versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.5 Rio de Janeiro maio 2019 Epub 30-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018245.16552017
O direito à saúde encontra sua origem no constitucionalismo contemporâneo1, sendo considerado um direito humano primordial2. A garantia dos direitos humanos, por sua vez, apresenta-se como condição fundamental para o exercício de outros direitos sociais3 e sua efetivação figura como importante item de pauta de atuação do Ministério Público, cuja experiência revela dificuldades para a consolidação de novas formas de partilha de poder político e direcionamento das decisões políticas para o interesse público resultante no fortalecimento das práticas democráticas e de uma efetiva cidadania4.
A dinâmica social contemporânea impôs novas posturas aos atores coletivos, de forma que a democracia representativa passou a ser questionada como método capaz de responder satisfatoriamente à demanda por participação da sociedade5. Nesse contexto, o processo de criação do Sistema Único de Saúde (SUS), da Reforma Sanitária à Constituição Federal de 1988, e que foi consolidado e regulamentado pelas leis 8.080/90 e 8.142/90, estabeleceu as normas do novo sistema de saúde, institucionalizando-se a participação da comunidade e, de modo inovador, disciplinando o controle social6.
Construído o novo paradigma de saúde pública como direito social, foi atualizada a função primordial do Ministério Público, como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis7 e, por último, com as mudanças no processo civil brasileiro, redimensionadas suas intercessões no espectro das leis para fiscalização do ordenamento jurídico, na prática incluindo sob seu agir estratégico e seu agir instrumental a naturalização dos costumes administrativos, também.
Na atuação extrajudicial e resolutiva do Ministério Público Brasileiro, atividade na qual se projeta o presente estudo, observa-se a realização do controle das políticas públicas dos direitos sociais preconizados pela Constituição Federal7, entre eles o direito à saúde. Para Lehmann8, o fundamento para a atuação do Ministério Público, visando à efetividade da participação popular no SUS, está na nova ordem constitucional, garantindo a existência e o bom funcionamento dos mecanismos e instrumentos democráticos de poder, entre eles a participação popular.
Moreira e Scorel9 afirmam que a participação popular é um dos princípios estruturantes do SUS consagrados no art. 198, III, CF/88 e regulamentada por meio da Lei 8.142/9010, que estabeleceu a existência das Conferências e dos Conselhos de Saúde. A interface realizada pelo Ministério Público com os conselheiros de saúde, a partir de suas práticas de diálogo interinstitucional, tem potencial para qualificar o controle social por eles exercido9.
Nesta perspectiva, o objetivo do presente artigo é construir um panorama da produção acadêmica nacional sobre o tema, visando apreender os resultados encontrados por investigações que se propuseram a analisar e compreender as práticas do Ministério Público para o fortalecimento do controle social exercido pelos Conselhos de Saúde.
Diversos estudos relacionados à atuação do Ministério Público no controle social do SUS foram realizados desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 visando pesquisar e subsidiar o relacionamento interinstitucional entre o Ministério Público e os Conselhos de Saúde. Para a revisão, foi realizada uma triagem de pesquisas localizadas segundo as etapas metodológicas propostas pelo Preferred Report Items for Systematics Reviews and Meta Analyses-PRISMA.
Como estratégia de busca e fontes de informação, foram localizados os descritores nas plataformas DECs e MesH. No Decs, foram selecionados os seguintes descritores: Ministério Público, Controle Social, Participação Popular, Conselhos de Saúde e Direito à Saúde. No MesH, foram selecionados os descritores Public Ministry, Social Control, Social Participation, Health Councils and Health Rigths. As bases de dados definidas para as buscas foram: PubMed e BVS, além da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) e do Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES). Em seguida, foi utilizado o operador booleano e na associação entre os seguintes descritores: Ministério Público e Controle Social, Ministério Público e Participação Popular, Ministério Público e Conselhos de Saúde e, por fim, Ministério Público e direito à saúde. O mesmo procedimento foi adotado com os descritores em inglês e realizado na base de dados PubMed.
Para a seleção dos trabalhos, realizou-se a leitura dos resumos encontrados e, como critério de elegibilidade, utilizaram-se os trabalhos que apresentassem objetivo ou questão de pesquisa relacionados ao assunto desta investigação, ou seja, que avaliassem a atuação do Ministério Público e/ou dos Conselhos de Saúde na realização do controle social no SUS, a interação entre essas instâncias para o cumprimento da diretriz de participação popular prevista na Constituição Federal. Além disso, outro critério utilizado foi a disponibilização integral e gratuita do texto nas bases de dados utilizadas, em inglês ou português. Por fim, foram excluídos os textos que abordassem os conselhos de saúde ou o controle social, mas que não contivessem a perspectiva da relação dialógica interinstitucional na pesquisa.
