versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.15 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082017rw3706
A esclerose múltipla (EM) é uma doença autoimune. A esclerose múltipla remitente-recorrente (EMRR) é a forma mais comum da doença, em que os sintomas desaparecem espontaneamente. Após o acúmulo de danos teciduais ao longo dos anos, os pacientes evoluem muitas vezes para a esclerose múltipla progressiva secundária (EMPS), na qual os deficits neurológicos pioram gradualmente ao longo do tempo.1 Foram identificados dois processos anatomopatológicos distintos, a saber, a inflamação/desmielinização, que predomina em pacientes com EMRR, e a degeneração axonal, que é considerada responsável pela EMPS.2
Os critérios de diagnóstico da EM baseiam-se em avaliações clínicas e paraclínicas e enfatizam a necessidade de demonstrar lesões em diferentes locais do sistema nervoso central (disseminação espacial), que ocorrem em tempos distintos (disseminação temporal), e excluir diagnósticos alternativos. As lesões podem ser detectadas tanto pelo exame clínico quanto por ressonância magnética (RM).3
Há muito tempo se estuda o líquido cefalorraquidiano (LCR) na EM. A curva da reação de ouro coloidal de Lange, estudada inicialmente para diagnóstico da sífilis, em 1942, mostrou padrões anormais de proteínas em pacientes com EM, mas com baixa sensibilidade e especificidade.4 No final da década de 1950, foram introduzidos métodos quantitativos que mostraram elevação de gamaglobulina em amostras de LCR, mas não no soro.5,6 O desenvolvimento da separação eletroforética de proteínas no LCR permitiu a demonstração de diferentes frações de IgG no LCR de pacientes com EM. Essas frações foram mostradas pela primeira vez em 1959 e denominadas bandas oligoclonais.7 O padrão mais comum encontrado na EM mostra ao menos duas bandas no LCR e nenhuma nas amostras de soro.8
A sensibilidade para a detecção de bandas oligoclonais em pacientes com EM com o método de focalização isoelétrica é quase 95% e a especificidade é superior a 86%. O índice de IgG é positivo em 75% dos casos com bandas oligoclonais positivas.8 Por algumas décadas, a utilidade da análise do LCR na EM permaneceu restrita à avaliação diagnóstica. No entanto, nos últimos anos, muitos marcadores novos do LCR foram estudados na EM. Estes biomarcadores são proteínas do LCR e suas concentrações no LCR foram correlacionadas com os parâmetros clínicos e terapêuticos da EM. O objetivo deste estudo foi revisar criticamente a literatura existente sobre os novos biomarcadores do LCR na EM.
Foi realizada uma revisão crítica da literatura sobre EM e os novos biomarcadores do LCR. A estratégia de busca utilizada incluiu as expressões “esclerose múltipla”, “líquido cefalorraquidiano” e “biomarcadores”, na base de dados PubMed/MEDLINE, de janeiro de 1990 a março de 2016.
Cada estudo encontrado foi analisado criticamente, levando-se em conta os artigos referentes aos biomarcadores com maior potencial para incorporação na prática clínica. Os resultados dos estudos foram classificados de acordo com três eixos principais: biomarcadores do LCR de atividade da doença, biomarcadores do LCR de progressão clínica e biomarcadores do LCR de resposta terapêutica.
A avaliação da atividade da doença é útil para orientar as intervenções terapêuticas. Atualmente, esta avaliação se baseia em recidivas clínicas, progressão da incapacidade e aparecimento de novas lesões em imagens de RM.9 Ainda faltam biomarcadores confiáveis que indiquem doença subclínica.
Várias citocinas e quimiocinas do LCR foram estudadas como potenciais marcadores de atividade da EM. Estas moléculas participam da resposta inflamatória como moduladoras de recrutamento e migração celular para os sítios de inflamação. Pode haver aumento das citocinas e quimiocinas proinflamatórias e diminuição das anti-inflamatórias durante as exacerbações da EM.10
O fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) do LCR é uma citocina proinflamatória. Foram encontrados resultados contraditórios em relação a este biomarcador na EM. Alguns investigadores descreveram uma associação entre os níveis de TNF no LCR e a atividade da EM, mas tal associação não foi reproduzida por outros autores.11,12 A interleucina 6 (Il-6) é outra citocina proinflamatória, e alguns estudos mostraram um aumento ligeiro da IL-6 no LCR durante as exacerbações da EM.13,14 O ligante de quimiocina 13 (CXCL13) é um quimioatrator de células B que participa na formação dos folículos das células B e é importante na fisiopatologia da EM. O CXCL13 aumenta no LCR de pacientes com várias formas de EM e os seus níveis parecem correlacionar-se com a atividade da doença.15,16
O CXCL13 do LCR parece ser um biomarcador do LCR promissor na avaliação da atividade da EM, embora o número de estudos é ainda pequeno não sendo ainda possível sua utilização na prática clínica de rotina.
