versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.1 Rio de Janeiro jan. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018241.29912018
Apresenta-se um breve panorama do envelhecimento no Brasil e informações que fundamentam a necessidade de se criarem instrumentos para lidar com o aumento acelerado da população idosa, particularmente, com os que perdem sua autonomia física, cognitiva, mental/emocional e social. São mostrados exemplos de políticas públicas criadas por países da União Europeia, em particular, pela Espanha, para proteger os mais vulneráveis e dar apoio a suas famílias, em especial, aos cuidadores informais. Todo o processo de proteção aos mais longevos é pensado como uma solidariedade social em que o Estado e os entes subnacionais, a sociedade, as famílias e a própria pessoa idosa participam. O Brasil está num momento de decisões importantes, cuja agudeza foi trazida pela crise econômica e política, mas delas não devem ser excluídos o olhar e o aprofundamento da visão sobre as novas demandas trazidas pelo envelhecimento populacional.
As políticas promovidas pelos Estados de Bem-Estar Social no período após a segunda guerra mundial levaram a uma melhoria considerável das condições de vida e de trabalho, contribuindo para o aumento da expectativa de vida em quase todos os países do mundo. Verificou-se, desde então, progressiva queda da taxa de natalidade associada a fenômenos como universalização da educação e da atenção básica em saúde, intensificação da participação feminina no mercado de trabalho e difusão do planejamento familiar. O crescimento do número e da proporção de idosos – com aumento exponencial da população acima de 80 anos - se tornaram fato irreversível1–3.
A população brasileira manteve a tendência de envelhecimento. Superou a marca dos 30,2 milhões em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua4. Nos últimos cinco anos, os 4,8 milhões de novos idosos correspondem a um crescimento de 18% desse grupo etário apenas nesse intervalo de tempo. As mulheres são 16,9 milhões (56,4%) e os homens, 13,3 milhões (43,6%) atualmente. Entre 2012 e 2017, a quantidade de idosos se elevou em todas as unidades da federação, sendo os estados com maiores proporções, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, cada um com 18,6% de suas populações com 60 anos ou mais. O Amapá é o estado com menor percentual (7,2%)4.
As transformações demográficas e sociais, dentre outras consequências importantes, vêm alterando significativamente a estrutura das famílias e a situação da pessoa idosa em todo o mundo inclusive na América Latina e, muito fortemente, no Brasil4,5. O trabalho das mulheres fora de casa, a queda da taxa de natalidade e a consequente redução do número de filhos repercutem sobre a reprodução da solidariedade intrafamiliar. Diminui-se o número de pessoas disponíveis para serem cuidadoras, enquanto aumentam as famílias intergeracionais, (coexistência de bisavós, avós, filhos e netos num mesmo lar), o que pode, de um lado, significar uma possibilidade de enriquecimento humano; mas de outro, um aumento do estresse relacional, particularmente para a pessoa idosa, caso ela se sinta relegada das conversas, dos planos e programas familiares e sem espaço físico e sociocultural adequado para atender a suas necessidades1–4,6.
Um dos desafios mais sérios neste momento é a questão previdenciária. O novo cenário vem gerando considerável pressão sobre os sistemas estruturados, os quais, em sua grande maioria, foram organizados para responder a uma realidade caracterizada pela expansão do emprego assalariado e pelo curto tempo de vida depois da aposentadoria. Desde o final da década de 1970, a mudança demográfica se acelerou, assim como a demanda sobre os sistemas de proteção social. De um lado, se trata de um bônus para os países, pois o aumento da longevidade significa que a população usufrui de mais prosperidade econômica e de mais recursos para saúde, saneamento básico e alimentação saudável. De outro, existe uma equação que não fecha: o tempo de aposentadoria pode chegar a 40 a ou mais anos para muitas pessoas, aumenta o número dos saem do mercado de trabalho e o número dos que contribuem diminui5,6. Por exemplo, a projeção é que, a partir de 2039, o Brasil terá mais pessoas acima de 65 anos do que crianças de até 14 anos. E em 2060, o país terá 67,2% de cidadãos considerados dependentes da força de trabalho dos adultos (acima dos 65 ou abaixo dos 15 anos) para cada cem pessoas em idade de trabalhar4. Ou seja, a chamada crise da Previdência Social, tal qual está organizada hoje é uma realidade e não uma ficção. E ela se agrava porque os governos, em geral, se recusaram a lidar com ela em momentos mais propícios, atuando apenas nos momentos de crise e sem tocar nos privilégios. A posição aqui, é que, os idosos não podem ser responsabilizados por desmandos e inconsequências governamentais no momento de maior fragilidade de suas vidas, pois a maioria hoje recebe aposentadorias de um a dois salários mínimos. As soluções não são simples e a solidariedade social em favor dos idosos menos favorecidos não pode faltar em hipótese alguma.
