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O Planejamento e a construção das Redes de Atenção à Saúde no DF, Brasil

O Planejamento e a construção das Redes de Atenção à Saúde no DF, Brasil

Autores:

Maria José de Oliveira Evangelista,
Alzira Maria D’Àvila Nery Guimarães,
Eliana Maria Ribeiro Dourado,
Fabiana Loureiro Binda do Vale,
Maria Zélia Soares Lins,
Marco Antônio Bragança de Matos,
Raquel Beviláqua Matias da Paz Medeiros Silva,
Simone Alexandra Schwartz

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.6 Rio de Janeiro jun. 2019 Epub 27-Jun-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018246.08882019

Introdução

O CONASS vem desenvolvendo, desde 2007, uma proposta que vai muito além da capacitação das equipes de saúde, uma vez que propicia o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (APS) e Atenção Ambulatorial Especializada (AAE) nos territórios, por meio de mudanças efetivas na atitude dos profissionais e nos processos de trabalho, bem como da gestão. Esse processo contribui para a organização dos serviços em Redes de Atenção à Saúde (RAS).

A proposta, denominada “Planificação da Atenção à Saúde: um instrumento de gestão e organização da APS e da AAE nas Redes de Atenção à Saúde”, consiste na realização de um conjunto de oficinas, tutorias, treinamentos e capacitações práticas de curta duração para as equipes técnico gerenciais dos estados e municípios, visando a organização dos macroprocessos da APS e AAE, envolvendo 100% dos seus trabalhadores. Tem como objetivo apoiar o corpo técnico gerencial das secretarias estaduais e municipais de saúde na organização dos macroprocessos da APS e da AAE1 .

A concepção de APS adotada pelo CONASS é a formulada por Barbara Starfield, para a qual a APS consiste em um conjunto de intervenções de saúde no âmbito individual e coletivo envolvendo promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação2 .

A AAE constitui um dos principais problemas nos sistemas de atenção à saúde, em geral, e no SUS em particular. A situação é agravada pelo fato de ser uma das áreas menos estudadas no SUS, operada, na maioria das vezes, na lógica dos sistemas fragmentados de atenção à saúde, organizado em silos (modelo silos)3 .

Para o autor acima citado3 , a organização da AAE assenta-se num novo modelo de atenção construído a partir de evidências científicas, especialmente derivadas da teoria das RAS e dos modelos de atenção às condições crônicas, que se sustenta em dois pilares fundamentais: a coordenação do cuidado entre a AAE e a APS e a construção da AAE como um ponto de atenção secundário ambulatorial de uma RAS, coordenada pela APS.

As propostas da RAS são recentes, tendo origem nas experiências de sistemas integrados de saúde, surgidas na primeira metade dos anos 90, nos Estados Unidos. A partir daí avançaram pelos sistemas públicos da Europa Ocidental e Canadá, até posteriormente atingir alguns países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos o precursor foi Shortel4 , que propôs a superação da fragmentação existentes nos serviços de saúde por meio de sistemas integrados de serviços. No Canadá, a experiência de RAS se desenvolveu, em geral, sob sistemas integrados de saúde.

No Brasil, desde 2011, após a portaria nº 4.2795 , a implementação das RAS tem sido proposta em torno de prioridades estabelecidas de acordo com diretrizes clínicas ou organizativas, como materno-infantil, atenção psicossocial, doenças crônicas, urgência e emergência e cuidados à pessoa com deficiência, nominadas redes temáticas6 . Entretanto, como a base é fortemente teórica, não vem mostrando-se de forma efetiva na prática. Em geral, observa-se dificuldade da constituição das RAS, bem como a articulação entre a APS e a AAE e o planejamento como ferramenta importante na estruturação.

O grande diferencial da proposta do Conass é unir a teoria à prática, tendo como autores principais do processo, os profissionais de saúde. A Planificação está sendo desenvolvida em 25 regiões de onze estados, organizando a RAS nessas regiões, rediscutindo os processos de trabalho, implantando o Modelo de Atenção às Condições Crônicas (MACC), integrando os diversos pontos de atenção, enfim, construindo uma rede regionalizada.

