versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.5 Rio de Janeiro 2019 Epub 20-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00048419
No dia 25 de janeiro, às 12h28min, a cidade de Brumadinho, Minas Gerais, Brasil, com 39.520 habitantes, distribuídos na extensão territorial de 639,434km² e com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de 0,7047 1, localizada na Região Sudeste do Brasil, foi gravemente atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério da empresa Vale, nominada de “Mina Córrego do Feijão”, atingindo 703 pessoas diretamente no local do desastre.
Ao fim do primeiro mês, 395 pessoas foram localizadas e mais de 300 vieram a óbito, sendo que destas, mais de 100 não tiveram seus corpos encontrados ou reconhecidos, conforme dados da Defesa Civil Estadual de Minas Gerais 2. A onda de lama e rejeito de minérios atingiu em poucos segundos a área administrativa da empresa, a comunidade da Vila Ferteco e a Pousada Nova Estância. No momento do desastre a economia do município tinha como principal pilar de sustentação a mineração 3, sobretudo pela atuação da empresa Vale S.A.
Podem ser destacados alguns fatores de impacto na saúde que identificamos nesse primeiro mês junto às equipes de gestão, atenção primária e secundária do Sistema Único de Saúde (SUS) de Brumadinho para a saúde mental dos afetados: a magnitude do desastre, o número de óbitos e desaparecidos, a destruição de casas e espaços públicos, bem como a exposição direta e indireta da população e equipes de socorro em geral à lama, água e poeira contaminadas por metais pesados, a destruição do ecossistema, particularmente a contaminação do Rio Paraopeba, que inviabilizou seu uso para o consumo humano ou animal para irrigação, pesca, banho, entre outros danos diretos e indiretos àqueles que se beneficiavam do uso da sua água. Ressalta-se ainda o impacto sociopolítico, cultural e econômico desse desastre, uma vez que a economia da cidade está relacionada à mineração.
De acordo com os fatores antes mencionados, pode-se considerar que o impacto psicossocial e de saúde mental desse evento confere implicações díspares a toda a população presente no município, incluindo as equipes externas de ajuda humanitária, voluntários e trabalhadores presentes na fase de resposta 4. Nesses termos, este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão crítica com base no relato de experiência de uma das autoras, valendo-se de sua participação na articulação da estratégia de saúde mental e atenção psicossocial juntamente às equipes de gestão e atenção dos três entes federados responsáveis pela resposta na cidade de Brumadinho, bem como na condução das capacitações em atenção psicossocial e saúde mental pós-desastres junto aos trabalhadores que estiveram na linha de frente do cuidado do SUS.
Para fins de análise dessa experiência, foram utilizadas pesquisas (inter)nacionais, relatórios técnicos, guias e protocolos de organizações humanitárias especializadas em desastres, a fim de compreender o impacto psicossocial e de saúde mental desse evento na população presente no município, incluindo as equipes externas de ajuda humanitária, voluntários e trabalhadores que participaram da fase de resposta 4.
Faz-se importante compreender o desastre com base no contexto sociopolítico e cultural em que ele está inserido. Nesse sentido, ao nomear o rompimento da barragem de rejeitos da Vale como “desastre” consideramos as variáveis físicas, psíquicas, sociais, políticas, econômicas, culturais e outras que possam estar implicadas no processo de emergência e manutenção deste.
No que tange especificamente à atenção psicossocial e saúde mental, os desastres são entendidos como “(...) interrupções graves do funcionamento cotidiano de uma comunidade que acarretam perdas humanas/materiais/econômicas/ambientais que excedem a capacidade da sociedade afetada fazer frente à situação, por meio de seus próprios recursos. (...) provocam destruição material significativa e desorganização social pela destruição ou alteração das redes funcionais” 5 (p. 4). Podendo ainda “(...) provocar transtornos psicossociais para a população afetada; muitas vezes, mais graves que os danos físicos, e perduram no tempo se não forem bem manejados” 6 (p. 8).
