versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011gs1809
Nos últimos anos, a confirmação de que as células-tronco do adulto (CTA) podem se transformar em outros tecidos estimulou muitos cientistas a realizarem estudos nessa área, uma vez que essas células podem representar uma alternativa ao uso de células-tronco embrionárias(1). O sangue do cordão umbilical (SCU), uma das principais fontes de CTA, chamou atenção dos cientistas em razão da simplicidade da coleta da amostra, da ausência completa de riscos para a mãe ou o recém-nascido, da menor necessidade de compatibilidade do antígeno de leucócitos humanos (HLA), e dos menores riscos de reação enxerto-hospedeiro grave e de transmissão de doenças infecciosas e contagiosas(2). As CTA também podem ser consideradas uma alternativa ao uso da medula óssea para tratamento de várias doenças hematológicas, genéticas e oncológicas, tanto em crianças(2–4) como em adultos(5).
Após o tratamento bem-sucedido de um caso de anemia de Fanconi com um transplante de SCU(4), houve muito progresso nas pesquisas nesse campo e bancos de sangue de cordão umbilical (BSCU) foram criados na Europa, Japão, China, Estados Unidos e Brasil, entre outros países.
Para capacitar um banco para ser um fornecedor de SCU compatível entre o doador-receptor, cerca de 12 mil amostras necessitam ser armazenadas para cobrir todas as diferentes características raciais e as diversas origens étnicas que constituem uma determinada população(6), e estas devem ser idealmente obtidas de diferentes regiões geográficas. Como o SCU deve ser colhido durante o terceiro período do parto(2,7,8), as equipes devem ser treinadas para realizar as coletas em locais geograficamente distantes do BSCU. Além disso, as bolsas devem ser enviadas em caixas com temperatura controlada, adequadas para transporte de material biológico, e as amostras devem ser encaminhadas para o processamento, de modo a evitar que os pacientes tenham que ir a outra cidade, tornando o armazenamento das amostras diversificadas economicamente viável(9).
Há um intervalo de tempo entre a coleta do SCU no hospital e o processamento da amostra no BSCU, e tal período tende a aumentar como função da distância entre o hospital e o banco de sangue. Uma revisão da literatura sobre esse assunto revela contradições quanto aos efeitos desse intervalo de tempo; alguns pesquisadores relataram a grave deterioração nos testes de qualidade após 9 horas e 24 horas, respectivamente, enquanto outros relataram resultados satisfatórios com até 36 horas(9–12). No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão regulador de saúde, determinou que as amostras devem ser processadas dentro de 48 horas após a coleta(13).
O objetivo deste estudo foi estabelecer o efeito do tempo entre a coleta no hospital-maternidade e o processamento de amostras no BSCU na qualidade do SCU. O estudo também investigou a presença ou a ausência de contaminação, a correlação entre o número de células viáveis e o número de células CD34+ nos intervalos de tempo definidos.
Estudo descritivo, prospectivo e observacional realizado em 20 amostras de SCU de pacientes que deram à luz recentemente, concordaram em participar do estudo de forma voluntária e assinaram o termo de consentimento livre e informado. Todas as pacientes preencheram os critérios de inclusão e nenhuma delas preencheu os critérios de exclusão. O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Os critérios de inclusão foram: idade > 18 anos; idade gestacional ≥ 35 semanas; peso fetal ≥ 2.000 g; amniorrexe inferior a 18 horas e ausência de processos infecciosos durante a gravidez ou doenças que pudessem interferir na vitalidade placentária. Os critérios de exclusão foram: sofrimento fetal grave (mecônio acima de ++ e Apgar < 5 no primeiro minuto) e infecção durante o trabalho de parto (alterações na cor ou odor do líquido amniótico e temperatura materna > 38°C durante o trabalho de parto).
O decreto RDC 153 da autoridade reguladora de saúde no Brasil afirma que o número total de células nucleadas deve ser, no mínimo, 5 × 108 e o volume da amostra de SCU colhido deve ser, no mínimo, de 70 mL(13). Neste estudo, essas exigências não foram consideradas fatores de exclusão, uma vez que as bolsas eram descartadas após a realização dos testes de controle de qualidade.
