versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 23-Set-2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190042
O envelhecimento da população é um acontecimento inquestionável e que se amplia com o passar dos anos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)1, estima-se que em 2020 o número de pessoas com idade superior a 60 anos irá superar o número de crianças com até 5 anos e, em 2050, a população com mais de 60 anos chegará a 2 bilhões de indivíduos, que representará um quinto da população do planeta. Nesse sentido, um dos desafios da saúde pública global será enfrentar os problemas relacionados com a dor crônica (DC), tendo em vista que é uma das condições mais comuns encontradas em pacientes com idade ≥65 anos2.
A DC está relacionada com uma incapacidade substancial de mobilidade esquiva de atividade, quedas, depressão e ansiedade, comprometimento do sono e isolamento2,3. Contudo, esses efeitos negativos não se restringem apenas ao paciente, mas também englobam situações que perturbam as relações familiares e sociais, além de alterar os papéis que esses indivíduos se reconhecem na sociedade4.
Diante disso, observa-se que a DC vai além de um evento sensorial, pois também compreende elementos afetivos (respostas emocionais à dor), cognitivos (atitudes e crenças sobre a dor), comportamentais (p. ex.: comportamentos manifestados em resposta à dor por pacientes, familiares ou cuidadores), bem como componentes sensoriais (p. ex.: qualidade, localização e padrão temporal)5.
As distinções nas pesquisas publicadas em relação à população, aos métodos e às definições, entretanto, dificultam a comparação entre estudos e impossibilita determinar a prevalência definitiva de dor em idosos3. Esse fato cria obstáculos para que os profissionais da área da saúde consigam desenvolver competências para planejar avaliações e programas para gerenciar a DC em pacientes idosos.
Com relação à avaliação do idoso com DC, a literatura fornece pouca informação, visto que é preconizada uma avaliação abrangente com medidas multidimensionais, instrumentos para verificar as atividades de vida diária, coleta de dados de familiares/cuidadores, constatação de atitudes e crenças sobre a dor, revisão de comorbidades e fármacos, entre outras. Nesse contexto, há ainda limitações importantes baseada em evidencias2.
O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da DC na funcionalidade e na qualidade de vida (QV) de idosos.
Trata-se de estudo descritivo, transversal, exploratório de abordagem quantitativa. A amostra analisada foi de 20 pacientes (grupo teste ‒ GT), maiores de 60 anos. A estimativa de tamanho da amostra considerou um nível de confiança de 95%, erro máximo desejado de três pontos e um desvio padrão médio, estimado em estudo piloto, igual a 12,5 pontos, totalizando uma amostra mínima de 20 indivíduos. Para os dados comparativos foram avaliados pelos mesmos instrumentos 20 pacientes (grupo controle ‒ GC) com idade inferior a 60 anos e que também foram atendidos na Clínica da Dor. Foram excluídos pacientes que não concordaram em participar do estudo através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e aqueles com déficits sensoriais e limitantes triados pelo teste MiniMental6.
Os instrumentos utilizados foram: entrevista semiestruturada contendo questões sobre aspectos sensoriais, impacto emocional, impacto funcional, sono, atitudes e crenças, enfrentamento, tratamento, expectativa e objetivos e, recursos de apoio, além da obtenção de alguns dados pessoais. Além disso, para avaliar a QV foi utilizado o questionário World Health Organization Quality of Life Assessment for Older Adults (WHOQOL-OLD)7, contendo 24 questões divididas em seis domínios, que compreendem habilidade sensorial, autonomia, atividades passadas, presentes e futuras, participação social, morte e o morrer, e intimidade. Para a avaliação da capacidade funcional da vida diária foi utilizada a Escala de Atividades Física e Instrumental da Vida Diária (OARS)8, que analisa a capacidade de realizar as atividades de forma autônoma, com auxílio ou totalmente incapaz, pontuadas de zero a 2, que é escalada de zero a 14 para cada atividade, sendo que quanto menor a pontuação, maior é a dependência do indivíduo. A dor, por sua vez, foi avaliada pelo Inventário Breve de Dor9 (IBD). Esse instrumento incluiu 15 itens, subdivididos em duas partes: a primeira avalia a intensidade da dor (8 itens), e a segunda avalia a interferência da dor em aspectos da vida (7 itens): habilidade para caminhar, sono, trabalho, relacionamento com outras pessoas e aproveitamento da vida em uma escala numérica de zero (sem dor) a 10 (pior dor possível).