A seleção dos estudos que cumpriam com os critérios de elegibilidade e comporiam essa revisão foi realizada através da leitura e análise crítica dos resumos. Com o intuito de auxiliar na visualização dos principais resultados dos artigos selecionados foram catalogadas no Quadro 1 as seguintes informações: autor(es) e ano de publicação, objetivo ou questões de pesquisa e resultado, selecionando-se categorias temáticas identificadas após análise descritiva e qualitativa da amostra bibliográfica. O processo foi realizado por meio da avaliação por pares e os desacordos sanados por consenso.
Quadro 1 Caracterização dos estudos incluídos de acordo com os eixos temáticos, principal objetivo e resultado.
Eixos Temáticos | Autor/Ano | Objetivo principal | Resultado principal |
---|---|---|---|
Ministério Público, o Direito à Saúde e o Controle Social no SUS | Oliveira et al., (2015)13 | Analisar as possibilidades de contribuição do Ministério Público em favor da efetividade do direito à saúde. | A atuação extrajudicial do Ministério Público mostra-se mais adequada para lidar com a complexidade do direito à saúde e das políticas de saúde no Brasil. |
Machado, (2013)4 | Analisar como o MP pode contribuir para a efetividade dos conselhos gestores. | Há importância na interface entre o MP resolutivo, a gestão social e os conselhos gestores. | |
Lehmann, (2013)8 | Análise de como deve agir o Ministério Público no campo da participação popular em saúde. | O Ministério Público deve focar sua atuação no fortalecimento da participação popular. | |
Oliveira, (2013)14 | Avaliar a tensão existente entre a atuação preventiva e a autonomia institucional do Ministério Público brasileiro. | O Ministério Público deve encontrar soluções pela via resolutiva, que fornece mecanismos de ampliação da participação democrática do cidadão. | |
Santana, (2011)11 | Examinar a atuação da Promotoria de Justiça junto ao Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. | A atuação extrajudicial do MP proporciona um espaço precioso de interação com os conselhos de saúde, fortalecendo a atuação destes. | |
Batista e Melo, (2011)15 | Entender como os atores sociais garantem o direito de participação na tomada de decisão política na Saúde. | Há um retrocesso na prática participativa no setor da saúde. | |
Asensi, (2010)12 | Estudar como se desenvolve o arranjo institucional entre MP, sociedade e membros da gestão municipal. | O arranjo institucional criado entre o MP, conselhos de saúde e gestão têm possibilitado uma atuação voltada para a esfera pública. | |
Ribeiro, (2008)6 | Identificar as possibilidades de interação entre MP e conselhos de saúde na defesa do direito à saúde. | Interação entre os atores marcada pela subordinação. A ofensa aos princípios do SUS encontra resistência nas ações do MP. | |
Machado et al., (2006)16 | Analisar o novo modelo de participação, principalmente a partir dos atores institucionais MP e CS. | A associação entre CS e MP tem sido mais recorrente e representa vantagens recíprocas para estes dois atores sociais. | |
Machado, (2006)3 | Analisar as relações existentes entre o Ministério Público e o Conselho de Saúde. | O MP tem propiciado uma interlocução maior entre a gestão dos serviços e os conselhos de saúde, criando um espaço de diálogo. A atuação conjunta do MP com os Conselhos de Saúde tem levado a instituir novas formas e mecanismos de negociação e pactuação. | |
Democracia Participativa, Participação Popular e Conselhos de Saúde | Zambom e Ogata, (2013)17 | Analisar o controle social na perspectiva dos conselheiros de saúde. | Conselheiros de saúde não reconhecem a participação social como diretriz do SUS; centralização das decisões na gestão e valorização do saber técnico. |
Farias Filho et al., (2014)18 | Verificar a atuação dos conselheiros de saúde, sobre suas ações coletivas de participação. | Ações marcadas pela cooptação dos conselheiros de saúde e pela definição de agendas deliberativas pelo gestor. | |
Bispo Junior e Gerschman, (2013)5 | Analisar os Conselhos de Saúde enquanto espaços de ampliação da democracia. | Conselhos de Saúde são mecanismos de ampliação da democracia, compreendida como garantia dos direitos sociais. | |