A fetuína A (alfa-2-HS-glicoproteína) é uma glicoproteína encontrada por análise proteômica do LCR. Foi associada a maior risco de conversão de síndrome clinicamente isolada para EMRR.17 Esta glicoproteína está aumentada em pacientes com EMPS e também no LCR de pacientes com EMRR ativa, sugerindo que um nível elevado de fetuína A seja potencialmente útil como marcador de atividade da EM.18,19
Os neurofilamentos (Nf) são os componentes mais importantes do citoesqueleto axonal dos neurônios, sendo compostos por três cadeias: leve (NfL) com 68-70kDa, intermediária (NfI) com 145-160kDa e pesada (NfH) com 200-220kDa. Proporcionam suporte estrutural para os neurônios e regulam o diâmetro do axônio. São liberados Nf em quantidade significativa após lesão axonal ou degeneração neuronal. Nessas situações, são liberados Nf no líquido intersticial e no LCR.20 Na EM, as concentrações de NfL no LCR aumentam após recidivas, atingindo o seu pico 2 semanas após o início dos sintomas e permanecendo elevadas durante pelo menos 15 semanas após o surto.21,22 Os níveis de NfL no LCR estão associadas à presença de realce de lesões pelo gadolínio na RM.23 Esses dados indicam que um aumento de NfL no LCR está correlacionado a parâmetros clínicos e de RM, constituindo um biomarcador potencial da atividade clínica da EM.
Ainda é muito difícil prever a progressão clínica da EM. Esta dificuldade reflete uma grande heterogeneidade da doença. A degeneração axonal se acumula ao longo do curso da doença, sendo a principal causa de disfunção neurológica permanente em pacientes com EM. A avaliação da degeneração axonal baseia-se principalmente em parâmetros clínicos e em achados de RM. Porém estes parâmetros não são muito precisos. Ainda são necessários marcadores biológicos mais eficazes da degeneração axonal.24,25
Considera-se que a presença de folículos de células B nas meninges desempenhem um papel importante na progressão clínica da EM.14,26 Um estudo mostrou que a CXCL13 aumenta continuamente na EM progressiva, sugerindo que a CXCL13 se correlaciona com a progressão clínica.27 No entanto, mais estudos prospectivos são necessários para avaliar o papel da CXCL13 na avaliação prognóstica da EM.
Os níveis de NfL no LCR refletem lesão neuronal e potencialmente correlacionam-se com a degeneração axonal. Níveis elevados de NfL no LCR se correlacionam positivamente com um escore maior de gravidade da EM na evolução a longo prazo. Além disso, estes níveis mais elevados estão associados com maior risco de conversão de EMRR para EMPS.28 Alguns estudos mostraram que níveis mais elevados de NfL no LCR estão associados com pior progressão da incapacidade a longo prazo. Por outro lado, outros estudos não mostram correlação entre NfL no LCR, progressão da doença e risco de conversão para EMPS.29-31 O NfL do LCR parece ser um biomarcador potencial para danos neuronais e progressão clínica na EM. No entanto, mais estudos ainda são necessários nessa área.
Também foram testados marcadores de lesão glial no LCR de pacientes com EM. A proteína glial fibrilar ácida (GFAP) é um componente de filamentos de astrócitos. O aumento dos níveis de GFAP no LCR indica danos em astrócitos. Os pacientes com EM apresentam aumento nos níveis de GFAP no LCR quando comparados aos controles. Os portadores de EM com pior deambulação ou deficiência mais grave apresentam níveis de GFAP no LCR maiores do que os pacientes e controles com incapacidade menor, sugerindo que a GFAP no LCR possa ser um biomarcador de progressão clínica e prognóstico.32-35
São necessários mais estudos prospectivos que correlacionem os níveis dos biomarcadores de degeneração neuronal e glial com os dados clínicos e de neuroimagem, para estabelecer com mais precisão o papel deles na previsão da progressão da EM.
A proteína básica de mielina (PBM) é um componente da mielina no sistema nervoso central. Os níveis de PBM no LCR foram previamente testados como preditores de progressão clínica. Os níveis de PBM no LCR aumentam na desmielinização aguda. No entanto, os níveis elevados de PBM não aumentaram com a progressão da doença.27,36Embora seja um marcador potencial de desmielinização aguda, a PBM não se correlaciona com a progressão clínica da EM.