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FAMERP (parecer n° 2.647.844) e realizado no Ambulatório da Clínica da Dor, Hospital de Base (FUNFARME/FAMERP).
Todos os participantes (GT e GC) foram submetidos a uma única avaliação e os dados obtidos foram inseridos em planilhas no programa Excel. Toda a análise estatística foi realizada com nível de significância = 0,05. Para a realização das comparações entre ambos os grupos foi utilizado o teste Mann-Whitney, visto que os dados não são paramétricos, e para as correlações foi utilizada a Correlação Linear de Pearson.
As características sociodemográficas das amostras estudadas são apresentadas na tabela 1.
Tabela 1 Características sociodemográficas dos pacientes de ambos os grupos
Variáveis | Grupos | n | Média e DP | % |
---|---|---|---|---|
Idade | GT GC |
20 20 |
66,35±6,25 49,45±7,65 |
|
Sexo | GT GC |
20 20 |
Feminino - 30 (n=6) Feminino - 50 (n=10) |
|
Escolaridade | GT GC |
20 20 |
Analfabeto - 5 (n=1) Fundamental incompleto - 35 (n=7) Fundamental completo - 15 (n=3) Médio incompleto - 10 (n=2) Médio completo -15 (n=3) Superior incompleto - 0 Superior completo - 20 (n=4) Analfabeto - 0 Fundamental incompleto - 40 (n=8) Fundamental completo -15 (n=3) Médio incompleto - 10 (n=2) Médio completo - 25 (n=5) Superior incompleto - 5 (n=1) Superior completo - 5 (n=1) |
|
Situação laboral | GT GC |
20 20 |
Inativo - 95 (n=19) Inativo -100 (n=20) |
GT = grupo teste; GC = grupo controle.
Com relação aos aspectos sensoriais no GT, 40% (n=8) relataram diminuição da acuidade visual e 32% (n=6) de perda auditiva. Todos os idosos deste grupo citaram declínio das habilidades físicas e de saúde que impactam emocionalmente suas vidas.
Com relação ao sono, 57,5% (n=11), no GT referiram qualidade do sono ruim, enquanto 33,3% (n=7) do GC relatam o mesmo (p<0,05).
No GT, 65% (n=13) creem que terão sempre a dependência do fármaco e a atitude mais frequente de 55% (n=10) é de que a dor estimula o repouso e a redução das atividades.
Quanto ao enfrentamento, no GT, 20% (n=4) mencionaram a música, 35% (n=7) rezar, 15% (n=3) isolar-se, 10% (n=2) conversar,10% (n=2) alongar-se e 10% (n=2) distrair-se.
Nos grupos estudados, os diagnósticos apresentados foram DC relacionada a doenças osteoarticulares (n=8), neuropatia diabética (n=6), síndrome dolorosa após acidente vascular encefálico (n=6), polimialgia reumática (n=6), distúrbios musculoesqueléticos (n=8), outros (n=6).
Quanto à análise das variáveis relacionadas com a QV obtida pelo WHOQOL-OLD, as médias para cada domínio e a média geral podem ser observadas na figura 1.
Figura 1 Média dos escores dos domínios relacionados ao questionário de qualidade de vida pelo WHOQOL–OLD em ambos os grupos GT = grupo teste; GC = grupo controle.
A análise mostrou que houve diferença estatística significante (p<0,05) entre os domínios de habilidades sensoriais (p=0,002), autonomia (p=0,001) e intimidade (p=0,023) demonstrando que o GT apresentou piores valores que o GC.
O GC mostrou-se com maiores preocupações, inquietações e temores sobre a morte e morrer do que o GT, com diferença significativa (p=0,038).
Em relação à capacidade funcional para as atividades básicas da vida diária, obtida pela escala de “OARS”, a média das pontuações pode ser observada na tabela 2. Em relação às atividades instrumentais, 70% (n=14) dos idosos referiram ser incapaz de fazer limpeza e arrumação de casa, enquanto 15% (n=3) alegaram precisar de alguma ajuda e 15% (n=3) realizam a tarefa sem ajuda. Quando questionados sobre as atividades como a de realização de compras, 25% (n=5) se consideraram incapaz de fazê-las, 45% (n=9) necessitam de alguma ajuda e 30% (n=6) realizam sem nenhuma ajuda. Nas avaliações das atividades do âmbito físico, 70% (n=14) dos idosos revelaram que necessitam de ajuda para se deitar e levantar da cama enquanto 30% (n=6) conseguem fazer sem qualquer ajuda ou apoio.