As amostras de SCU foram colhidas na maternidade do hospital-escola da Faculdade de Medicina da Universidade de Taubaté (UNITAU), no Estado de São Paulo, durante o terceiro período do parto, após o nascimento e o clampeamento do cordão, e antes do desprendimento da placenta, após assepsia de um segmento do cordão e punção da veia umbilical, usando um sistema de bolsa top-and-bottom (Optipress®, Baxter Healthcare).
Após a coleta, a bolsa contendo o SCU era armazenada em uma caixa com temperatura controlada contendo duas unidades de 400 g de gelo reciclável, em conformidade com as especificações da International Air Transport Association (IATA)(14) para o transporte de material biológico para diagnóstico. A temperatura foi monitorizada eletronicamente com o uso do sistema Kooltrak® (Dallas Technologies)(15) e o sistema de leitura computadorizada CB Bank Manager®. As amostras foram transportadas por via terrestre ao BSCU Criogênesis, na cidade de São Paulo, Brasil. Como as duas cidades estão separadas por uma distância de 150 km, o intervalo de tempo entre a coleta e a chegada das amostras ao BSCU foi estimado em menos de 24 horas.
No banco de sangue de cordão umbilical, as bolsas foram mantidas em caixas com temperatura controlada e a temperatura foi monitorada continuamente. As caixas foram abertas rapidamente nos seguintes intervalos de tempo: até 24 horas, até 48 horas e até 72 horas após a coleta, e 3 mL de SCU foram retirados com o uso de uma cânula de amostragem. As amostras foram enviadas para os testes de controle de qualidade mais comumente usados, que incluíam contagem de células nucleadas, contagem de células viáveis (sem a ruptura da membrana celular) e contagem de células CD34+ (CD34 expresso nas células-tronco hematopoiéticas)(2,3,5,8–11,16–19).
A contagem de células nucleadas foi realizada em uma câmara de contagem Neubauer. As células viáveis foram contadas excluindo as células coradas pelo azul de tripan 0,4% (Sigma-Aldrich, EUA). O número total de células viáveis foi calculado a partir da porcentagem de células viáveis multiplicada pelo número de células nucleadas. A contagem de células CD34+ foi realizada com o uso do reagente comercial CD34 (ProCOUNT®, Becton-Dickinson, San Jose, Califórnia, EUA) e a leitura foi realizada com o uso de citometria de fluxo (FacsCalibur®, Becton-Dickinson, San Jose, Califórnia, EUA). O número total de células CD34+ foi calculado a partir da porcentagem de células CD34+ multiplicada pelo número de células nucleadas.
A presença de contaminação foi investigada com o uso do sistema de cultura de sangue pediátrico BacT/ALERT® (Biomérieux)(20), uma para agentes aeróbios e outra para agentes anaeróbios. Tal método permite a identificação da contaminação sem especificar o agente bacteriano.
Os dados foram analisados usando múltiplas análises de variância (MANOVA) e comparados por meio do teste do χ2 de McNemar, considerando um nível de significância de 5%.
Todas as 20 caixas contendo bolsas de amostras de SCU chegaram ao BSCU dentro de 24 horas após a coleta. O volume das bolsas variou entre 31 e 139,4 mL (média: 80,6 ± 31,7 mL; mediana: 72,5 mL). O número total de células nucleadas variou entre 206 milhões e 3,4 bilhões, com média de 1,1 bilhão nas primeiras 24 horas, diminuindo para uma média de 1,03 bilhão em 48 horas e 841 milhões em 72 horas – diferenças que foram estatisticamente significativas (p < 0,0001) (Tabela 1).
