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O papel da diurese osmótica induzida por ureia na geração de hipernatremia no paciente crítico: relato de caso e revisão da literatura

O papel da diurese osmótica induzida por ureia na geração de hipernatremia no paciente crítico: relato de caso e revisão da literatura

Autores:

Jesiree Iglésias Quadros Distenhreft,
Júlia Guasti Pinto Vianna,
Gabriela S. Scopel,
Jayme Mendonça Ramos,
Antonio Carlos Seguro,
Weverton Machado Luchi

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 25-Abr-2019

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0226

INTRODUÇÃO

A hipernatremia no ambiente de terapia intensiva é um problema comum, com prevalência que pode chegar a 25%. Está associada a maior tempo de internação hospitalar e é um fator de risco independente para mortalidade.1 Representa um déficit de água em relação à quantidade de sódio corporal, podendo ocorrer devido à perda de água livre de eletrólitos e/ou ao ganho de sódio. A perda de água livre secundária à diurese osmótica frequentemente resulta de elevadas concentrações de glicose ou ureia na urina ou pelo uso de manitol.2 Em pacientes críticos, a elevada oferta proteica, o estado de hipercatabolismo, sangramento do trato gastrointestinal e altas doses de corticoides podem impulsionar uma excessiva geração de ureia, diurese osmótica e consequentemente hipernatramia.3 Utilizamos o relato de caso a seguir para ilustrar a abordagem diagnóstica da hipernatremia associada à diurese osmótica secundária à geração excessiva de ureia, enfatizando a importância do cálculo do clearence de água livre de eletrólitos nesse contexto.

APRESENTAÇÃO DO CASO

História clínica e Exames Laboratoriais Iniciais

Paciente do sexo feminino, 72 anos, com antecedentes de Hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus tipo 2 e insuficiência cardíaca, foi admitida no setor de emergência com edema agudo de pulmão hipertensivo (PA 250/150 mmHg), evoluindo com necessidade de ventilação mecânica invasiva. O eletrocardiograma evidenciou bloqueio de ramo esquerdo, porém os marcadores de necrose miocárdica foram negativos e o cateterismo cardíaco não mostrou obstruções significativas. Os exames laboratoriais da admissão não apresentavam alterações dignas de nota.

No quarto dia de internação foi extubada, porém apresentou laringoespasmo grave refratário às medidas clínicas, dentre elas o uso de corticoide, requerendo reintubação. Devido à presença de sinais de congestão em radiografia de tórax, além de edema periférico e oligúria, foi iniciado 40 mg/dia de furosemida endovenosa. Evoluiu com pneumonia associada à ventilação mecânica e elevação progressivamente dos níveis de sódio, chegando a 165 mEq/L (Tabela 1). O tratamento com SF 0,45% e água livre pela sonda enteral foi instituído, sem melhora da natremia. Em seguida, durante o processo de desmame ventilatório, observou-se ao exame físico hemiparesia à direita. A tomografia computadorizada de crânio evidenciou um acidente vascular isquêmico em território de artéria cerebral média esquerda com discreta transformação hemorrágica. Após extubação, manteve-se afásica e com disfagia, permanecendo em dieta enteral. A Tabela 1 resume a evolução dos parâmetros laboratoriais e os dados clínicos relevantes ao caso.

Tabela 1 Parâmetros laboratoriais durante a internação* 

Exames de sangue Admissão 4º diaa 6º diab 12º diac 14º diad,e 19º dia Valores de referência
Creatinina (mg/dL) 0,8 0,79 0,86 1,88 1,53 0,59 0,7 – 1,2
Ureia (mg/dL) 25 61 80 206 239 49 10 - 25
Sódio (PNa) (mEq/L) 139 141 150 153 165 141 135 - 145
Cloro (mEq/L) 102 101 106 101 117 100 98 - 107
Potássio (mEq/L) 3,9 4,2 3,3 3,9 3,4 4,04 3,5 – 5
Bicarbonato (mEq/L) 24,7 25,2 30 36,5 24 22 22 - 24
Glicose (mg/dL) 130 139 181 247 270 208 <140
Osmolaridade (POsm) (mOsm/L) 345 275 - 295
Urina de 24 horas
Volume urinário (UVol) (mL) 800 1.500 2.055 2.025 2.500 < 3.500
Creatinina (g) 1,05 g (51,63mg/dL) 0,7 – 1,3
Ureia (g) 48,9 g (2.413 mg/dL) 24,6g (984 mg/dL) 15 - 35
Sódio (UNa) (mEq/L) 22 68 40 - 220
Potássio (UK) (mEq/L) 62 25 15 - 125
Glicose (g) Negativo** 0,072 (4 mg/dL) < 0.5
Osmolaridade (UOsm) (mOsm/L) 570 350 50 – 1.200
Osmóis medidos na urina
Total de Osmóis 1.154 875 600 - 800
Ureia 814 410 350 - 450
Sódio + Potássio 340 465 300 - 350

