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O poder da história

O poder da história

Autores:

Daniel Afonso da Silva

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.25 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702018000100021

Paris. 28 de novembro de 1985. Collège de France.

Ouvintes entusiasmados aguardam apreensivos a chegada de Georges Duby para a segunda sessão de seu seminário solene. A primeira sessão ocorrera na quinta-feira anterior, no dia 21. A Idade Média era seu objeto e abundante assunto. Historiadores ou não reputavam o professor Duby como a encarnação e síntese do que havia de melhor da Escola dos Annales. Suas habilidades de orador impressionavam. Seus dotes literários também. A sala estava cheia naquele dia 28. O mestre de cerimônias, costumeiro no Collège de France, anunciou a sua chegada. Entretanto, inabitualmente, ele tardou a entrar. Quando apareceu, parecia absorto. Distante. E não nos séculos de sua predileção - o XII, XIII e mesmo o XIV. Menos ainda em cavaleiros, armaduras, monges ou santos. Num repente, ele começou a revelar o que tanto o desconsertava. Hesitante e macambúzio, o autor de Guilherme Marechal confiaria aos seus auditores que acabara de saber que Fernand Braudel (1902-1985) morrera no dia anterior.

Patrick Boucheron presenciou a cena. Era um dos seguidores daquele seminário do mestre Duby. Tinha vinte anos de idade. Vinha de ingressar, em primeiro lugar, na prestigiada École Normale Supérieure de Saint-Cloud. Aspirava ao ofício de historiador. E, diante daquela revelação de Georges Duby, começou a imaginar que talvez já fosse tarde para abraçar o métier. Como os demais historiadores, antigos e recentes ou aspirantes, pouco a pouco, ele foi se descobrindo órfão do mestre maior da historiografia francesa daquela quadra de século. Mas aos poucos Boucheron repensou a circunstância. Sopesou a situação. Seguiu seu caminho. Ingressou, no ano seguinte, 1986, na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Em 1994 sairia doutorado especializado em história medieval. Seu nicho de interesse ganhou a Itália. Mais precisamente ao norte, as ruas e praças de Milão. Sempre com o foco no poder, na política, no sistema. Maquiavel e seus contemporâneos viraram seu objeto de obsessão. Nos anos seguintes ele começaria a ganhar notabilidade - discreta, mas progressiva - pela agudeza de suas abordagens e pelo prolífero de suas publicações. O público especializado foi sucumbindo à sua excelência. Le pouvoir de bâtir: urbanisme et politique édilitaire à Milan, XIVe-XVe siècles (Boucheron, 1998) não passou sem se notar. Religion et société urbaine au Moyen Âge: études offertes à Jean-Louis Biget par ses élèves (Boucheron, 2000) e Léonard et Machiavel (Boucheron, 2008), para ficar apenas em alguns, também não. Mas foi certamente Histoire du monde au XVe siècle (Boucheron, 2009) que ampliaria a recepção de Patrick Boucheron dentro e fora dos meios especializados. Histoire mondiale du monde (Boucheron, 2017), que reúne mais de cem historiadores na desmitificação da história de seu país, virou um verdadeiro bestseller, com aproximados cem mil exemplares vendidos em poucos meses.

Vinte anos após o início hesitante e desesperançado em 1985, Patrick Boucheron deviera, portanto, um historiador respeitado e consagrado. A mais alta mostra de sua consagração seria a sua indicação para o Collège de France. Dessa indicação emergiu uma demanda imediata de manifestação inaugural. O resultado dessa manifestação consistiu no ensaio Ce que peut l'histoire. Apresentado como leçon inaugurale, no dia 17 de dezembro de 2015 - cuja cerimônia completa pode ser consultada no sítio do Collège de France1 -, o texto acaba de ser transformado em livro. E, por certo, não deve tardar a ganhar uma versão em língua portuguesa e demais idiomas. E as razões são vastas.