No Distrito Federal (DF), a região de saúde escolhida para desencadear o processo foi a Leste, iniciada pela reorganização e integração da APS e AAE, desde 2016. O DF implantou como política de Estado o “ Convert APS – Brasília Saudável” com o intuito de transformar todas as equipes da APS em Saúde da Família. Concomitante, adotou a PAS como estratégia de organização do modelo de atenção à saúde na Região Leste, em parceria institucional com o CONASS.

Este artigo tem como objetivo relatar a experiência de planejamento no DF e a construção das Redes de Atenção à Saúde, desenvolvendo a PAS.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato de experiência, sobre a implantação da PAS como instrumento potente para a organização das RAS, na região leste do Distrito Federal. A região de saúde inclui Paranoá, Itapoã, São Sebastião e Jardim Botânico. A planificação foi iniciada por Itapoã em 2016 e expandida, em 2018, para o Paranoá e São Sebastião.

A capacidade de serviços da região contempla um hospital geral de médio porte, 01 UPA, 01 casa de parto, 01 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II e 01 Álcool e Drogas (AD), 2 Núcleos de Assistência a Pessoas Vitimas de Violência (NUPAV), 04 NASF, 62 equipes Saúde da Família, 25 equipes de Saúde Bucal, em 24 unidades básicas de saúde, com cobertura de 75,4%. Além disso, tem 04 Unidades de Saúde Prisionais com 08 ESF. A região atende uma população de 233.720, correspondendo a 12,5% da população do DF7 .

A PAS está sendo operacionalizada a partir do referencial teórico elaborado e testado pelo CONASS em Laboratórios de Inovações. O modelo operacional utilizado na APS é desenvolvido em vários momentos para organização dos macroprocessos e está fundamentado na construção social da Atenção Primária8 . Está baseado no MACC, proposto por Mendes8 para o Sistema Único de Saúde (SUS), a partir dos modelos da Pirâmide de Risco da Kaiser Permanente dos Cuidados Crônicos e dos Determinantes Sociais da Saúde.

De forma similar, foram desenvolvidos os macroprocessos da AAE, voltados para o conhecimento das subpopulações alvo do território de abrangência, relativos às condições crônicas de alto e muito alto risco; manejo por uma equipe multiprofissional, com utilização de tecnologias de cuidado das condições crônicas, focadas na avaliação diagnóstica e elaboração de plano de cuidado para a estabilização dos usuários. É realizado o apoio às equipes de APS do território de abrangência, desdobrado em ações de educação permanente para a capacitação em estratificação de risco e manejo das condições crônicas e em ações de supervisão do plano de cuidado dos usuários8 .

O grande objetivo da AAE é a estabilização clínica do usuário com condição crônica de alto ou muito alto risco, tendo como perspectiva reduzir complicações, internações e mortalidade.

A organização dos macroprocessos está sendo desenvolvida, simultaneamente e de forma integrada às unidades da APS e da AAE, em duas etapas:

- Etapa 1: ciclos mensais de oficinas, tutoria e organização progressiva dos macroprocessos, em momentos de concentração e dispersão, com duração, mínima, de até doze meses;

- Etapa 2: supervisão na região e unidades para aperfeiçoamento dos macroprocessos da primeira etapa, novos ciclos de oficinas e tutorias relativos a processos para qualificação da atenção às condições crônicas, com duração de doze meses ou mais.

Para alinhamento conceitual, foram realizadas as oficinas teóricas, sendo primeiro trabalhada a oficina “As Redes de Atenção à Saúde no SUS”, denominada “Oficina Mãe”, para que os gestores se apropriassem da proposta da Planificação. Nessa oficina foram escolhidos os facilitadores das oficinas teóricas9 .

Em momento anterior ao desenvolvimento das oficinas, para os profissionais de saúde da região, foram realizadas seis oficinas teóricas para os facilitadores, profissionais de nível superior que conduzem as oficinas para os profissionais de saúde. Facilitadores do Conass participaram dando suporte em todas as oficinas teóricas, tanto para os facilitadores, quanto para os profissionais.