aInício da administração de corticoide e furosemida;

bInício da administração de dieta hiperproteica;

cSuspensão da furosemida;

dAvaliação pela Nefrologia;

eSuspensão do corticoide e administração de dieta normoproteica.

*Cálculos e fórmulas utilizados na avaliação da Nefrologia estão representados no Box 1.

**Urina tipo 1 com glicose negativa.

Investigações adicionais

Ao ser avaliada pela equipe de Nefrologia, no décimo quarto dia de internação, a paciente encontrava-se clinicamente hipervolêmica, com balanço hídrico acumulado positivo, apesar da diarreia e do estado febril, estável hemodinamicamente, tendendo à hipertensão, e ainda em uso de altas doses de corticoide endovenoso (metilprednisolona 75 mg, 8/8 horas), iniciado em decorrência do laringoespasmo. A furosemida havia sido suspensa no décimo segundo dia de internação devido à piora de função renal e hipernatremia. A paciente recebia dieta enteral com as seguintes características: dieta para diabetes, volume/dia = 1.500 mL, hiperproteica (75g/L), com osmolaridade de 530 mOsm/L e concentração de sódio de 17 mEq/L. De acordo com o peso estimado de 60 quilos, recebia uma oferta proteica de 1,8 g/kg.

A partir dos dados de urina de 24h e dos exames séricos descritos na Tabela 1, foram realizados os seguintes cálculos: clearence de água livre (CH2O) = - 1.320 mL; clearence de água livre de eletrólitos (CeH2O) = + 957 mL; total de osmóis = 1.154 mOsm; osmóis gerados pela ureia = 814 mOsm; osmóis gerados por Na + K = 340 mOsm. O Box 1 descreve as fórmulas e os cálculos utilizados no caso.

Box 1 Cálculos e fórmulas utilizados na interconsulta da Nefrologia 

1. Osmolaridade plasmática efetiva:
2 [PNa (mEq/L)] + [glicose (mg/dL)/18] 2 [165] + [270/18] = 345 mOsm/kg
2. Osmolaridade urinária:
2 [UNa (mEq/L) + UK (mEq/L)] + [ureia urinária (mg/dL)/6] + [glicose urinária (mg/dL)/18] 2 [22 + 62] + 2413/6 + 4/18 = 570 mOsm/kg
3. Excreção de osmóis urinários (calculados a partir da urina de 24h):
Total Ureia Na + K
Osmolaridade urinária UOsm X 24h UVol 570 mOsm/kg X 2,025 L 1,154 osmóis [Ureia urinária (mg/dL)/6] X 24h UVol 402 mOsm/kg X 2,025 L 814 osmóis 2 [UNa (mEq/L) + UK (mEq/L)] X 24h UVol 168 mOsm/kg X 2,025 L 340 osmóis
4. Free Water Clearance (CH2O):
UVol (mL) x (1 - UOsm/POsm) 2.025 x (1 – 570/345) = - 1320 mL
5. Electrolyte Free Water Clearance (CeH2O):
UVolmLx1UNamEq/L+UKPNamEq/LmEq/L=2.025x122+62165=+957mL

Diagnóstico

Hipernatremia induzida por diurese osmótica secundária à excessiva geração de ureia.

Acompanhamento clínico

A partir da identificação da hipernatremia secundária à geração excessiva de ureia, institui-se uma redução da oferta proteica (1,0 g/kg) e da osmolaridade da dieta enteral e o desmame do corticoide, havendo a partir de então queda progressiva dos níveis de ureia e sódio. Após cinco dias da instituição dessas medidas, a ureia urinária reduziu-se a 24,6 g ao dia, respondendo por 410 mOsm do total de 875 mOsm na urina, corrigindo o efeito osmótico prévio induzido pela excessiva geração de ureia. O sódio plasmático encontrava-se em 141 mEq/L.