Em desastres de grandes proporções a população local tende a ser impactada de formas díspares e subdimensionadas 7, visto que muitas reações, sintomas e consequências psicossociais e de saúde mental confundem-se com adoecimentos e reações biológicas e culturais, requerendo tipos de suportes distintos. No que tange às reações humanas imediatas é possível acompanhar as reações mais esperadas na linha do tempo da Figura 1.
Cabe lembrar que essas reações imediatas, que iniciam no marco zero de um desastre e duram em torno de 72h, tendem a ser intensas, abruptas, imprevisíveis e incontroláveis para aqueles que o vivenciam ou testemunham, bem como provocam sentimentos intensos de medo, horror e impotência, características estas que tendem a desestabilizar a saúde mental, perturbando crenças e valores da população afetada, bem como sua relação com o meio onde vivem e suas relações socioafetivas.
Particularmente nesse evento analisado, um dos agravantes à saúde mental dos afetados deve-se ao fato de que a maior parte das vítimas fatais trabalhava na mineradora onde a barragem rompeu, confrontando aqueles que sobreviveram com a perda de uma ampla gama de amigos, colegas de trabalho e a fonte de emprego e renda. Tais características são significativas por alterarem as relações socioafetivas da comunidade, ofertando um grande potencial de desenvolver transtornos psicopatológicos a médio e longo prazos.
Ressalta-se que o impacto gerado em um evento dessa natureza está diretamente relacionado a fatores como resiliência e características socioculturais de enfrentamento do sofrimento, ferramentas psíquicas, rede socioafetiva, bem como às estratégias e políticas de cuidado em atenção psicossocial e saúde mental a serem desenvolvidas a curto, médio e longo prazos 4,8.
Durante as supervisões de acompanhamento dos trabalhadores, estes relataram que após as primeiras 72h até o fim do primeiro mês as reações psicológicas mais frequentes expressas pela população usuária do SUS municipal foram: tristeza, choro frequente, humor deprimido, pesar, ansiedade, medo, irritabilidade, raiva, culpa, desorientação, reações de dissociação, crises de ansiedade, pânico, labilidade emocional e tentativas de suicídio, na maior parte dos casos por uso de benzodiazepínicos. Foi perceptível também o aumento no consumo de álcool, benzodiazepínicos e conflitos interpessoais e situações de violência.
No que concerne às reações físicas, elencaram como recorrentes: cansaço intenso, perda de apetite, insônia e dores inespecíficas. Levando em conta essas premissas, objetivou-se estruturar uma estratégia que contemplasse a demanda vigente, buscando identificar, mobilizar e fortalecer as habilidades e capacidades dos afetados, comunidades e população adstrita ao território.
Nesses termos, com o passar dos meses, estima-se que a maior parte da população afetada consiga restabelecer-se do impacto psicossocial do evento. Entretanto, ainda que a maior parte da população afetada não venha a desencadear transtornos psicopatológicos a médio e longo prazos, o número de pessoas que demandarão auxílio específico de atenção psicossocial e saúde mental pode chegar a centenas, o que requer uma provisão dos serviços de saúde e uma estratégia específica para acompanhar estes casos que extrapolam as situações de rotina.
Por sua vez, no que concerne ao impacto psicossocial e de saúde mental nos trabalhadores de saúde que estiveram na primeira fase de resposta, é importante lembrar que a maior parte dos trabalhadores da rede municipal de saúde perdeu pessoas próximas ou mantinha relações socioafetivas com pessoas que tiveram perdas diretas. Ainda que enlutados com um número expressivo de perdas humanas, materiais e sociogeográficas, o processo de trabalho exigiu desses trabalhadores uma carga horária mais extensa e estressante que a habitual, com longos períodos ininterruptos de trabalho e ausência prolongada de informações sobre a toxicidade da lama e suas consequências.
Trabalhar nessa primeira fase da resposta fez com que muitos profissionais fossem confrontados com situações que excederam suas rotinas de trabalho, desencadeando em muitos deles reações de estresse agudo, irritabilidade, humor depressivo, envolvimento excessivo ou comportamento improdutivo, ou ainda, manifestando reações cognitivas como: dificuldade de concentração e na tomada de decisões.