Oliveira et al., (2013)19 | Descrever e analisar a dinâmica da participação social no CMS de Belo Horizonte (MG) e verificar a existência de sinais de reação institucional frente às dificuldades relatadas. | O Conselho de Saúde aciona diversos mecanismos para aprimorar seus modos de ação, organização e comprometimento dos atores para com esse fórum. | |
Moreira e Escorel, (2009)9 | Compreender reações e regras do processo de institucionalização dos Conselhos de Saúde. | Conselhos de Saúde têm problema de autonomia e organização. | |
Van Stralen et al., (2006)20 | Investigar a efetiva participação de Conselhos Municipais de Saúde na gestão das políticas de saúde. | Os conselhos têm pouco impacto sobre a reestruturação dos serviços de saúde. | |
Oliveira e Pinheiro, (2010)21 | Analisar as práticas de participação presentes no Conselho Municipal de Saúde de uma capital do Nordeste brasileiro e sua relação com a cultura política local. | Autoritarismo e cooptação nas relações entre os gestores municipais e os representantes da sociedade civil. Conselheiros reconhecem o frágil poder deliberativo e fiscalizador dos conselhos de saúde. |
Por fim, como estratégia de controle de viés entre os estudos, foi realizada busca de pesquisas ainda não publicadas em revistas ou periódicos científicos, com o objetivo de obter um panorama geral das temáticas abordadas nesses trabalhos e dos resultados encontrados no que se refere ao relacionamento interinstitucional entre o MP e os CMS no exercício do controle social no SUS.
A partir da utilização dos descritores acima citados, foi encontrado um total de 997 estudos. Após descarte dos resumos duplicados, a leitura dos resumos e a aplicação dos critérios indicados resultaram uma amostra final de 17 estudos (Figura 1), selecionados entre 2006 e 2015. Foram consultados estudos publicados em periódicos nacionais e internacionais que tivessem como objeto a realidade brasileira. O método qualitativo foi o mais empregado entre os artigos e dissertações presentes na amostra final e análise documental e entrevistas, as técnicas e instrumentos mais utilizados. Algumas pesquisas relacionadas ao Ministério Público não foram publicadas em revistas científicas, consistindo em seis dissertações de mestrado encontradas no Banco de Periódicos CAPES e na BDTD3,4,6,8,11,12.
A tentativa de controlar o viés de publicação, buscando estudos não publicados em periódicos científicos, não resultou em trabalhos a serem incluídos na revisão. A caracterização dos estudos selecionados foi sintetizada e apresentada no Quadro 1, onde também constam dados referentes ao principal objetivo e resultado.
Para caracterização dos resultados, estes foram divididos em dois eixos temáticos: a) Ministério Público, o Direito à Saúde e o Controle Social no SUS e b) Conselhos de Saúde, democracia participativa e participação popular (Quadro 1). Os eixos temáticos foram assim divididos para abordar as duas instâncias de controle aqui analisadas, relacionando o Ministério Público com as suas atribuições constitucionais na área da saúde e os Conselhos de Saúde com o ideal de democracia e participação a eles inerentes.
A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, possibilitando a participação popular, por meio de conselhos gestores, na construção de políticas públicas3,4,6,8. Por outro lado, ampliou as atribuições do Ministério Público e o incumbiu da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, fornecendo-lhe instrumentos para a defesa de direitos difusos e coletivos6.
Oliveira et al.13, com base em classificação desenvolvida por Marcelo Pedroso Goulart, afirmam que a atuação do Ministério Público brasileiro se encontra dividida em duas categorias, uma demandista e outra resolutiva. No primeiro caso, o membro do Ministério Público prestigia a atuação perante o Judiciário e no segundo prestigia a mediação dos conflitos sociais a partir de uma atuação extrajudicial13.
A atuação resolutiva tem melhor se adaptado à defesa do regime democrático4, porque implementa um novo diálogo que efetiva a democracia e a cidadania, atribuindo maior legitimidade às soluções encontradas13. Oliveira et al.13, avaliando as implicações da atuação resolutiva e demandista do Ministério Público, afirmam que a matriz resolutiva e extrajudicial é mais adequada para a complexidade do direito à saúde e das políticas de saúde.