DISCUSSÃO

A descrição ilustra um caso de hipernatremia de etiologia multifatorial no ambiente de terapia intensiva. Apesar de a furosemida ter um papel inicial na elevação dos níveis de sódio, destacaremos o papel da diurese osmótica por geração excessiva de ureia, uma causa de hipernatremia pouco conhecida e subdiagnosticada. Embora os dados de prevalência na literatura sejam escassos, o estudo de Lindner G e colaboradores demonstrou que a diurese osmótica secundária à ureia foi o fator causal em 10% dos casos que evoluíram com hipernatremia na unidade de terapia intensiva.3 Discutiremos abaixo os conceitos fisiopatológicos essenciais para a abordagem desse diagnóstico, e em seguida utilizaremos os dados do nosso caso para aplicarmos a esses conceitos.

Conforme ilustrado na Figura 1A, o volume urinário é composto por água e solutos. Os solutos podem ser divididos em eletrólitos (sódio, potássio, etc.) e não-eletrólitos (como ureia, glicose, creatinina, etc.). A parte do volume urinário necessária para excretar todos os solutos através de uma urina com concentração osmótica similar (isoosmolar) ao plasma é chamada de clearence osmolar (COsm). Já a parte do volume da urina que está livre de solutos representa o clearence de água livre (CH2O). O CH2O também pode ser conceituado como a quantidade de água que deve ser adicionada ou removida ao COsm para completar o volume total de urina medido nas 24 horas. Outro conceito importante é o clearence de água livre de eletrólitos (CeH2O), que consiste no volume da urina que está livre apenas dos solutos eletrólitos.3,4

Figura 1 A. Composição do volume urinário e sua relação com o clearance osmolar (COsm), o clearance de água livre (CH2O) e o clearance de água livre de eletrólitos (CeH2O) em diferentes situações de tonicidade da urina: Iso-osmolar, hipertônica e hipotônica. B. Situação habitual durante a eliminação de uma urina hipertônica: o CH2O é negativo, cenário em que o organismo retém água. Isso ocorre pelo aumento da reabsorção de água livre de solutos no ducto coletor por ação do hormônio antidiurético, o que é referido como TCH2O. Observe que o CeH2O também é negativo, representando que a maior parte dos solutos (osmóis) da urina são compostos por eletrólitos, Na e K (CE). Inversamente, no cenário de diurese osmótica, o cálculo do CH2O também é negativo, porém o CeH2O é positivo, demonstrando que a maior parte dos solutos são compostos por não eletrólitos (CNE>CE) e a maior parte do volume urinário está destinada para excretá-los, ao invés de solutos eletrólitos, configurando perda de água, e não retenção. CE = clearance de eletrólitos; CNE = clearance de não eletrólitos; Uosm = osmolaridade urinária; Posm = osmolaridade plasmática 

A modulação do CH2O é dada em especial pelo hormônio antidiurético (ADH), que por sua vez é dependente da natremia. Em situações habituais, quando há elevação da osmolaridade plasmática, o CH2O ficará negativo em decorrência da elevação do ADH, deixando a urina hiperosmolar em relação ao plasma, indicando que o organismo está conservando água. Inversamente, quando a osmolaridade plasmática reduzir, o valor do CH2O será positivo e a osmolaridade urinária será menor que a plasmática, indicando que o organismo está perdendo água. Todavia, como veremos adiante, é o CeH2O que de fato expressará perda ou retenção de água em relação às mudanças no sódio plasmático.5,6