Do ponto de vista da política de saúde para pessoas idosas, os estudos têm indicado a importância de que os serviços focalizem a prevenção das enfermidades crônicas e invistam num tipo de atenção multidisciplinar7. Isso exige repensar o paradigma biomédico hegemônico, tornando-o um modelo socioambiental que considere as doenças a partir de uma perspectiva do contexto da vida, das comorbidades, e da manutenção, por maior tempo possível, da saúde física, cognitiva, e emocional/psicológica dos idosos. Os atuais serviços hoje ofertados, geralmente, se mostram inadequados, insuficientes ou incompletos para viabilizar os cuidados prolongados de que esse segmento populacional tão vulnerável precisa. O mesmo reparo vale para os serviços sociais2,3,7.
As pessoas com incapacidades funcionais e problemas sociais, dentre os velhos, são as que mais sofrem e, com mais frequência, são vítimas de violência, negligências e abandonos3. São particularmente desfavorecidos, os homens e mulheres com 80 anos ou mais, os mais pobres que não têm condições de se sustentar e as mulheres viúvas e solteiras com agravos físicos, cognitivos e emocionais. Esse grupo, em geral, apresenta necessidades não recobertas pelos serviços e benefícios tradicionalmente ofertados pelos Institutos de Previdência e Assistência Social ou pelos serviços rotineiros de Saúde Pública7.
As questões acima levantadas têm fomentado a inscrição do tema da proteção social adequada para as pessoas em processo de envelhecimento – particularmente as que adquirem incapacidades funcionais - como parte da agenda dos governos europeus, sendo a dependência considerada um grande desafio contemporâneo8,9. Não se pode mais deixar apenas às famílias o ônus de cuidar de seu idoso10, nem os mais vulneráveis devem ser submetidos às filas intermináveis dos serviços rotineiros de saúde e assistência social. As grandes transformações demográficas, sociais e familiares exigem a organização da oferta de atenção domiciliar, de apoio para a realização de atividades da vida diária, de promoção da autonomia, de ações preventivas e de qualidade de vida10. Essa demanda visa responder aos idosos ativos e saudáveis, assim como ao contingente de cidadãos que convive com a redução mais ou menos grave de suas capacidades funcionais. É sobre esse segundo grupo o foco desta reflexão8,9.
O quadro dos idosos dependentes foi traçado pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em conjunto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Ministério da Saúde (MS) em 2013. Os dados analisados por autores como Lima-Costa et al.11 mostram o seguinte: foram ouvidos 23.815 pessoas, numa amostra nacionalmente representativa de toda a população acima de 60 anos. Do conjunto, 56,4% eram mulheres, reafirmando sua predominância no processo de longevidade; 32,8% eram analfabetos; 46,5% tinham de um a oito anos de estudo e 21,7% possuíam curso superior; 14.9% viviam sozinhos; 35,6% moravam com uma pessoa e 42,3 % com duas ou mais. Foi encontrada a prevalência 30.1% de pelo menos uma limitação para as atividades da vida diária (AVD), chegando a 43,0% entre os analfabetos; a 29% entre os que tinham instrução primária e 13,8 % entre as pessoas com formação superior. Esses últimos dados assinalam, de um lado, a elevada proporção de idosos com perda de autonomia; de outro, os efeitos da desigualdade, expressos nos grupos de analfabetos e com apenas educação elementar.