Esse resultado parece confirmar os resultados obtidos nos estudos de Lehmann8, Asensi12, Oliveira14 e Santana11. Asensi12 afirma que a atuação extrajudicial do MP está calcada no diálogo, na interlocução que constrói soluções compartilhadas, contribuindo para tornar horizontais as relações entre Estado e sociedade e para a aproximação do MP da sociedade, o que permite que sua atuação seja revestida de maior legitimidade social12. Oliveira14, por sua vez, aponta duas vantagens da atuação resolutiva: (a) fortalece a atuação demandista, porque a torna mais seletiva; e (b) prioriza a atuação preventiva, a qual tem a possibilidade de transformar a realidade social e criar maior interação com a sociedade, fornecendo mecanismos de ampliação da participação democrática do cidadão14.
A análise dos resultados torna possível inferir que há uma certa plasticidade na atuação extrajudicial, que não seria possível na rígida atuação demandista, especialmente pela possibilidade de pactuação, realização de ajustes, utilização de espaços e disposições dialógicas que efetivam não só o direito à saúde, mas à participação plena de cidadania. Esta plasticidade, como qualidade de adaptação sem dano, é um atributo fundamental para que o Ministério Público realize com sucesso a aproximação dos demais atores sociais e fomente uma nova moldagem, mais resolutiva e contemplativa das sugestões plurais, do controle social no SUS.
Asensi12 afirma que por meio do recurso do diálogo desenvolve-se a juridicidade da saúde, que é a abordagem do conflito sob o ponto de vista jurídico, sem ocorrer necessariamente uma judicialização, levando a uma valorização das instituições pelo uso de práticas democráticas.
Na defesa do regime democrático, a atuação do Ministério Público na seara sanitária deve se direcionar não só para a garantia do direito à saúde, mas sobretudo para o correto funcionamento do sistema de saúde8. A instituição ministerial deve focar sua atuação principalmente na defesa da democracia deliberativa, materializada na forma da participação popular, este último princípio do SUS preconizado na Constituição Federal4.
Machado3 afirma que são nas próprias instituições do Estado que desembocam as ações da sociedade civil. Todavia, esta afirmação deve ser vista não só na perspectiva da sociedade que busca tutela, mas na perspectiva da sociedade que busca parceiras institucionais que fortaleçam movimentos ou lutas sociais existentes, que viabilizem o impacto ou a legitimidade necessários à efetivação de direitos. E a parceria institucional mais vocacionada à defesa do direito à saúde é aquela que se dá entre Ministério Público e Conselhos de Saúde, pois é elemento de fortalecimento do controle social e da defesa da saúde coletiva, o que explica a relevância da estruturação e interação dessas duas instâncias de controle.
Admitindo que o Conselho de Saúde é o principal parceiro do MP, Machado3 observa que existem vantagens recíprocas na atuação cooperativa, uma vez que o MP enriquece a atuação do CS de recursos simbólicos e práticos, e este legitima a ação do MP na defesa do direito à saúde trazendo demandas que têm como conteúdo a realidade social. O diálogo entre as duas instâncias é exemplo de como é possível ao MP escapar de práticas paternalistas que substituam a atuação da sociedade civil, e repensar sua prática jurídica, a partir de uma aproximação com a realidade da saúde pública3,16.
O Ministério Público deve buscar contribuir com os Conselhos de Saúde para que estes avancem, especialmente nas discussões que envolvam as questões regimentais e técnicas, embora o processo de discussão seja prejudicado por uma cultura política que tem dificuldades em reconhecer e respeitar o outro como cidadão19. O MP deve propiciar uma interlocução cada vez maior entre a gestão dos serviços e os Conselhos de Saúde, objetivando encontrar solução para os problemas de saúde do município.
O espaço de diálogo entre essas instâncias funda um novo campo de práticas de aprimoramento do Estado democrático, instituindo novas formas e mecanismos de pactuação entre as diferentes esferas dos poderes públicos e sua relação com a sociedade16, pois o Ministério Público deve estar presente, dialogando, fomentando e qualificando a participação popular, cumprindo importante papel educativo e criativo na mudança social3,16.
Lehmann8 usa a expressão democracia participativa, repetindo Paulo Bonavides, e a ela atribui o papel de resgate da sociedade como sujeito de direito ativo na fiscalização e gestão dos bens coletivos extrapatrimoniais, usando como instrumento a participação popular em espaços deliberativos, como os conselhos de saúde8. Os atores sociais devem se apropriar desses espaços democráticos, estabelecendo sólidas parcerias e internalizando as constantes lutas pela garantia dos direitos sociais constitucionalmente assegurados6.