A osmolaridade plasmática e urinária englobam predominantemente em seus cálculos as concentrações de sódio, potássio, glicose e ureia (Box 1). Entretanto, a ureia, por não ter carga elétrica e movimentar-se livremente do intra para o extracelular no plasma, não é capaz de gerar gradiente osmótico efetivo. Assim, mesmo com níveis plasmáticos elevados, ela não pode determinar alterações dos níveis de ADH.7 Por outro lado, apesar de ser parcialmente reabsorvida no túbulo proximal, em altas concentrações, a ureia comporta-se como um soluto não permeável, exercendo propriedades osmóticas. A ureia participa da concentração urinária ao se acumular no interstício medular, aumentando o gradiente gerado pelo mecanismo de contra-corrente para reabsorção de água. No entanto, existe uma proporção ótima entre a osmolaridade gerada pela ureia e pelos solutos não ureia de 0,2 a 1,2. Acima desse valor, o excesso de ureia excretada terá pequena ou nenhuma influência na concentração do interstício medular. Consequentemente, ela permanece nos túbulos e passará a ter efeito osmótico, responsável pela perda de água livre de eletrólitos.6,8 Esse mecanismo dará origem à hipernatremia. Do ponto de vista prático, além da relação entre a porção da osmolaridade urinária gerada pela ureia e pelos solutos não ureia > 1,2, a concentração urinária de ureia superior a 250 mmol/L (> 1.500 mg/dL) também sugere a presença do efeito osmótico.5

Além da geração excessiva de ureia, a diurese osmótica pode estar presente nas seguintes situações: glicosúria (> 250 mmol/L ou > 4,5g/dL), uso de manitol e durante a fase de recuperação de lesão renal aguda (LRA).4 Nesta situação, a osmolaridade urinária será superior à osmolaridade plasmática às custas de solutos não eletrólitos, e o CH2O estará negativo por considerar no seu cálculo a osmolaridade urinária por todos os solutos, sugerindo equivocadamente retenção de água (Box 1 e Figura 1B). Dessa forma, o cálculo do CeH2O, por não considerar os níveis de ureia e os outros solutos não eletrólitos em sua fórmula, é mais acurado que o CH2O para predizer se está ocorrendo perda ou retenção de água.3,4 Adicionalmente, diante de um contexto de hipernatremia, também podemos inferir que está ocorrendo perda de água livre quando a soma das concentrações de Na+ + K+ da urina for menor que a concentração de Na+ do plasma [(UNa+K)/(PNa) < 1]. Portanto, a diurese osmótica deve ser suspeitada quando a osmolaridade urinária > 300 mOsm/L (ou superior à plasmática) na presença de elevado volume de urina (em geral > 2,5 L/24h), associado a CH2O negativo e CeH2O positivo.9,11 Ela é confirmada quando a taxa de excreção de solutos não eletrólitos for superior a 600 mOsm/24h (Figura 2). É importante ressaltar que o volume urinário pode estar < 2,5 L/24h quando houver LRA concomitante ou perda significativa extrarrenal de água.5,9

Figura 2 Algoritmo de investigação diagnóstica da hipernatremia induzida por ureia 

No caso em questão, a concentração de ureia na urina foi de 2.413 mg/dL, responsável por 402 mOsm/L dos 570 mOsm/L da osmolaridade urinária (relação da osmolaridade gerada pela ureia/solutos não ureia = 2,39), deixando evidente a contribuição da ureia no total de osmóis da urina (814 mOsm do total de 1.154 mOsm) (Tabela 1). Apesar de a paciente ter hiperglicemia, a glicosúria foi irrisória, não sendo o fator responsável pela diurese osmótica. O elevado nível plasmático de ureia presente neste caso pode estar relacionado aos seguintes fatores: uso de elevadas doses de corticoide, dieta hiperproteica e hipercatabolimo associado ao quadro infeccioso. Se considerarmos apenas a geração de ureia pela dieta hiperproteica, teríamos uma produção aproximada de 36 g de ureia (( 34% do conteúdo proteico ingerido) do total de 48,9 g (Tabela 1), indicando que há outros fatores associados.

Pelo exposto acima, a paciente apresentava osmolaridade urinária maior que a plasmática (570 mOsm/L vs. 345 mOsm/L) e valor do CH2O negativo de 1.320 mL, sugerindo retenção de água no contexto de hipernatremia. Entretanto, o valor do CeH2O positivo de 957 mL/dia, e (U22+62)/(P165) < 1, indica que há perda de água livre. Através do CeH2O positivo é possível notar que a urina na verdade está diluída, e não concentrada em relação ao plasma, visto que os eletrólitos são responsáveis por apenas 168 mOsm/L dos 570 mOsm/L da osmolaridade urinária. A hiperosmolaridade da urina se dá às custas de ureia. Não há, portanto, retenção de água, e sim perda de água livre.