Os idosos com incapacidades funcionais associadas a doenças crônicas físicas, cognitivas, mentais/emocionais e motoras são reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS)7 como “vulneráveis” ou “dependentes”7. Fazendo eco com a OMS, o Conselho da Europa8,12 considera “dependente” o indivíduo que, por razões associadas à redução ou mesmo à falta de alguma capacidade funcional, tem necessidade de ser ajudado para realizar atividades diárias, implicando na presença de pelo menos outra pessoa para apoiá-lo. Tais dificuldades são definidas por meio de duas categorias: básicas e instrumentais. A primeira diz respeito a tarefas de autocuidado, como arrumar-se, vestir-se, comer, fazer higiene pessoal e locomover-se (AVD). A segunda se refere à capacidade para executar atividades necessárias ao desenvolvimento pessoal e social: participação na comunidade, realização de tarefas práticas como fazer compras, pagar contas, manter compromissos sociais, usar meios de transporte, cozinhar, comunicar-se, cuidar da própria saúde e manter a própria integridade e segurança - atividades instrumentais da vida diária (AIVD).
Os países da Europa – embora com medidas adotadas internamente bastante distintas - assumiram estratégias para reformar seus sistemas de proteção social a favor dos idosos e de pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência como uma questão específica, focalizada e prioritária. Já na década de 1980, alguns formularam planos para adequação dos mecanismos de proteção social à situação dos que, pela perda de autonomia, precisavam de cuidados prolongados. Durante a década seguinte, ajustes foram feitos principalmente por causa de restrições orçamentárias. Porém e apesar da crise fiscal, os vários países do bloco vêm adotando regulamentações específicas para classificar o “grau de dependência” dos idosos e deficientes e, em função da gravidade, organizar provisão de prestações monetárias ou na forma de oferta de serviços8,9,12.
Por exemplo, o modelo alemão caracteriza a situação de perda de autonomia, em função do tempo de ajuda diária de que a pessoa precisa. O sistema estabelece três graus de dependência, e a cada um deles corresponde um nível de proteção social ofertado. Na França, a classificação se dá em função do tipo de ajuda de que a pessoa necessita. Para análise da perda de autonomia, é aplicada uma escala que mede a incapacidade funcional. Conforme o grau, o poder público oferta determinados serviços de proteção social e de saúde. Ambos os países criaram leis específicas sobre a dependência, gerenciam o sistema com a participação da sociedade civil e o financiam por meio da participação colaborativa entre o governo central, os estados e municípios e o aporte das famílias e da pessoa idosa ou deficiente, sendo que ninguém fica sem assistência por não ter condições financeiras6,8,9.
A Espanha criou, em 2004, “El libro Blanco de la Dependência”12, visando a proteger os idosos e deficientes com incapacidade funcional. Para cobrir os gastos com esse novo programa, o governo central dividiu responsabilidades com as comunidades autônomas. Estabeleceu que os serviços podem ser públicos, autorizados pelo poder público ou efetuados por instituições conveniadas. Porém, a responsabilidade pela efetivação da Lei de Dependência foi e continua a ser do Ministério da Previdência Social. As entidades públicas e conveniadas que cuidam dos idosos, por exemplo, compõem uma espécie de catálogo de serviços de cinco tipos: (1) prevenção das situações de dependência e promoção da autonomia pessoal; (2) ajuda em domicílio (apoio para atividades domésticas e cuidados pessoais); (3) centros-dia/noite; (4) atenção institucionalizada, por meio de residências geriátricas e centros de atenção para pessoas com incapacidade mental ou incapacidade física; e (5) teleassistência domiciliar. Esse último serviço permite que pessoas idosas e com perda de autonomia, vivendo sozinhas, quando se encontram em situação de risco, entrem em contato com um centro de atenção especializada. A intervenção é imediata quando há problemas pessoais, sociais ou médicos envolvidos, proporcionando segurança e melhor qualidade de vida à pessoa, em seu próprio domicílio. Há ainda um importante programa de apoio, formação e promoção de descanso para os cuidadores familiares.