Destaca-se que a prolongada exposição a situações de desastre e estresse intenso, particularmente para aqueles trabalhadores que não são emergencistas, mas que no momento do desastre foram impelidos a trabalhar nestes moldes, podem desenvolver reações similares a daqueles que foram afetados diretamente, reagindo com: tristeza, disforia, fadiga, dificuldade de concentração, ansiedade, culpa, raiva, e, a médio e longo prazos, podendo ainda desencadear processos traumáticos 8.
A fim de conformar uma estratégia de saúde mental e atenção psicossocial pós-desastre, utilizou-se como base o Marco de Sendai 9, bem como os guias e protocolos da Organização Mundial da Saúde para situações de desastre 10,11, as políticas públicas regulamentadas dos três entes federados 12,13,14,15,16 e as orientações do Conselho Federal de Psicologia 17 para as intervenções em desastres, e também considerou-se as especificidades da população afetada.
Como público alvo dessa estratégia, considerou-se as equipes de saúde do SUS, para que as mesmas fossem sensibilizadas sobre como elaborar estratégias psicossociais e de saúde mental para atender à população de Brumadinho, bem como para que os profissionais identificassem sofrimento psíquico na população diretamente atendida, além de suas próprias equipes. Foram capacitados ainda socorristas, voluntários e trabalhadores que estiveram em contato direto com a lama.
Inicialmente, foram mapeados todos os dispositivos de saúde pública do município, apresentando: 14 unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF), comportando em cada equipe: médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários e, em algumas delas, equipes ampliadas contavam com odontólogos e técnicos de saúde bucal.
O município também contava com 22 pontos de apoio para as equipes da ESF, dois deles com equipes compostas por: enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários, médicos generalistas e psiquiatras alguns dias por semana, durante a primeira fase de resposta ao desastre (primeiros 30 dias). Existiam também duas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), compostas por: psicólogas, fonoaudiólogas, educador físico, terapeuta ocupacional, fisioterapeutas, assistentes sociais e nutricionistas.
Como um fator facilitador da conformação da estratégia, aponta-se o fato de que o município tinha no momento do desastre 100% da população coberta pela ESF, fato este que auxiliou na implantação de uma estratégia de atenção psicossocial e saúde mental rápida e compatível com a demanda da população.
Os dispositivos de saúde de média complexidade, localizados principalmente na área urbana, eram: Policlínica, Clínica de Fisioterapia, Centro de Atenção Psicossocial, Centro de Atenção Psicossocial Infantil, Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas, Núcleo de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (NUPIC), Unidade de Pronto Atendimento (UPA) funcionando 24 horas e um hospital de pequeno porte (com 4 leitos psiquiátricos).
Após o mapeamento dos dispositivos de saúde do SUS municipal, buscou-se garantir que os atendimentos de rotina não fossem interrompidos e, ao mesmo tempo, por intermédio de equipes adicionais, os casos emergentes, após o desastre, também fossem atendidos. Na operacionalização desse modelo foi necessária a extensão do horário de atendimentos, permitindo o funcionamento das unidades básicas de saúde durante os finais de semana.
Considerou-se ainda que mesmo nos casos em que as redes socioafetivas permaneceram intactas, a comunidade poderia se beneficiar de um suporte de atenção primária e saúde mental para acessar ferramentas e dispositivos de apoios comunitários, familiares e de saúde pública. No que concerne ao cuidado da população, as equipes foram estimuladas a auxiliar no processo de luto e ritos de passagem como reconhecimento de corpos, funerais e enterros, informes coletivos sobre as reações psíquicas mais frequentes, informes sobre locais e horários de atendimento, identificação de possíveis ferramentas socioculturais de enfrentamento ao evento, bem como a cuidar com base nas redes socioafetivas tradicionais de solidariedade.
Profissionais recém-contratados, transferidos temporariamente e voluntários das áreas de psicologia e medicina foram agregados às equipes originárias do SUS municipal, com o intuito de suprir a demanda emergencial da população adstrita na primeira fase da resposta. Parte desses profissionais foram contratados pelo município, Vale ou cedidos pela Secretaria Estadual de Saúde, tendo em vista a Portaria nº 30, de 25 de janeiro de 2019 18.
