versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.17 no.3 Porto Alegre jul./set. 2018 Epub 30-Ago-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.000418
O implante de cateter venoso central (CVC) para hemodiálise é um procedimento comum em grandes centros, embora nem sempre o profissional disponível seja devidamente treinado para realizá-lo 1 . Entre as complicações documentadas estão a punção arterial inadvertida com agulha pequena (5%), a passagem da cânula na artéria (0,1 a 0,8%) e consequente ocorrência de hemotórax, hematoma com obstrução de vias aéreas, pseudoaneurisma, fístula arteriovenosa e acidente vascular encefálico 2 . O dispositivo associa-se a cerca de 65% dos casos de trombose venosa profunda do membro superior 3 , e a incidência de infecção está entre 1,1-7,5 por 1.000 cateteres inseridos em pacientes oncológicos 4 . O papel da ultrassonografia vascular na prevenção, no diagnóstico e na condução evolutiva das referidas situações encontra-se ilustrado nos casos a seguir.
Paciente masculino, 66 anos, tinha neoplasia maligna avançada da próstata, com metástases ósseas e insuficiência renal dialítica. Internado em um hospital oncológico, foi encaminhado à unidade de terapia intensiva (UTI) para implante de cateter e sessão de hemodiálise. O plantonista optou pelo acesso em veia subclávia esquerda, utilizando marcadores anatômicos como guias. O sangue aspirado na punção parecia de natureza venosa e a passagem do fio-guia ocorreu sem dificuldades, mas, após a dilatação do pertuito e o implante do cateter, houve retorno de fluxo pulsátil. O posicionamento inadvertido na artéria subclávia esquerda (ASCE) foi confirmado por gasometria e Doppler ( Figura 1 ). O exame afastou a possibilidade de lesão em carótidas e vertebrais, cuja morfologia e fluxo eram normais. O exame físico demonstrou pulsos braquial e radial 4+. O dispositivo foi mantido in situ, e o doente foi encaminhado para um hospital com serviço de cirurgia vascular e endovascular. Dificuldades inerentes ao Sistema Único de Saúde brasileiro levaram à demora de 18 dias na transferência. Havendo risco de complicações fatais, o cateter não foi removido da ASCE e o paciente não foi anticoagulado devido à história recente de melena. Após a transferência, o cateter foi removido, mas o reparo endovascular não foi possível devido à visualização de trombo no lúmen arterial. Não houve sangramento ou formação de hematoma, e o membro superior esquerdo manteve-se perfundido, embora o pulso braquial fosse 2+ e os pulsos distais estivessem ausentes naquele momento. O paciente retornou ao hospital oncológico de origem. A ecografia vascular com Doppler foi realizada novamente e revelou presença de trombo subagudo em ASCE, onde o fluxo era monofásico ( Figuras 2 e 3 ), configurando padrão de suboclusão. A topografia da trombose arterial foi distal à emergência da artéria vertebral. Nesta última, o fluxo era laminar, anterógrado e com velocidades dentro do limite da normalidade ( Figura 4 ). Observou-se, na transição subclávia-axilar, a presença de ramo arterial com fluxo invertido, o qual, pela topografia, poderia corresponder à artéria escapular dorsal ( Figura 5 ). As artérias axilar ( Figura 6 ) e braquiais encontravam-se pérvias e tinham fluxo desacelerado de baixa resistência, assim como as artérias radial e ulnar. A conduta para o caso foi expectante, considerando-se, além da mencionada contraindicação para anticoagulação, a elevada morbidade para a revascularização aberta no doente em questão e os preditores desfavoráveis à patência de um possível bypass: tempo de evolução do trombo (22 dias), mau prognóstico da neoplasia e presença de insuficiência renal. O paciente foi observado por mais 2 semanas, não apresentando cianose, dor de repouso ou lesão trófica. Recebeu alta hospitalar para cuidados paliativos domiciliares.
Paciente masculino, 56 anos, estava sendo acompanhado em hospital oncológico por neoplasia maligna da bexiga, antecedentes cirúrgicos de cistectomia radical e nefrostomias. Evoluiu com insuficiência renal dialítica e recebeu implante de CVC na veia jugular interna direita (VJID), sem intercorrências. Durante o internamento, iniciou tratamento para pielonefrite. Paralelamente, evoluiu com exteriorização e perda do acesso vascular. Tendo em vista a estabilização das escórias nitrogenadas e produção de urina pela nefrostomia esquerda, permaneceu sem necessidade de hemodiálise por 9 dias, quando apresentou piora da função renal e hipercalemia. Na ocasião, foi encaminhado à UTI para novo implante de CVC. Ao mapeamento com ultrassonografia vascular para definir o melhor sítio de punção, observou-se a presença de trombo heterogêneo com cauda flutuante em VJID ( Figura 7 ), sítio onde o cateter prévio permaneceu por 1 semana. A veia jugular interna contralateral encontrava-se pérvia, sendo eleita para o acesso vascular em questão, considerando-se a urgência dialítica. Não havendo história de sangramento recente, o paciente foi tratado conforme as recomendações do CHEST 2016 5 , com anticoagulação plena com heparina não fracionada, concomitante à varfarina, suspendendo-se a heparina após a razão normalizada internacional (RNI) atingir a faixa terapêutica. O paciente apresentou calafrios após iniciar a hemodiálise pelo novo cateter. Coletadas as hemoculturas, iniciou-se esquema antimicrobiano amplo, ponderando-se a colonização cutânea por estafilococos e a possibilidade de disseminação hematogênica do germe urinário. Decorrida uma semana, o paciente não apresentava mais febre ou calafrios. Um novo Doppler foi realizado, evidenciando ainda a presença da trombose, porém a imagem sugeria retração ( Figura 8 ), compatível com a fase de organização do trombo. O paciente prosseguiu em investigação para suspeita de recidiva tumoral em rim direito, com recomendação de manter a anticoagulação por 3 meses.