Importante mencionar que o aumento dos níveis plasmáticos de sódio observado nos primeiros dias de internação (D6) não esteve relacionado à geração excessiva de ureia, e sim ao uso de furosemida, prescrita no quarto dia devido à congestão pulmonar, oligúria e edema de membros inferiores, no contexto da falha de extubação associada ao laringoespasmo. Ela também foi responsável pela alcalose metabólica e hipocalemia observadas na Tabela 1. Foi suspensa no décimo segundo dia por piora da função renal, apesar de ainda manter balanço hídrico acumulado positivo. A hipernatremia associada à diurese osmótica induzida por ureia em geral se apresenta mais tardiamente durante a internação hospitalar, conforme observado neste relato, visto a necessidade de maior tempo para uma geração excessiva de ureia pelos fatores desencadeantes mencionados acima.

Diversos fatores somaram-se ao longo da internação e resultaram no estado de hipernatremia hipervolêmica encontrado no nosso caso. Foram eles: sobrecarga hidrossalina, retenção de sódio pelo corticoide, oligúria secundária à injúria renal, uso de furosemida e a maior perda de água relativa à perda de sódio durante a diurese osmótica. A hipernatremia hipervolêmica também tem sido relatada durante a fase de recuperação da injúria renal em pacientes previamente expostos a severa sobrecarga hidrossalina. Durante essa fase, apesar da melhora progressiva do ritmo de filtração glomerular, os mecanismos de reabsorção tubular de ureia e de concentração urinária ainda persistem comprometidos, e a filtração do excesso de ureia acumulada no plasma favorecerá a diurese osmótica.9 Isso pode ser observado no presente caso, visto que foi durante o período de início da queda da creatinina plasmática (D12->D14, Tabela 1) que o nível plasmático do sódio alcançou seu maior valor.

Em adição, a poliúria esperada durante a fase de diurese osmótica não foi evidente no nosso caso devido à perda extrarrenal de água por diarreia e febre e pela injúria renal aguda. Inversamente, quando não há LRA e sobrecarga hidrossalina precedendo ou concomitante à geração excessiva de ureia, a hipernatremia cursará com poliuria e hipovolemia (Figura 2). Devido à elevação plasmática desproporcional de ureia em relação à creatinina, o quadro pode mimetizar um padrão de LRA pré-renal.

A hipernatremia, e o estado hiperosmolar associado, promovem uma infinidade de efeitos nas funções corporais, resumidas na Figura 3.10,11 No sistema nervoso central, a hiperosmolaridade desloca água livre do espaço intra para o extracelular, retraindo as células cerebrais, o que pode causar ruptura vascular. Esse efeito pode ter contribuído para o desenvolvimento do AVC da nossa paciente. A prioridade do tratamento é a retirada do fator causal e o aumento da oferta de água filtrada por via oral ou por sonda nasoentérica (Figura 2). Mesmo utilizando-se de uma solução hipotônica a 0,45% (Osm: 154 mOsm/L), haverá pouco ou nenhum efeito sobre a redução do sódio, pois a osmolaridade dessa solução sempre estará próxima à fração da osmolaridade determinada pelos eletrólitos na urina (no nosso caso, de 168 mOsm/L).3 Quando a hipervolemia estiver presente, o uso de diuréticos tiazídicos podem contribuir para o tratamento. Os tiazídicos aumentam a excreção de sódio no néfron distal numa proporção maior do que o aumento do volume urinário, levando à redução do CeH2O.12 Nos casos cuja função renal está em fase de recuperação, a resolução da hipernatremia ocorrerá em dias. Caso contrário, a indicação de diálise poderá ser necessária.

Figura 3 Representação das múltiplas consequências da hipernatremia e da hiperosmolaridade no organismo. Adaptado de Lindner G e cols.11  

Em resumo, os efeitos deletérios da hipernatremia reforçam a necessidade da investigação diagnóstica criteriosa e do conhecimento da fisiopatologia desse distúrbio. A hipernatremia associada à diurese osmótica por geração excessiva de ureia deve fazer parte do diagnóstico diferencial das causas de hipernatremia no ambiente de terapia intensiva. Dietas e suplementos hiperproteicos, estado de hipercatabolismo, uso de altas doses de corticoides e sangramento do trato gastrointestinal estão entre os principais fatores causais, especialmente no contexto de recuperação de IRA. O conceito do CeH2O é essencial para o diagnóstico dessa causa de hipernatremia.

REFERÊNCIAS

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