As Oficinas teóricas foram trabalhadas em dois dias, considerando que os profissionais das UL foram divididos em dois grupos, para não cercear o acesso da população às unidades de saúde, fechando-as durante um dia para que os profissionais pudessem participar do processo. As oficinas foram realizadas mensalmente, ou com intervalo de até 45 dias.

Na APS foram selecionadas inicialmente duas Unidades Laboratório (UL), definidas com essa nomenclatura pelo fato de ali se desenvolverem as primeiras atividades da tutoria. As UL escolhidas foram as unidades de saúde Itapoã 1 e Itapoã 2, que atenderam aos critérios estabelecidos para serem consideradas um ‘laboratório’. As temáticas das oficinas têm continuidade nas discussões das tutorias, realizadas nas UL, com os profissionais de saúde. Em 2018 foram incorporadas mais duas UL ao processo.

Concomitantemente ao trabalho desenvolvido nas UL, iniciou-se a discussão para estruturação da AAE, no MACC, sendo selecionado um espaço no Hospital da Região Leste para a sua estruturação. Uma equipe de atenção continua (cardiologistas, endocrinologistas, enfermeiros, assistente social, nutricionista, farmacêutico clinico, psicólogos, fisioterapeuta técnico de enfermagem) foi paulatinamente formada, tendo sido realizadas, permanentemente, capacitações para a operacionalização da nova proposta.

A linha de cuidado escolhida pela gestão do DF foi a atenção ao diabético e hipertenso, em vista dos indicadores de saúde relacionados a morbimortalidade dessas doenças. No início de 2017 foi elaborada pela equipe da AAE, com colaboração da APS da região, a diretriz clínica, “Nota Técnica nº 1”10 , que ancora todo o processo de estratificação de risco e manejo clínico para os diabéticos e hipertensos.

A organização dos macroprocessos foi desenvolvida de forma simultânea e integrada entre a APS e a AAE. Cada UL e o AAE escolheram tutores (um em cada equipamento de saúde), para dar suporte ao desenvolvimento das atividades. Eles têm horário protegido de quatro horas semanais para exercerem a tutoria. O processo de tutoria se desenvolve por meio de um apoio direto aos profissionais e equipes no exercício de suas funções assistenciais e gerenciais, cujo objetivo é o de fortalecer as competências de conhecimento, habilidade e atitude.

O processo de tutoria compreendeu três momentos principais9:

  • - Resgates da fundamentação teórica, sempre breves e objetivos, inseridos na discussão dos processos e remetendo ao processo de educação permanente, quando necessário;

  • - Supervisão in loco da atividade, num diálogo com o seu responsável direto. A supervisão deve checar a atitude do profissional, o seu conhecimento e aplicação das normas e recomendações; verificar o desenvolvimento da atividade frente às normas e recomendações vigentes; verificar o registro do processo no prontuário e nos sistemas de informação; identificar inconformidades e propor as ações corretivas.

  • - Avaliação dos problemas ou inconformidades identificadas, análise de seus fatores causais, priorização e elaboração de um plano de ação, seguindo-se os outros passos do ciclo do PDSA, sigla da língua inglesa : PLAN - DO - STUDY - ACT ou Adjust 11 .

A capacitação dos tutores deu-se continuamente, à medida que novos processos foram implantados na UL. Os tutores prestam apoio técnico operacional e educacional às ESF e são preparados para “fazer junto” com os profissionais da equipe, não tendo papel gerencial ou fiscalizador.

Na tutoria, atividades dos períodos de dispersão são pactuadas. Esses períodos correspondem ao tempo intercalado entre as oficinas, quando os profissionais devem proceder à organização dos processos de acordo com o plano de ação estabelecido nas tutorias.

Os planos de ação e produtos elaborados são apresentados e discutidos nos momentos subsequentes de oficinas e tutorias. Ao tempo que aconteciam as oficinas teóricas (temáticas), ocorriam nas UL e na AAE, a tutoria, desenvolvida pelos facilitadores do Conass, procurando fazer o resgate da fundamentação teórica, inseridos na discussão dos processos e remetendo à educação permanente, quando necessário.