Ambos os casos ilustram complicações relacionadas ao implante do CVC de curta permanência para hemodiálise. O caso 1 descreve a passagem inadvertida do acesso na ASCE, complicação rara, porém fatal quando não conduzida corretamente. Guilbert et al. documentaram uma maior morbimortalidade quando a conduta adotada é a simples remoção seguida de compressão manual do sítio 2 . Embora o reparo endovascular das lesões traumáticas no território axilo-subclávio seja factível em cerca de 50% dos casos 6 , o paciente em questão apresentou trombose subaguda no leito arterial, consequente à permanência, por 18 dias, do cateter in situ sem anticoagulação. O estudo de Nicolajsen et al. 7 demonstrou um risco de 10,5% para infarto do miocárdio e 14,4% para acidente vascular encefálico nos pacientes oncológicos em curso de trombose arterial periférica. Há também fortes referências à associação entre câncer e patência reduzida dos procedimentos vasculares para isquemia crítica dos membros 8 . A ultrassonografia vascular foi de suma importância na documentação da lesão e do estado circulatório do membro após a remoção do cateter. Não havendo sangramento pelo sítio de inserção, estando o membro compensado clinicamente por um bom fluxo arterial colateral, a conduta conservadora foi a mais adequada.
O caso 2 é um relato de trombose venosa séptica central, entidade rara (0,8%) na sua forma sintomática. Entretanto, séries de autópsias descrevem uma incidência entre 6,5-36,7% 9 . As diretrizes da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular 10 orientam, para o tratamento da trombose relacionada a CVC, anticoagulação por 3 meses com heparina de baixo peso molecular ou antivitamina K. As diretrizes do CHEST 2016 5 recomendam anticoagulação em vez de trombólise nos casos de trombose venosa do membro superior ou veias proximais, exceto quando há elevada probabilidade para evolução com síndrome pós-trombótica. Para trombo infectado, não há consenso quanto ao tratamento e a literatura é pobre em estudos atuais, além de limitados a relatos de casos. Hoffman e Greenfield 9 publicaram um caso de trombose venosa séptica subclávia-jugular tratada com filtro de veia cava superior, seguido de tromboembolectomia jugular. O paciente do caso 2 era renal crônico e, nele, a presença do filtro de cava superior limitaria as possibilidades de acesso venoso para hemodiálise. Em 1986, Ang e Brown 11 publicaram uma série de sete casos de trombose venosa séptica e, naquela época, já defendiam um tratamento menos invasivo com antibioticoterapia venosa e anticoagulação plena, reservando-se a trombectomia ou ressecção do segmento venoso afetado para os casos refratários. No caso 2, a ultrassonografia vascular para mapeamento venoso pré-punção evitou a embolização iatrogênica do trombo séptico, além de constituir ferramenta útil na documentação de sua evolução.
Embora haja carência de estudos randomizados comparando a segurança técnica entre a inserção de cateteres direcionada por marcadores anatômicos e a punção ecoguiada, alguns trabalhos sugerem menor incidência de complicações quando o ultrassom é utilizado durante o procedimento. Em 2014, Zottele Bomfim et al. 12 publicaram um estudo realizado no Hospital A. C. Camargo, São Paulo, Brasil, no qual 100 pacientes oncológicos foram divididos em dois grupos e analisados quanto a taxas de complicações associadas ao implante de cateter valvulado versus não valvulado para quimioterapia. Conquanto o objetivo do trabalho fosse comparar os dois tipos de cateteres, é interessante notar a existência de um protocolo de inserção do dispositivo, no qual todos os indivíduos estudados tiveram avaliação ultrassonográfica das veias jugulares e subclávias precedendo a punção, seguida do implante ecoguiado do CVC. No referido estudo, nenhuma complicação relacionada à punção foi relatada, assim como também não foi documentado nenhum evento de trombose associado ao cateter no seguimento dos casos. Os autores argumentam que o uso do ultrassom reduz o número de punções necessárias, consequentemente reduzindo a chance de lesão à parede das veias, o que pode estar relacionado à patogênese da trombose nesses indivíduos.
Estudos adicionais são necessários para determinar o real papel da ultrassonografia vascular na prevenção e no manejo das complicações associadas ao implante de CVCs. Entretanto, sendo a ecografia um recurso acessível, de relativo baixo custo e que não agrega riscos adicionais ao paciente, seu uso rotineiro deve ser encorajado.