relacionados diretamente à disfunção velofaríngea (DVF), está a hipernasalidade, definida como um fenômeno perceptivo e, portanto, subjetivo, fato este que interfere na confiabilidade da avaliação perceptivo-auditiva da fala e tem sido alvo de pesquisas há muitos anos, conforme revisão realizada recentemente(4).
A fim de se garantir maior confiabilidade dos resultados de pesquisas envolvendo a fala de indivíduos com DVF, a literatura recomenda o uso de diferentes avaliadores para o julgamento perceptivo dos sintomas de fala(5,6). No entanto, um alto índice de concordância pode ser difícil de ser obtido, em função de variáveis diversas.
Considerando a possibilidade de que o índice de concordância entre diferentes avaliadores no julgamento dos sintomas de fala pode influenciar a previsão do fechamento velofaríngeo, definiu-se a proposta do presente estudo.
Este trabalho buscou investigar a influência do índice de concordância entre diferentes avaliadores no julgamento perceptivo da hipernasalidade para a previsão do fechamento velofaríngeo.
Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (ofícios n° 360/2010 e n° 254/2012 SVAPEPE-CEP) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A concordância interavaliadores quanto ao julgamento da hipernasalidade foi obtida por meio do coeficiente Kappa.
Dois modelos de regressão logística foram desenvolvidos com o objetivo de verificar a possibilidade de se prever o fechamento velofaríngeo utilizando as seguintes características de fala: fechamento velofaríngeo (adequado, marginal e inadequado) determinado pela técnica fluxo-pressão, grau da hipernasalidade (ausente, leve, moderado, grave) e a presença ou ausência de emissão de ar nasal e ronco nasal aferidos, perceptivamente, por três fonoaudiólogas com experiência de 12 anos, em média, na avaliação perceptivo-auditiva da fala em pacientes com fissura labiopalatina. No primeiro modelo, foram utilizadas 100 amostras de fala com índice de concordância moderado para a hipernasalidade (coeficiente kappa: 0,41). No segundo modelo, foram utilizadas 43 das 100 amostras de fala que obtiveram concordância total entre as avaliadoras. Posteriormente, as proporções de acertos referentes a cada modelo foram comparadas por meio do teste do c2 a um nível de significância de 5%.
A Tabela 1 mostra o número de amostras, previsto de acordo com o modelo logístico em função da real classificação do fechamento velofaríngeo (FVF) determinado pela técnica fluxo-pressão.
Tabela 1 Distribuição das 100 amostras de fala prevendo o fechamento velofaríngeo, a partir do grau de hipernasalidade e da presença ou ausência de emissão de ar nasal e ronco nasal
FVF real | Previsão do FVF segundo o modelo | Total | |
---|---|---|---|
FVF adequado | FVF inadequado | ||
FVF adequado | 42* | 3 | 45 |
FVF marginal | 7 | 13 | 20 |
FVF inadequado | 12 | 23* | 35 |
Total | 61 | 39 | 100 |
*Acertos do modelo
Legenda: FVF = fechamento velofaríngeo
De acordo com esse modelo, elaborado a partir de 100 amos-tras que obtiveram índice de concordância moderado entre as avaliadoras no julgamento perceptivo do grau da hipernasali-dade, 65 foram previstos na categoria correta. No entanto, o FVF marginal não foi previsto.
A Tabela 2 mostra o número de previsões de acordo com o segundo modelo logístico em função da real classificação do FVF, utilizando 43 amostras que obtiveram índice de concordância perfeito entre as avaliadoras no julgamento perceptivo do grau da hipernasalidade.
Tabela 2 Distribuição das 43 amostras de fala prevendo o fechamento velofaríngeo em função da hipernasalidade, emissão de ar nasal e ronco nasal
FVF real | Previsão do FVF segundo o modelo | Total | ||
---|---|---|---|---|
FVF adequado | FVF marginal | FVF inadequado | ||
FVF adequado | 21* | 1 | 0 | 22 |
FVF marginal | 4 | 5* | 2 | 11 |
FVF inadequado | 2 | 3 | 5* | 10 |
Total | 27 | 9 | 7 | 43 |
*Acertos do modelo
Legenda: FVF = fechamento velofaríngeo
De acordo com esse modelo, 31 das 43 amostras foram classificadas corretamente. Esse modelo previu o FVF marginal.
Embora a comparação entre os dois modelos não tenha mostrado diferença (p=0,526), verificou-se que o segundo modelo composto pela concordância total entre as avaliadoras quanto ao grau de hipernasalidade mostrou proporção de acerto 7% maior do que o primeiro modelo, além de ter conseguido prever o FVF marginal.
É consenso na literatura que a avaliação perceptivo-auditiva da fala é o principal meio pelo qual o fonoaudiólogo pode identificar as alterações de fala, classificar a sua gravidade e, assim, definir a conduta e avaliar a efetividade dos tratamentos realizados(7–11). Contudo, trata-se de um método subjetivo e, portanto, sujeito a erros e influências de vários fatores. A principal influência está relacionada ao padrão interno de cada ouvinte, ou seja, as referências próprias de cada avaliador que diferem de um para o outro. Isso levou clínicos e pesquisadores a buscar estratégias para aperfeiçoar a avaliação perceptiva, a fim de melhorar a sua confiabilidade. A principal mudança foi a utilização de gravações de amostras de fala, o que possibilitou o julgamento da fala por mais de um ouvinte. A partir daí, vários estudos mostraram a importância da presença da análise dos sintomas de fala por diferentes avaliadores e a obtenção da concordância entre eles.
Especificamente no que se refere à hipernasalidade, um alto índice de concordância entre diferentes avaliadores é difícil de ser obtido. Isso porque se trata de um fenômeno perceptivo que é influenciado por vários fatores, como, por exemplo, a experiência do ouvinte que determina o padrão interno de cada ouvinte(12). Ainda que os avaliadores consultados apresentassem experiência de 12 anos, em média, na avaliação da fala na presença da fissura palatina e, ainda, formação acadêmica semelhante no que se refere ao processo de avaliação da fala, tendo recebido treinamento no mesmo centro de referência, diferenças relativas aos padrões internos de cada avaliador podem ser esperadas. Especula-se que essa tenha sido a razão para a obtenção do índice moderado de concordância quanto ao grau de hipernasalidade verificado no primeiro modelo, resultado também obtido em outros estudos(13–15). Isso, provavelmente, foi o que levou à reduzida porcentagem de acertos mostrados nesse modelo, tornando questionável a confiabilidade da previsão do FVF. Assim, elaborou-se um segundo modelo logístico com base nas 43 amostras cujo índice de concordância entre os avaliadores no julgamento da hipernasalidade foi perfeito. Nesse caso, houve um aumento da porcentagem de previsões corretas do FVF baseado nas características perceptivas da fala. Além disso, nesse segundo modelo, o FVF marginal foi previsto, o que não havia ocorrido no modelo anterior. Esse resultado foi decorrente da concordância total dos avaliadores quanto ao grau de hipernasalidade, mostrando, portanto, a influência do índice de concordância entre diferentes avaliadores quando parâmetros subjetivos de fala estão sendo julgados, especialmente aqueles que envolvem a percepção do ouvinte.
O alto índice de concordância entre diferentes avaliadores quanto ao grau de hipernasalidade influenciou positivamente a previsão do FVF. Isso significa que, além do julgamento perceptivo feito por mais de um ouvinte, na avaliação perceptivo-auditiva das características de fala, é essencial o uso de estratégias que garantam altos índices de concordância entre eles, a fim de melhorar a confiabilidade dos seus resultados.