Tabela 2 Média das pontuações da escala de atividade física e instrumental da vida diária de OARS
Domínios | Grupos | n | Média e DP | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Atividade instrumental de vida diária | GT | 20 | 8,65±2,98 | 0,045* |
GC | 20 | 10,8±2,71 | ||
Atividade física da vida diária | GT | 20 | 11,5±1,53 | 0,481 |
GC | 20 | 11,7±1,81 |
GT = grupo teste; GC = grupo controle;
*p<0.05 = diferença estatisticamente significativa (teste Mann-Whitney);
OARS = escala de atividades física e instrumental da vida diária.
Quando se perguntou se já tiveram problemas em conseguir chegar a tempo ao banheiro, 70% (n=14) apontaram que sim e 30% (n=6) apontaram que não.
Na tabela 3, pode ser observada a média dos dados obtidos para os diversos parâmetros na avaliação do nível de dor entre os grupos pelo Inventário Breve da Dor (IBD).
Tabela 3 Análise dos dados do Inventário Breve da Dor
Parâmetros | GT Média e DP (n=20) |
GC Média e DP (n=20) |
Valor de p |
---|---|---|---|
Intensidade da dor | 9,1±1,23 | 8,6±2,26 | 0,048* |
Interferência da dor em atividades em geral | |||
Humor | 6,2±3,50 | 7,85±1,76 | 0,250 |
Habilidade de caminhar | 7,2±3,60 | 7,15±3,33 | 0,942 |
Trabalho | 8,8±2,44 | 9,3±1,79 | 0,662 |
Relacionamento com outras pessoas | 6,1±3,40 | 5,45±3,13 | 0,490 |
Sono | 7,6±2,95 | 7,9±1,65 | 0,653 |
Habilidade de apreciar a vida | 7,2±2,90 | 6,5±3,05 | 0,430 |
GT = grupo teste; GC = grupo controle;
*p<0.05 = diferença estatisticamente significativa (teste Mann-Whitney).
Por meio da Correlação de Spearman foram realizadas comparações entres os dados de QV com os dados das atividades instrumentais das escalas de dor e das interferências que a dor ocasiona nas atividades dos idosos. Tendo como parâmetro p<0,05, pode-se observar que houve diferenças significativas quando analisada a QV com atividade instrumental de vida diária (AIVD) (R=0,4861) e atividade física da vida diária (AFVD) (R=0,4946). Quanto à correlação dor versus QV resultou em diferença estatística significativa apenas a de intensidade fraca (r=0,5863). Quando correlacionadas a dor intensa e moderada não se observou correlações significativas (r=0,3351 e ‒0,2143, respectivamente).
Em relação à interferência que a dor possui na QV, em alguns aspectos houve significância nos âmbitos de atividade geral (R=-0,5955), trabalho (R=-0,6486) e relacionamento pessoal (R=-0,6455).
Nos demais aspectos: humor, habilidade de caminhar, sono e habilidade de apreciar a vida, não foram encontradas correlações. Outra correspondência observada quando analisada foi a QV com o local de dor dos pacientes (R=-0,4549).
Observou-se na amostra que houve predomínio do sexo masculino (70%). Esse fato pode estar relacionado com uma desvalorização do autocuidado e da saúde10. Quanto à escolaridade dos idosos, 20% (n=4) possuíam nível superior completo, o que permitiu observar que, assim como no estudo de Miranda e Banhato11, houve aumento da população idosa com maior conhecimento acadêmico12. Entretanto, neste estudo pode-se observar que mesmo com melhor escolaridade, a DC teve grande influência negativa na QV da população estudada.
Ao analisar os dados de QV dos idosos pelo questionário WHOQOL-OLD, observou-se que houve diferenças estatísticas nos domínios de habilidade sensorial, autonomia, intimidade e morte e morrer, sendo este último mais prevalente no GC.