Garantida a inclusão dessas equipes adicionais nos dispositivos de saúde do SUS, ainda nas primeiras quatro semanas pós-desastre, foram oferecidas capacitações específicas sobre saúde mental e atenção psicossocial pós-desastres, na tentativa de qualificar e uniformizar o cuidado à população em sofrimento agudo 19. O enfoque das capacitações versou sobre o fortalecimento das redes de apoio com proposta de construção de estratégias comunitárias para lidar com o sofrimento psicológico apresentado pela comunidade 4.
Considera-se que atividades de capacitação e supervisão de equipes, espaços coletivos para troca de experiências e análise das atividades realizadas auxiliam na ressignificação do processo de trabalho após o desastre. Destaca-se ainda como importante o suporte ofertado pelo NUPIC nos locais de trabalho das equipes do SUS e o acompanhamento do Centro de Referência de Saúde do Trabalhador. Tais dispositivos de cuidado objetivaram construir ações de promoção e prevenção de saúde, evitando a cronificação e patologização a médio e longo prazos do sofrimento psíquico.
As equipes de saúde e a gestão central do Município de Brumadinho apresentaram disponibilidade e pragmatismo na implementação e qualificação das equipes de saúde já na primeira fase da resposta. Registra-se que no modelo de intervenção adotado focou-se na minimização dos impactos da saúde mental dos afetados, sendo assim, a proposta priorizou a atenção imediata ao sofrimento humano em detrimento do modelo tecnicista de cuidado. Ressalta-se também a cobertura de 100% do território por equipes de ESF, a experiência anterior de alguns técnicos que apoiaram as equipes após o rompimento da barragem da Samarco no ano de 2015, bem como a rápida contratação de mais profissionais, parte destas equipes financiadas por ações judiciais que impeliram a empresa Vale a arcar com os custos.
O desenvolvimento desse modelo de estratégia, em que as equipes adicionais agregadas na primeira fase de resposta foram alocadas em dispositivos de saúde de um sistema já existente e conhecido da população afetada, facilitou a identificação das portas de entrada do cuidado e da ficha de registro em saúde mental a fim de sistematizar e monitorar os dados, visando à melhoria da atenção em saúde.
Nesses moldes foi possível compreender as rupturas sofridas por essas pessoas que já estavam sendo cuidadas em situação de rotina, e também compreender as ferramentas para enfrentar situações de sofrimento, encurtando o processo de vínculo e potencializando um cuidado ampliado, tendo em vista o conhecimento pregresso desses usuários e, consequentemente, diminuindo o impacto na saúde mental.
Destaca-se que a estratégia de cuidado no território, desenvolvida junto às equipes do SUS, pode ser mantida a médio e longo prazos, bem como oportuniza um trabalho de fortalecimento das redes de apoio socioafetivas, desde que os profissionais estejam atentos às diferentes formas de sofrimento que podem ser desenvolvidas nos meses subsequentes, como por exemplo: o aumento do uso de álcool e medicamentos benzodiazepínicos, além de medicações analgésicas e anti-inflamatórias. Tais aumentos indicam que novas estratégias de apoio psicossocial devem ser criadas para que o sofrimento psíquico seja ouvido e não apenas calado pela medicação.
O fortalecimento dos vínculos sociais e o empoderamento das redes de apoio estão na base do apoio psicossocial e, portanto, têm ligação intrínseca com a comunidade que está sendo atendida. Considera-se como desafios importantes a interlocução entre sistema de vigilância e assistência em saúde, tanto na coleta como na sistematização de dados, que podem retroalimentar novas estratégias de cuidado.
Cabe ainda às equipes do SUS a capacidade de analisar os aspectos culturais na construção de estratégias de cuidado que vão além do conhecimento do território e análise de dados epidemiológicos. Aspectos econômicos e políticos permeiam a vivência dos sobreviventes e devem ser considerados ao se propor o fortalecimento do protagonismo dos afetados, sendo que tal estratégia reafirma a autonomia e busca pela dignidade que são importantes mediadores do sofrimento psíquico.