Tabela 1 Volume sanguíneo, variação no número de células nucleadas, células viáveis e células CD34+ em intervalos de tempo de até 24 horas, até 48 horas e até 72 horas em bolsas de sangue de cordão umbilical
Bolsas de SCU | n | Média | Desvio padrão | Mediana | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Volume coletado (ml) | 20 | 80,6 | 31,7 | 72,5 | 31 | 139,4 | |
Células nucleadas | |||||||
Até 24 horas | 20 | 11 × 108 | 9,0 × 108 | 7,9 × 108 | 2,0 × 108 | 34 × 108 | |
Até 48 horas | 20 | 10 × 108 | 7,9 × 108 | 7,2 × 108 | 1,8 × 108 | 29 × 108 | |
Até 72 horas | 20 | 8,4 × 108 | 5,9 × 108 | 6,3 × 108 | 1,4 × 108 | 19 × 108 | |
Viable cells | |||||||
Até 24 horas | 20 | 11 × 108 | 8,8 × 108 | 7,7 × 108 | 2,0 × 108 | 33 × 108 | |
Até 48 horas | 20 | 9,6 × 108 | 7,3 × 108 | 6,8 × 108 | 1,7 × 108 | 26 × 108 | |
Até 72 horas | 20 | 7,1 × 108 | 5,0 × 108 | 5,3 × 108 | 1,2 × 108 | 16 × 108 | |
CD34+ cells | |||||||
Até 24 horas | 20 | 6,3 × 106 | 6,3 × 106 | 4,3 × 106 | 0,6 × 106 | 23 × 106 | |
Até 48 horas | 20 | 5,5 × 106 | 5,4 × 106 | 3,7 × 106 | 0,5 × 106 | 19 × 106 | |
Até 72 horas | 20 | 4,0 × 106 | 3,7 × 106 | 3,1 × 106 | 0,3 × 106 | 12 × 106 |
SCU: sangue de cordão umbilical
O número de células viáveis variou entre 202 milhões e 3,3 bilhões, com média de 1,1 bilhão nas primeiras 24 horas, diminuindo progressivamente para a média de 967 milhões em 48 horas e 711 milhões em 72 horas. Essas diferenças também foram estatisticamente significativas (p < 0,0001) (Tabela 1).
O número de células CD34+ variou entre 672 mil e 23 milhões, com média de 6,3 milhões nas primeiras 24 horas, diminuindo progressivamente para uma média de 5,5 milhões em 48 horas e 4 milhões em 72 horas. Tais diferenças foram estatisticamente significativas (p< 0,0001) (Tabela 1). A comparação das médias em 24 e 48 horas mostrou uma diminuição menor, mais ainda estatisticamente significativa comparada à diferença nas médias de 24 e 72 horas (Figura 1). Como a variação entre o número mínimo e o número máximo de células nucleadas nas amostras foi muito grande, a mediana da variação percentual também foi calculada e essas comparações também foram estatisticamente significativas (Tabela 2).
Figura 1 Variação na porcentagem média de células nucleadas, células viáveis e células CD34+ nas bolsas de sangue de cordão umbilical entre os seguintes intervalo de tempo: 24 × 48 horas, 48 × 72 horas e 24 × 72 horas (IC95%)
Tabela 2 Variação na média percentual do número de células nucleadas, células viáveis células e CD34+ em bolsas de sangue de cordão umbilical entre os intervalos de tempo de 24 versus 48 horas, 48 versus 72 horas e 24 versus 72 horas
Parâmetro | Mediana | 1º quartil | 3º quartil | Valor p* | |
---|---|---|---|---|---|
Células nucleadas | |||||
24 horas versus 48 horas | -8,3 | -12,0 | -6,1 | < 0,0001 | |
48 horas versus 72 horas | -13,5 | -17,8 | -9,3 | < 0,0001 | |
24 horas versus 72 horas | -20,5 | -26,6 | -17,6 | < 0,0001 | |
Células viáveis | |||||
24 horas versus 48 horas | -13,0 | -17,3 | -11,4 | < 0,0001 | |
48 horas versus 72 horas | -22,8 | -28,0 | -16,7 | < 0,0001 | |
24 horas versus 72 horas | -32,6 | -37,9 | -26,3 | < 0,0001 | |
Células CD34+ | |||||
24 horas versus 48 horas | -12,1 | -16,9 | -8,0 | < 0,0001 | |
48 horas versus 72 horas | -23,9 | -30,4 | -18,2 | < 0,0001 | |
24 horas versus 72 horas | -30,2 | -42,6 | -27,0 | < 0,0001 |
*O valor p foi obtido com o teste de Wilcoxon para valores pareados.
As variações no número de células viáveis e células CD34+ foram comparadas, sendo encontrada correlação linear entre os três momentos da análise (até 24 horas, até 48 horas e até 72 horas) (Tabela 3).