No âmbito da autonomia e intimidade, com o passar da idade, as pessoas tendem a necessitar de maior ajuda, seja de familiares ou de cuidadores. Nesse sentido, as formas imperativas tendem a se sobressair, não sobrando espaço para a negociação com os desejos que os idosos possuem, ou seja, a liberdade de tomar decisões sobre a sua vida acaba se tornando cada mais reduzidas13, podendo ocasionar, até mesmo, uma perda de autoestima14. Isso acarreta que o grupo social de maior idade apresente piores resultados, como observado na pesquisa, quando comparado com uma população adulta jovem. Além disso, a diferença entre os grupos quanto à habilidade sensorial pode ter correspondência com a regressão dos sentidos com o passar da idade, sendo a perda auditiva e visual as mais mencionadas15.
Cavazzana et al.16 relataram que o funcionamento sensorial prejudicado afeta a QV das pessoas idosas ao influenciar o modo como experimentam o ambiente e reagem a estímulos e limitam as atividades sociais - fatos que podem levar ao isolamento e à depressão.
Por outro lado, os grupos abaixo de 60 anos apresentaram maior preocupação em relação ao domínio de morte e morrer. Esse fato pode estar relacionado à ocorrência do grupo de 35 a 60 anos apresentar maiores índices de ansiedade e depressão que prejudicam a QV17. Diante disso, pode-se pressupor que esses aspectos emocionais e de saúde emocional têm grande influência nesse tipo de pensamento.
Um estudo recente18 referiu que pacientes adultos jovens e adultos, com doenças hematológicas e DC, experimentaram sofrimento psicológico, vivendo com incerteza futura em relação à sua cura e medo da morte, afetando assim negativamente a QV. Assim, neste estudo, os autores sugeriram a necessidade de intervenções psicológicas específicas para a idade, planejadas para lidar com esse medo.
Ao analisar a QV total, pode-se observar diferença estatística entre os grupos analisados (p=0,008), visto que a média geral do questionário do GT foi de 53,55 enquanto do GC foi 56,98. Logo, percebeu-se que houve uma transformação nas condições sociais, psicológicas e físicas dos idosos com o passar da idade, prejudicando, assim, o seu bem-estar.
Ferretti et al.19 referiram que a dor interfere na percepção que cada pessoa tem de sua vida e, devido a esse fato, requer ações adequadas visando o bem-estar e controle, a redução das queixas dolorosas para melhorar a capacidade funcional, a QV e desenvolver estratégias preventivas que ajudem a melhorar a saúde desses indivíduos18.
Na avaliação de “OARS”, obteve-se diferença entres os grupos na AIVD. Tal informação está de acordo com outra pesquisa19, pois as atividades avaliadas, tais como ir a lugares distantes que exigem tomar condução ou, fazer compras, exigem uma grande integridade física e cognitiva. Concluiu-se então que, a perda progressiva dessa integridade acarreta maior necessidade de ajuda ou até mesmo desinteresse em realizar algumas tarefas.
Contudo, a dor também acaba sendo um parâmetro para a avaliação da QV dos idosos, pois muitas vezes estimula situações incomodas e limitantes20. Assim, a análise da intensidade de dor acaba sendo fundamental para averiguar a sua influência no modo de vida do paciente.
A população de maior idade apresenta maior intensidade de dor21,22, que é observada no estudo, já que a média de dor do grupo dos acima de 60 anos se enquadra nas dores de nota máxima, enquanto, o GC, abaixo de 60 anos, enquadra-se nas dores moderadas, que são mais fracas se comparadas com a anterior. Além dessa alta escala de dor, pode-se observar que os idosos apresentam um tempo médio de dor muito grande (8,75±4,59 anos), fazendo com que o índice de pacientes com DC seja muito elevado, assim como em outros estudos21,23. A ausência de diferença estatística entre a interferência da dor para diversas atividades entre os grupos é decorrente de que dor tende a ser limitante para qualquer pessoa24. Ou seja, independentemente da idade, a dor tem interferência negativa na realização de tarefas, como andar, se relacionar, trabalhar, entre outros.
Dessa forma, é necessária a avaliação dos componentes físicos, psicológicos, história pessoal, aspectos sociais, crenças para que todos os profissionais entendam como o indivíduo percebe sua dor e se adapta a ela.
A partir deste estudo pode-se inferir que a DC teve influência negativa na QV da população idosa e afeta a funcionalidade e a autonomia desses indivíduos.