Claro que estes autores se apropriam dos antecedentes epistemológicos contidos no discurso estruturante dos direitos sociais inscrito na teoria da metódica jurídica22-27 e da percepção que o discurso jurídico se constitui no modo construtor das identidades constitucionais de um povo e sua capacidade de articulação e de ação como condições de reação aos processos de exclusão sociais e da iconização do povo no viés de uma participação política meramente retórica22,23,25.
Durante o processo de redemocratização do país, os movimentos sociais retomaram a temática da participação popular como reivindicatória da democracia, vislumbrando um novo instrumento de expressão, representação e participação da sociedade, tendo a oportunidade de imprimir novo formato às políticas públicas, especialmente na área da saúde6. Com a percepção da insuficiência da democracia representativa em encontrar solução para os problemas apresentados, surge o ideal da democracia participativa como estratégia capaz de garantir maior participação dos cidadãos5,21.
Com a adesão da Constituição Federal de 1988 às bandeiras democráticas da Reforma Sanitária, foram institucionalizadas as formas de participação da comunidade no SUS: as conferências e os conselhos de saúde11,28. Os Conselhos de Saúde surgem para atender à diretriz constitucional de participação popular e como modelo de democracia participativa, pois inauguram a possibilidade da participação direta da população na gestão local6. Passados alguns anos da implantação formal desse modelo democrático de gestão é importante avaliar se as conquistas materiais de inserção da sociedade na gestão realmente ocorreram, bem como quais as dificuldades e soluções possíveis.
Oliveira e Pinheiro21 reconhecem a importância na democratização da relação entre Estado e sociedade civil e na luta para efetivação do direito à saúde por meio dos Conselhos de Saúde. Bispo Júnior e Gerschman5, por sua vez, afirmam que os conselhos são, na verdade, nova modalidade de relacionamento entre Estado e sociedade civil, o qual possibilitou a inserção da sociedade no núcleo decisório. Como resultado de um processo histórico de democratização5, os Conselhos de Saúde deveriam tornar mais próxima e responsiva a relação entre Estado e sociedade à medida que um número maior de cidadãos tem a oportunidade de participar do processo decisório9, convertendo-o em um espaço de ampliação da democracia5.
Moreira e Escorel9, analisando um estudo censitário divulgado nos 20 anos do SUS, afirmaram que os Conselhos de Saúde representam a mais ampla iniciativa de descentralização político-administrativa implementada no país, embora existam fatores que dificultam a democratização do processo decisório das políticas de saúde. Para os autores, os Conselhos de Saúde mais organizados e autônomos estão localizados nos municípios que apresentam uma sociedade civil mais mobilizada e acostumada à articulação política9. Isso demonstra que a realização do direito à saúde é uma tarefa constante de mobilização social3, ou seja, os Conselhos de Saúde só conseguem exercer efetivamente seu papel de instância democrática e deliberativa em ambientes onde os valores democráticos são respeitados e valorizados5.
Os Conselhos de Saúde realizam controle social sobre a gestão do sistema de saúde, incluindo novos atores na discussão de suas políticas, permitindo o surgimento de decisões legítimas, em consonância com os princípios constitucionais preconizados para o SUS20. Todavia, há dificuldades dos conselheiros em efetivar uma interlocução com as bases de representação e de acesso à informação, o que torna premente a necessidade de articulação e capacitação para que haja o fortalecimento do controle social17.
Com o evidente processo de desmobilização dos movimentos sociais na atualidade11, a avaliação das bases e relações democráticas na política municipal de saúde demonstra que está havendo um retrocesso na prática participativa no setor de saúde, com a existência de obstáculos que vão desde a incredulidade do cidadão em relação à participação popular e o uso indevido do conhecimento técnico para dificultar a tímida participação identificada15 até manipulação da composição e ingerência dos gestores no seu funcionamento6.
Os resultados de Farias Filho et al.18 apontam para o descumprimento dos princípios constitucionais do SUS e para a fragilização da imagem social dos conselheiros. Há registros de que os Conselhos de Saúde não são reconhecidos por uma parcela significativa da população como representantes de seus interesses ou como responsáveis por balizar os rumos do governo5. A diferença principal desses resultados para as pesquisas anteriores está em indicar uma falha no processo de identidade e ressonância da representação dos conselhos de saúde, tendo alcance limitado por não ter relacionado fragilização da imagem social dos conselhos e efetividade da participação popular.