As relações entre a APS e a AAE foram bem esclarecidas e organizadas, uma vez que o acesso ao ambulatório de especialidade não é livre, devendo todo usuário ser referenciado pelas equipes da APS, de acordo com os critérios e pactuações definidos previamente. A integração entre os dois níveis de atenção se efetiva e se qualifica nas relações de confiança e respeito entre os profissionais especialistas e generalistas. Pessoas, identificados na APS, com estratificação de alto e muito alto risco, são encaminhados para o AAE. O acompanhamento compartilhado e a integração faz-se por ambos, por meio de um Plano de Cuidado.

Dentre as novas formas de atenção profissional clínica, foram envidados esforços para a imediata implantação da Atenção Contínua. Trata-se de um atendimento individual sequencial dos profissionais de uma equipe multidisciplinar com elaboração do plano de cuidado para o usuário, por meio de uma matriz de gerenciamento de processos.

Na primeira tutoria é elaborado o primeiro Plano de Ação, que mensalmente é atualizado, a partir das atividades desenvolvidas nas UL e na AAE. A cada mês são introduzidos novos processos de trabalho e avaliadas as ações que foram inseridas no mês anterior.

Outro aspecto importante do processo da PAS no DF é o matriciamento, conduzido pelos profissionais da atenção especializada que, de forma presencial ou à distância, dão suporte aos profissionais da APS, orientando-os no manejo adequado dos hipertensos e diabéticos de baixo e médio risco e realizando discussão dos casos mais complexos, de forma que possam instituir o cuidado compartilhado desses usuários naquele nível de atenção.

Na supervisão das unidades para aperfeiçoamento dos macroprocessos, novos ciclos de oficinas e tutorias são necessários para qualificação da atenção às condições crônicas, sendo fundamental, por vezes, a realização de cursos de curta duração, complementares à PAS, considerando-se as necessidades identificadas no decorrer do processo.

No inicio de 2018, foi expandida a PAS na região leste. Novos ciclos foram iniciados, oficinas teóricas e tutorias estão sendo realizadas, com continuidade das ações nas demais UL e no AAE. Ressalta-se que as oficinas teóricas, na expansão, foram conduzidas por profissionais da região, com apoio do CONASS e do nível central da SES/DF.

Resultados e discussão

O processo saúde doença vem mudando ao longo dos anos, tendo em vista as transformações no padrão do perfil epidemiológico e demográfico da população, ao crescimento urbano acelerado e desorganizado, à alteração nos hábitos alimentares e ao estilo de vida, o que tem levado ao incremento das condições crônicas de saúde3 .

Convive-se com uma crise nos sistemas de saúde, na maioria dos países e também no Brasil, que consiste numa incoerência entre a situação de saúde e a resposta social desses sistemas, altamente fragmentado e que não responde à situação de saúde predominante. Para minimizá-la há que se promover algumas mudanças: no sistema de atenção à saúde (do Sistema Fragmentado, para o Sistema Integrado em Redes de Atenção à Saúde - RAS); no modelo de atenção à saúde (do modelo de atenção às condições e aos eventos agudos, para o modelo de atenção às condições crônicas) e no modelo de gestão (da gestão da oferta para a gestão com base populacional)3 .

As RAS, originárias a partir do Relatório Dawson, ressurgem na década de 1990 e são propostas pela Organização Pan-americana de Saúde como alternativas de solução para a fragmentação dos sistemas de saúde prevalente em seus países-membro12 . Em 2010, o Ministério da Saúde, com o propósito de favorecer o acesso, otimizar custos e promover a qualidade na atenção à saúde, lançou a portaria Nº 4.2795 , que estabelece diretrizes para a organização da RAS, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), definindo-a como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”.

Para Silva13 , as redes oferecem condição estruturalmente mais adequada para a efetivação da integralidade da atenção e são indispensáveis para a qualificação e a continuidade do cuidado à saúde nos vários pontos de atenção.