Várias opções terapêuticas para a EM surgiram nos últimos anos. Diversos algoritmos foram propostos para otimizar a utilização destes medicamentos, e a maioria deles com base na ocorrência de recidivas clínicas, progressão clínica e aparecimento de novas lesões na RM. Alguns novos parâmetros, como atividade da doença na substância cinzenta e a atrofia cerebral, foram também avaliados. No entanto, os parâmetros para a avaliação da efetividade do tratamento ainda são imprecisos. Foi estudada a contribuição da mensuração de alguns biomarcadores do LCR na avaliação da eficácia terapêutica.37
Os níveis de NfL no LCR mostraram-se significativamente reduzidos após tratamento imunossupressor com mitoxantrona.38 Foram testados também os níveis de NfL no LCR em pacientes com EM tratados com natalizumabe, com importante diminuição durante o tratamento.31 Também foram estudados os níveis de NfL no LCR em pacientes tratados com fingolimod, e níveis reduzidos foram observados após o tratamento.39 Os pacientes tratados com fingolimod sem redução dos níveis de NfL no LCR apresentaram deterioração clínica em RM. Estes achados sugerem que pelo menos alguns tratamentos de EM estão associados a uma redução progressiva dos níveis de NfL no LCR, e que um aumento persistente dos níveis de NfL no LCR pode indicar baixa resposta terapêutica. Mais evidências são necessárias, mas os dados existentes apoiam a utilização deste biomarcador em estudos clínicos da EM.
Os níveis de fetuína A no LCR estavam reduzidos em pacientes tratados com natalizumabe durante 1 ano.18,19,40 Há necessidade de mais estudos com este e com outros medicamentos para determinar o papel deste biomarcador na avaliação da resposta terapêutica da EM.
A osteopontina é uma proteína de matriz que funciona como uma citocina pró inflamatória. Níveis de osteopontina no LCR estavam reduzidos nos pacientes durante o tratamento com natalizumabe, mas não se sabe se tais níveis são preditivos da resposta ao natalizumabe.40 Ainda são necessários mais estudos que avaliem o papel deste biomarcador durante o tratamento com natalizumabe e outros tratamentos da EM.
O CXCL13 correlaciona-se com a atividade das células B na EM, sendo um bom candidato a biomarcador para avaliação da eficácia de tratamentos que atuem sobre as células B, como o rituximabe e ocrelizumabe. Foi demonstrado que o CXCL13 no LCR estava reduzido durante a terapia com rituximabe; no entanto, seu nível inicial não foi capaz de prever a resposta ao rituximabe.41,42 Outros tratamentos imunossupressores também são capazes de reduzir os níveis de CXCL13 no LCR.38 Estudos futuros podem determinar se este biomarcador prevê a resposta terapêutica, especialmente em tratamentos que atuem sobre as células B.43
Estudos recentes com novos biomarcadores indicam que a análise do LCR na EM pode ir além do diagnóstico. Os novos biomarcadores do LCR podem contribuir na avaliação da atividade da doença, na avaliação do prognóstico e na monitorização terapêutica da EM.
Os dados existentes sugerem que os níveis de CXCL13, fetuína A e NfL no LCR estão associados com a atividade da doença. CXCL13, NfL e GFAP parecem estar correlacionados com o prognóstico e a evolução clínica. Osteopontina, NfL, fetuína A e CXCL13 foram associados com a resposta terapêutica, sugerindo que podem contribuir na avaliação da efetividade do tratamento.28 É possível que, no futuro próximo, estes novos biomarcadores do LCR venham a contribuir para o acompanhamento clínico de pacientes com EM.
Alguns pontos precisam ser mais precisamente estabelecidos. Primeiro, ainda não se sabe com que frequência esses marcadores devem ser medidos. Em segundo lugar, não existe ainda uma interpretação clínica padrão dos resultados. Por fim, ainda se faz necessária uma maior uniformização na execução dessas técnicas em diferentes laboratórios. Todas estas questões devem ser abordadas em futuros estudos clínicos nessa área.
Um melhor conhecimento dos níveis dos novos biomarcadores do LCR pode melhorar a avaliação dos pacientes com EM, dando suporte a decisões clínicas que possam contribuir para resultados mais favoráveis.
Nos últimos anos, surgiram vários candidatos a biomarcadores no líquido cefalorraquidiano para a esclerose múltipla. Estes marcadores biológicos são proteínas do líquido cefalorraquidiano que apresentam correlação com a atividade e a progressão da doença e a resposta ao tratamento. A futura aplicação desses biomarcadores na prática clínica pode proporcionar uma avaliação mais refinada e individualizada da doença, ajudando a otimizar a tomada de decisão terapêutica.