Das dificuldades enfrentadas pelos Conselhos de Saúde, e que representam demanda concreta para a atuação do Ministério Público, identificadas nas pesquisas selecionadas, destacam-se aquelas relacionadas à fragilidade da vida associativa5,19, à fragilidade no vínculo entre os conselheiros e à necessidade de capacitação técnica e política, possibilitando uma intervenção mais argumentativa14. Além destes, outros aparecem de forma mais difusa: falta de estrutura de trabalho, deficiências no processo de representação e participação popular, cooptação pelos governantes, problema de autonomia e organização, falta de transparência e resolutividade nas deliberações, prevalência do saber técnico, entre outros.
Os Conselhos de Saúde devem superar essas limitações institucionais4, por meio do acionamento dos diversos mecanismos para aprimorar seus modos de ação, organização e comprometimento dos atores19. Todas essas desconformidades no funcionamento limitam a efetividade do controle social por eles exercido, demandando a colaboração de instituições como o Ministério Público, que pode agir de duas formas: a) interna, regularizando questões relacionadas à estrutura de trabalho, paridade na composição ou mesmo no cumprimento das diretrizes da Resolução nº 453/201229; e b) externa, fomentando a participação popular, a transparência, a pactuação e a efetividade das deliberações tomadas pelos conselhos de saúde, evitando a desmobilização pela participação desligada da decisão15.
A política de saúde no Brasil é uma dinâmica que envolve muitos agentes em um novo modelo de participação implantado após a redemocratização no país, em que o Ministério Público tem um papel de articulação fundamental16. Se o Conselho de Saúde é o sujeito empenhado na materialização do direito à saúde, o Ministério Público é o agente canalizador dessa reivindicação4.
Observa-se que a maioria dos artigos científicos e dissertações de mestrados analisados apontam para a importância da interface entre relação entre o Ministério Público e os Conselhos de Saúde no fortalecimento do controle social.
Verificou-se que cabe ao Ministério Público contribuir para a efetividade do direito à saúde, que pode se dar por meio do fortalecimento do controle social exercido com os conselhos municipais de saúde. O controle institucional no SUS realizado pelo Ministério Público, principalmente no que diz respeito à sua atuação e interação com os Conselhos de Saúde, vem sendo desenvolvido mais sobre a matriz resolutiva e extrajudicial, com o fortalecimento da interlocução com os demais órgãos de controle social, tornando mais horizontais e permeáveis as relações entre Estado e sociedade.
Verificou-se que existe diálogo interinstitucional, bem como que ele inovou na resolução de conflitos imprescindível para o fortalecimento recíproco das duas instâncias e para a efetivação do controle social do SUS, pois o Ministério Público pode garantir o funcionamento autônomo e o cumprimento das decisões dos Conselhos de Saúde e estes, por sua vez, podem legitimar a atuação do Ministério Público, ou seja, os dados parecem confirmar que há a necessidade de aproximação e interlocução entre as instâncias de controle, com ganhos para todos.
O atual contexto político brasileiro, com a ameaça de congelamento dos recursos da saúde, exige que o Ministério Público esteja cada vez mais próximo das demandas sociais, estimulando e fortalecendo a participação popular e a superação das deficiências enfrentadas pelos Conselhos de Saúde, buscando impedir o retrocesso democrático.
Os resultados sugerem que os Conselhos de Saúde já consolidaram sua criação, mas ainda persistem dificuldades e desafios para a gestão democrática e transparente dos recursos na saúde, o que abre espaço e justifica a prontidão da atuação extrajudicial e resolutiva do Ministério Público, especialmente no que diz respeito ao: (a) fomento da participação popular, por meio da mobilização social e da articulação política, (b) estímulo e fiscalização da capacitação técnica regular dos conselheiros de saúde, (c) mediação para a instituição de novas formas de pactuação entre gestores e sociedade no enfrentamento das problemáticas que apontam desvios de execução das políticas dos serviços de saúde, d) aprimoramento das condições estruturais e administrativas de trabalho dos conselheiros; e) fiscalização do cumprimento da Resolução 453/2012, principalmente no que diz respeito à eleição para a presidência dos conselhos de saúde, verificando-se a necessidade de alteração das legislações locais, e a g) judicialização racional e adequada das políticas de saúde buscando o reequilíbrio das responsabilidades federativas.