Em 2016, o CONASS implementa o seu projeto de planificação, inicialmente apenas para a APS, adotando a Planificação da Atenção à Saúde – um instrumento de gestão e organização da APS e da AAE nas RAS, integrando as ações e os serviços de atenção à saúde por meio da estruturação de rede, fortalecendo a região de saúde e atuando com foco na qualificação dos processos de trabalho e no gerenciamento dos riscos14 .

Lavras15 considera que é quase unanimidade entre autores nacionais e internacionais de que o fortalecimento da APS se configura como a principal estratégia no processo de coordenação do cuidado e no reordenamento de sistemas na perspectiva de estruturação das RAS.

Macinko e Harris16 consideram a ESF do Brasil uma estratégia robusta para disponibilizar a APS às populações definidas e avalia o seu impacto na saúde destas citando alguns resultados, dentre outros: melhor acesso e qualidade, maior satisfação do usuário, melhoria na saúde das crianças, redução da mortalidade infantil, em particular na pós-neonatal, redução na mortalidade cardiovascular e por causas cerebrovasculares, redução nas taxas de hospitalização por condições sensíveis à atenção ambulatorial e taxas reduzidas de complicações de condições crônicas, como diabetes.

No Distrito Federal a APS – amplamente debatida e discutida em todas as suas vertentes, foi o ponto de partida para a mudança dos processos de trabalho das ESF na Região Administrativa do Itapoã, local onde se iniciaram, concomitantemente, o CONVERTE / APS e o processo de planificação da atenção à saúde.

Ao final de 2016 e no ano de 2017 foram realizadas as 06 oficinas temáticas da planificação, em consonância com a realização de tutorias para implantação dos macro e microprocessos da APS em duas unidades básicas de saúde de Itapoã, envolvendo 11 equipes de saúde da família, 06 equipes de saúde bucal e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

Com o CONVERTE / APS foi redimensionado o número das ESF e dos territórios de abrangência, com acréscimo de três novas equipes. Devido ao espaço restrito da UBS 2 Itapoã, as equipes foram alocadas em uma nova UBS e passaram a participar da planificação.

Com a expansão da PAS, em 2018, a gestão optou em ampliar as ações na Região de Saúde Leste, contemplando as UBS das regiões administrativas de São Sebastião e do Paranoá. Isso representou uma cobertura de 75% do total de regiões administrativas dessa região de saúde, a inserção de 48 (quarenta e oito) equipes de saúde da família, 19 (dezenove) equipes de saúde bucal, envolvendo 850 (oitocentos e cinquenta) profissionais de 21 (vinte e uma) unidades básicas de saúde.

Além das seis oficinas teóricas sugeridas pelo CONASS, a região Leste inovou, incorporando a sétima oficina que abordava a linha guia de saúde bucal do Distrito Federal.

Após dois anos da implantação do projeto na região, muitos avanços já foram vislumbrados na APS, relacionados à qualificação da atenção e à melhoria nos indicadores de processo. Dentre os principais processos implantados podem ser citados: implementação do acolhimento, identificação de vulnerabilidade familiar – com a classificação de risco das famílias, implantação do bloco de horas, discussão e definição dos indicadores a serem acompanhados no painel de bordo, estratificação de risco de hipertensos e diabéticos, compartilhamento do cuidado de diabéticos e hipertensos de alto e muito alto risco com a AAE, e matriciamento das equipes de saúde da família pelos profissionais do ambulatório.

Também foi constatada uma grande evolução nos cadastros dos usuários e no registro do e-SUS AB, uma melhor organização dos fluxos dos usuários e profissionais na UBS, maior integração dos profissionais – destacando-se em especial a odontologia, organização das reuniões das equipes, a implantação do colegiado gestor e o estabelecimento de agenda integrada.