Tabela 3 Correlação entre as variações em número de células viáveis e células CD34+ nos seguintes intervalos de tempo: até 24 horas, até 48 horas e até 72 horas
Intervalo de tempo | r* | Valor p |
---|---|---|
Até 24 horas | 0,86 | <0,0001 |
Até 48 horas | 0,83 | <0,0002 |
Até 72 horas | 0,85 | <0,0003 |
*Coeficiente de correlação de Spearman.
A confirmação da utilidade das células-tronco adultas no tratamento de doenças hematológicas abriu caminho para outras pesquisas sobre as diferentes fontes de obtenção dessas células. Uma fonte que ganhou importância é o SCU, já que sua coleta é simples e não oferece risco ao doador. Além disso, requer um menor grau de compatibilidade HLA entre o doador e o receptor em comparação à medula óssea, por exemplo.
No Brasil, a grande área geográfica do país e a diversidade étnica de sua população podem limitar o uso de SCU em razão da dificuldade para identificar um doador compatível, apesar de saber que a probabilidade de um brasileiro encontrar um doador no Brasil é 30 vezes maior do que a probabilidade de encontrar um doador compatível no exterior, de acordo com um estudo realizado pelo Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (REDOME)(21).
De aproximadamente 3.000 pacientes encaminhados anualmente para transplante de medula óssea, 1.700 não têm sucesso na identificação de um doador compatível entre os familiares, sendo obrigados a recorrer à lista de espera, em que o tempo médio de espera para a identificação de um doador compatível é seis meses(21). Para facilitar a identificação de um doador compatível e reduzir o tempo de espera, há, atualmente, maior interesse em assegurar que os BSCU sejam capazes de armazenar um número suficiente de amostras originárias de diferentes regiões geográficas do país.
Um banco de sangue de cordão umbilical público com 12 mil amostras armazenadas garante a identificação de uma amostra compatível em praticamente 100% dos casos, e o tempo de espera pode ser reduzido para 20 dias. Além disso, pode-se alcançar maior redução dos custos, uma vez que coletar e armazenar uma amostra de SCU no Brasil custa, em torno, R$ 3.000,00 – enquanto o custo aproximado de uma amostra obtida no exterior é de R$ 96.000,00(21).
Em conformidade com os dados publicados na literatura, este estudo demonstra que a qualidade do SCU deteriora em função do período de tempo entre a coleta e o processamento nos bancos de sangue(9–12). No Brasil, a diretiva RDC 190/2003 emitida pela ANVISA exige que as amostras de SCU sejam processadas dentro de 36 horas após a coleta; entretanto, a diretiva RDC 153/2004 prorrogou esse intervalo para até 48 horas. Nos estudos internacionais revisados, a maioria estabelece critérios de 24 ou 36 horas como limite superior para aceitar amostras para processamento.
Baseados nos achados dessa pequena amostra, é impossível corroborar ou refutar os limites estabelecidos pela ANVISA. Embora tenha sido evidente a diminuição no número de células nucleadas, células viáveis e células CD34+, nenhum ponto de corte preciso foi estabelecido. Entretanto, está claro que o intervalo entre coleta e processamento deve ser o mínimo possível.
Neste estudo, não ocorreu qualquer contaminação das amostras em função do aumento do intervalo de tempo entre coleta e processamento, provavelmente pelo fato de que todas as amostras foram colhidas pelo mesmo investigador, com critérios rigorosos de assepsia.
Além disso, encontrou-se uma correlação linear entre a variação na porcentagem média do número de células viáveis e as células CD34+. Quando se calculou a variação na porcentagem mediana, observou-se um maior aumento na variação de células viáveis em relação às células CD34+ no intervalo entre 24 e 72 horas. Esses resultados são compatíveis com os relatados na literatura(9). A confirmação da existência dessa correlação é importante, uma vez que a viabilidade celular é medida mais facilmente e com menor custo do que a contagem de células CD34+.
Tais achados confirmam que o aumento no intervalo de tempo entre a coleta e o processamento afeta negativamente a qualidade da amostra de SCU e isso deveria estimular a realização de mais estudos, com amostras maiores, que são necessários para confirmar os resultados atuais. Estes dados podem ser úteis para estabelecer políticas nacionais para definir a localização geográfica dos BSCU e permitir que amostras sejam colhidas de populações geograficamente distintas, garantindo o rápido processamento e congelamento. Assim, é preservada a qualidade das amostras e aumentada a probabilidade de identificar amostras compatíveis entre doador e receptor.