No Brasil, do ponto de vista da seguridade social, felizmente chegou-se a um estágio considerado bom, pois 84,3% pessoas idosas recebem aposentadoria, pensão, o chamado benefício de prestação continuada ou alguma forma de ajuda oficial6. E, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça em sua primeira seção do dia 22/08/2018 fixou a tese de que, comprovada à necessidade de assistência permanente de terceiro, é devido o acréscimo de 25%, previsto no artigo 45 da Lei 8.213/199113, a todas as modalidades de aposentadoria, estendendo o benefício que antes era concedido apenas aos aposentados por invalidez.
Mas, a exemplo da Europa, o país necessita de uma lei ou de uma estratégia específica para lidar com os idosos que perdem a autonomia básica e instrumental e se tornam dependentes de cuidados por parte de terceiros6,14. Esses estão praticamente desleixados pelo Estado e pela sociedade, ficando como responsabilidade individual das famílias ou de algumas poucas instituições de caridade. Conhecer o tamanho da demanda como foi feito na PNS em 201310,11, qualificá-la por graus de severidade e oferecer serviços públicos adequados são metas que se tornam urgentes, particularmente quando se constata que o segmento que mais cresce entre os idosos no Brasil é o de 80 anos e mais. Essa é a faixa etária com maior probabilidade de ser afetada pela deterioração das condições físicas, cognitivas, motoras e mentais, como lembram a OMS7 e vários autores1–3,7–12,15.
As referências assinaladas neste texto chamam atenção para a sensibilidade política, social e dos serviços sociais para algumas ações inadiáveis.
Do ponto de vista político, apesar de haver uma iniciativa aqui outra ali, a questão da “dependência” ainda não foi devidamente enfrentada pelos brasileiros. Assim, algumas ações se impõem como: (1) definir o dever do Estado frente ao fenômeno irreversível do aumento populacional e da dependência de terceiros por parte dos idosos que perdem sua autonomia; (2) estabelecer uma fórmula de coparticipação com organizações da sociedade civil, famílias e com a própria pessoa idosa; (3) adaptar a estrutura tradicional das políticas de proteção social para atender a esse crescente contingente; (4) estabelecer formas de financiamento do incremento da demanda e da complexidade dos serviços cada vez mais necessários; (4) melhorar a situação e a formação do cuidador familiar e do cuidador formal; (5) desenvolver programas e serviços específicos locais, para atender a esse segmento populacional em seus diversos graus de perda de autonomia.
Do ponto de vista operacional, o país necessita de uma agenda de serviços específicos e adequados. Para isso, algumas questões devem ser levadas em conta: (1) compreender a natureza do problema e seu significado para o indivíduo, a família e a sociedade. A dependência não se reduz à dimensão médica, embora se materialize nos déficits funcionais que afetam fortemente a saúde. Ela também se associa de forma relevante ao isolamento social que impede os idosos de melhorarem seu desempenho e, por vezes, de levar uma vida ativa; (2) estruturar serviços de cunho integrado, multidisciplinar e multiprofissional que apresentem várias modalidades e possibilidades de proteção, segundo a gravidade das dependências e das necessidades sociais dos idosos; (3) investir na formação de profissionais que sejam capazes de compreender, tratar e cuidar das pessoas idosas, particularmente, das mais vulneráveis.
Parece óbvio, mas a ficha dos brasileiros ainda não caiu em relação ao acelerado envelhecimento populacional. Bônus, sinal de melhoria de vida, necessidade de investir social e economicamente nesse segmento, de um lado! De outro, preocupação com o progressivo crescimento dos que dependem da família, dos vizinhos, da sociedade civil e do Estado, particularmente dos serviços sociais e de saúde! Eis a longevidade como a grande novidade do século XXI!