Alguns processos encontram-se ainda em fase de desenvolvimento, pois não estavam totalmente consolidados até o final de 2018, apesar de apresentarem práticas ativas de organização, dentre eles, a implantação do e-SUS AB, versão 3.0, organização de grupos operativos para condições crônicas, implantação do monitoramento do cadastro, implantação da planilha de programação física e financeira e acompanhamento dos planos de cuidado pelas equipes da APS. Convém destacar que os processos se desenvolvem em tempos distintos, e não homogeneamente, entre as equipes de saúde da família e as regiões administrativas, contudo estão postos como prioridades pela gestão regional de saúde.

Foram também desenvolvidos, nesse período, cursos de curta duração - complementares à PAS, dentre eles: estratificação de risco de hipertensos e diabéticos, tendo como referência a Nota Técnica 1/2017; treinamento teórico/prático em oftalmoscopia do usuário com HAS ou DM, para médicos; e as oficinas para o autocuidado apoiado .

Com a função de acompanhar e participar da avaliação e monitoramento de todo o processo da planificação, um Grupo Condutor Regional foi constituído, representado por entidades da atenção primária e secundária, do nível central e regional da SES e do CONASS, que se reunia regularmente ao término de cada oficina de tutoria.

É sabido que a integração entre níveis assistenciais na prestação do cuidado é favorecida pela implantação dos sistemas de saúde integrados em rede. Segundo Hartz e Contandriopoulos17 , essa interação propicia a coordenação das práticas clínicas, com o objetivo de “assegurar a continuidade e a globalidade dos serviços requeridos de diferentes profissionais e organizações, articuladas no tempo e no espaço, conforme os conhecimentos disponíveis”. Os mesmos autores sinalizam a importância de alguns critérios para favorecer essa integração, tais como: constituição de equipe multidisciplinar e interdisciplinar; participação efetiva na rede de cuidados, asseguradas por uma coordenação comum; orientação por meio de um sistema de informação potente que auxilie na tomada de decisões; compartilhamento de responsabilidades e atribuições; e recursos financeiros.

Esses mesmos princípios são observados na PAS, portanto, à medida em que os profissionais da APS da região Leste estratificavam o risco das condições de saúde de hipertensão e diabetes, a atenção ambulatorial especializada ia se organizando para receber os usuários de alto e muito alto risco, buscando a continuidade do cuidado de forma compartilhada.

A organização dos processos da atenção ambulatorial especializada beneficiou, inicialmente, a subpopulação de hipertensos e diabéticos de alto e muito alto risco de Itapoã, tendo o ambulatório começado suas atividades com capacidade operacional para atender 30% dos usuários nessas condições, residentes nessa região administrativa. Em 2018 estendeu suas atividades para acompanhar também os usuários de São Sebastião e Paranoá, que apresentavam instabilidade clínica à essas mesmas condições de saúde.

O ambulatório iniciou suas atividades realizando atenção contínua parcial, com uma equipe multidisciplinar e interdisciplinar composta pelas seguintes categorias profissionais: enfermeiro; médicos endocrinologista, cardiologista e oftalmologista; odontólogos – já lotados no Hospital da Região Leste (HRL); nutricionista; psicóloga e técnica em enfermagem. No ano de 2018 a equipe foi ampliada, agregando-se profissionais do serviço social, fisioterapia e farmácia clínica.

Para a sua implantação foram necessárias algumas ações: adequação do espaço físico e definição da carteira de serviços e profissionais essenciais à realização da atenção contínua aos diabéticos e hipertensos, incluindo o enfermeiro responsável pelo ponto de apoio; adequação dos fluxos, tanto internos, quanto para os agendamentos realizados pela APS; elaboração do roteiro de atendimento, específico por cada categoria profissional que integra o ambulatório; elaboração de protocolos clínicos, compartilhados com a APS, para manejar condições como crises de hipoglicemia, hiperglicemia, hipertensão, dentre outros; e criação da Diretoria de Atenção Secundária na estrutura organizacional da Secretaria da Saúde, considerado um avanço indireto, tensionado pela implantação da PAS.

Atualmente o ambulatório de atenção especializada atende, segundo o MACC, de segunda à sexta-feira, porém com atenção contínua integral em três dias na semana, sendo agendados 8 a 10 usuários por turno.

O cuidado compartilhado, adotado na PAS, tem sido usado no manejo de muitas condições crônicas, considerando-se que resulta em melhor assistência, quando comparado a cuidados primários ou especializados. Smith et al.18 sugerem uma tendência de que o atendimento compartilhado melhora os desfechos de depressão e provavelmente tem efeitos mistos ou limitados sobre outros desfechos, tais como uma melhor gestão da pressão arterial no pequeno número de estudos sobre cuidados partilhados para hipertensão, doença renal crônica e acidente vascular cerebral.

No Brasil, uma experiência sobre a atenção compartilhada no SUS foi realizada no Laboratório de Inovações de Atenção às Condições Crônicas (LIACC) em Santo Antônio do Monte/MG (Samonte/MG), tendo a integração da prestação de cuidados crônicos como uma das principais estratégias para minimizar a carga dessas condições, sobretudo em gestantes, crianças menores de dois anos, hipertensos e diabéticos. Desenvolvido em colaboração com a OPAS, CONASS, Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais e Secretaria Municipal da Saúde de Samonte, foi concebido como “uma estratégia para a melhoria do manejo de condições crônicas e fortalecimento da capacidade do sistema de saúde”19 .

Esse laboratório de inovações, segundo os autores acima, utilizou o mesmo modelo de atenção à saúde e a mesma metodologia que a PAS utiliza: MACC; ciclo PDSA, implantação dos microprocessos da APS e macroprocessos da APS e AAE; estratificação de risco das condições crônicas; as novas tecnologias de saúde (atenção contínua, atenção compartilhada em grupo, grupo operativo, dentre outros); trabalho profissional multiprofissional e interdisciplinar; e elaboração de plano de cuidado para ser compartilhado com a APS.

Os principais resultados do laboratório foram: satisfação das equipes de saúde e dos usuários; melhoria nos indicadores de mortalidade materna e infantil e no controle de glicemia em diabéticos; e aumento de cerca de 50% na avaliação da capacidade institucional para a atenção às condições crônicas19 , por meio do instrumento Assessment of Chronic Illness Care (ACIC), que tem a finalidade de a avaliar por meio da percepção dos profissionais20 .

No ambulatório da Região Leste é nítida a satisfação tanto dos profissionais da equipe quanto dos usuários, percebida nos depoimentos das oficinas de tutorias, nos relatos individuais da atenção compartilhada em grupo e nos consolidados da pesquisa de satisfação dos usuários.

Dentre as novas funções (assistencial, de supervisão, de pesquisa clínica e educação permanente) inerentes aos ambulatórios de atenção especializada, que funcionam segundo o MACC, destacou-se na região Leste de saúde a educação permanente, com a implantação do matriciamento dos profissionais da APS pelos especialistas da AAE, com a participação da equipe multiprofissional.

Esse processo de educação permanente ampliou o campo de atuação dos profissionais e qualificou ações de ambos os níveis de atenção, bem como consolidou a atenção compartilhada com possibilidade do ajustamento mútuo e apoio técnico entre as equipes da APS e AAE.

O matriciamento ocorre periodicamente (semanalmente), destinado à problematização, ao planejamento, à programação e à execução de ações colaborativas entre AAE e APS. Apresenta uma relação dialógica e horizontal entre os profissionais, baseada em uma abordagem centrada no usuário, com enfoque intersubjetivo e interdisciplinar. Para que seja realizado, conta com horário protegido na agenda dos profissionais envolvidos, com a organização da ESF para definição dos casos ou situações para matriciamento e com os profissionais do ambulatório para apoio às equipes de saúde da família.

O matriciamento é realizado de forma presencial ou à distância, tendo várias modalidades de atuação: o atendimento individual compartilhado, a atividade coletiva compartilhada, a discussão conjunta dos casos clínicos e o matriciamento temático. O atendimento individual compartilhado é realizado conjuntamente por pelo menos um profissional do AAE e um da ESF. A atividade coletiva compartilhada é realizada em grupo, desenvolvida na casa de um usuário voluntário e conta com a presença de profissionais da AAE (nutricionista e psicóloga) e da ESF, por meio de coordenação conjunta. A discussão conjunta dos casos clínicos e temas, fortemente relacionado à educação permanente, é pactuada entre os profissionais envolvidos, com planejamento que envolve a escolha dos casos e temas, e programação de ações (como construção de propostas de grupos, atendimentos e intervenções entre as equipes, ações de vigilância em saúde, monitoramento e outras).

Considera-se como pontos fortes do matriciamento do DF, a disponibilidade da equipe do ambulatório e as atividades executadas de alinhamento de conceitos, com integração de profissionais e saberes.

Apesar do pouco tempo de implantação da PAS na Região Leste para apresentar indicadores de resultados, a direção do Hospital Regional de Paranoá relata que tem observado, por meio da análise de atendimentos do Pronto Atendimento, uma redução no número de usuários assistidos com complicações por diabetes e hipertensão.

Mesmo diante dos resultados apresentados, os desafios na PAS são vivenciados diariamente, quando o tempo técnico passa a ser diferente do tempo político de uma gestão, impossibilitando, às vezes, a garantia da continuidade dos processos iniciados.

No DF, por se tratar da estruturação de um ambulatório com base no MACC, voltado para a linha de cuidado de hipertensão e diabetes, onde já havia o ambulatório do Hospital da Região Leste, que atendia de forma tradicional, os principais desafios à implantação do ambulatório de atenção especializada foram a adequação do espaço físico, modificar os serviços e os processos de trabalho já instituídos, dispor de carga horária dos profissionais exclusiva para o desenvolvimento do modelo e a mudança da grade horária do ambulatório. Isso demandou a necessidade de um alinhamento conceitual entre todos os trabalhadores.

Devido à não autonomia das Regiões de Saúde na lotação e aumento de carga horária de profissionais, assim como na aquisição de mobiliários, insumos e equipamentos necessários, houve lentidão no processo de estruturação da RAS. Além disso, ainda ocorre a indisponibilidade de algumas especialidades na região (essenciais à linha de cuidado priorizada), como cirurgia vascular e nefrologia, bem como a contratação de outro nutricionista e de ajuste da carga horária dos profissionais, ainda insuficiente para a ampliação da planificação às demais Regiões Administrativas da Região Leste (Paranoá e São Sebastião).

O fortalecimento do sistema de apoio diagnóstico e laboratorial vem acontecendo de forma lenta e gradual por se tratar de reorganização na nova estrutura da Superintendência, que se iniciou em 2016. Da mesma forma, o Complexo Regulador do Distrito Federal se encontra em fase de readequações, gerando dificuldade de acesso a alguns exames especializados e especialidades não ofertados no ambulatório.

Considerações finais

O resultado final esperado para a Planificação é a implantação das RAS nas regiões de saúde, tendo a APS como ordenadora e coordenadora do cuidado, integrada com a AAE e, posteriormente, com a atenção hospitalar.

A Atenção Primária da Região Leste teve avanços na qualificação da atenção à saúde, no entanto, ainda não ocorreu um investimento eficaz nos sistemas de apoio, especialmente no apoio diagnóstico e terapêutico, além de também existir dificuldade de integrar a Rede com os sistemas logísticos.

Na AAE foi implantado o Ambulatório de Especialidades com atendimento continuo, realizado por equipe multiprofissional para usuários hipertensos e diabéticos de alto risco, estratificados na APS, com compartilhando do cuidado.

A integração entre a APS e a AAE ocorre principalmente por meio do matriciamento, realizado por profissionais da AAE, nas unidades de saúde.

A PAS, de fato, na região, tem se apresentado como um instrumento de gestão para a organização dos serviços de saúde, contudo, para maior visibilidade na qualificação da atenção à saúde no DF, faz-se importante a sustentabilidade da Planificação e a capilaridade desse processo em todas as regiões de saúde.

A Planificação da Atenção à Saúde configurou-se como um caminho. Espera-se que ela continue tendo êxito e impactando positivamente na implementação da RAS, de forma que possa efetivamente agregar valor à população, em especial, aos mais vulneráveis.

REFERÊNCIAS

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