O núcleo da mensagem de Ce que peut l'histoire reconhece na história instrumentos de combate para resistir ao momento triste e sombrio que nos toca viver neste início de século XXI. Tudo começa no título: Ce que peut l'histoire (O que pode a história).

Ce que peut l'histoire é uma afirmação, e o argumento do livro é propositivo. Seu questionamento - que envolve todo o texto - aduz à reflexão sobre o poder e os limites da disciplina história diante da globalização agudizada após o fim da tensão Leste-Oeste, do terrorismo global explicitado pelos incidentes do 11 de setembro de 2001 nos EUA e mundializado pela guerra ao terror do presidente Bush, da crise financeira mundial de 2008 que segue soterrando pactos sociais e de sociabilidade, das crises ambientais que açambarcam o planeta, das crises humanitárias, políticas e morais que varrem todos os continentes.

O que pode a história (e o historiador) nesse cenário, segundo Patrick Boucheron, é ofertar seu método. Nada mais. Embora o método, em história, seja, como lembra o autor, tudo. Um método que envolve essencialmente erudição e precisão. Erudição e precisão na hierarquização do fluxo da vida. Erudição e precisão que permitem ao historiador e à história tentar pautar o debate público e forjar encorajamento diante das agruras do presente. Erudição e precisão que impõem ao historiador humildade diante da complexidade incomensurável da história e da vida. Erudição e precisão que demandam espírito sempre crítico e engajado contra a injustiça e a dominação.

Essa demanda de engajamento não é recente na história. Mas, por vez, desaparece diante de modismos e momentos de hiperespecialização da disciplina. Na contracorrente, Patrick Boucheron procura avivar certa responsabilidade política da prática do historiador.

No caso francês, em meados do século XIX, Jules Michelet (1798-1874) reconhecia que a história e o historiador deveriam reforçar e legitimar o romance nacional. Em meados do século XX, Fernand Braudel, após vivenciar as guerras totais e o holocausto, julgava imperativo da história e do historiador a recordação permanente da noção de trágico na história. Boucheron, por seu turno, reconhece o trágico, mas acredita que o global venceu o nacional. E, portanto, para ele, o romance nacional dos tempos de Michelet deu lugar à análise do local a partir da perspectiva mundial.

Essa nova perspectiva denota, no entender de Boucheron, a necessidade do retorno à reflexão do método em história, posto que o conjunto das humanidades e ciências humanas e sociais vem se debruçando sobre o estudo do mundial e do global sem, muita vez, explicitar a sua especificidade.

Dito de outra maneira, o retorno ao método é uma forma de se precisar a contribuição da história à análise da complexidade dos objetos históricos contemporâneos e presentes. E, desse modo, somente esse retorno ao método possibilitaria à história e ao historiador manter a sua identidade diante das demais disciplinas e atividades intelectuais - entre elas, o jornalismo e a literatura - que também intentam compreender, reconstituir e explicar a história do tempo presente que nos toca viver.

Esse método, para Boucheron, é envolto, inicialmente, em erudição e precisão. Mas, além disso, ele demanda estratégias de comunicação. Nesse sentido, Boucheron valoriza a narrativa.

Segundo ele, só a narrativa pode moldar e amoldar a sociedade, a memória, os espíritos para resistir aos sentimentos de declínio e desesperança que nos assola neste início de século. Sem o pudor de seus antecessores historiadores no Collège de France, Boucheron admite que a narração da história deve ultrapassar os muros universitários e historiográficos. Deve ser agradável e acessível. E deve chegar ao grande público. Mesmo que para isso utilize instrumentos de linguagem jornalísticos e literários.

Este trinomio - erudição, precisão e narrativa - vai de par com as noções de ética e responsabilidade. Para Boucheron, a história e o historiador precisam estar constantemente engajados na luta contra a injustiça. O poder da história reside justamente em sua capacidade de modificar ou, ao menos, desestabilizar as narrativas que justificam a dominação e a hegemonia do statu quo.

O conjunto dessa discussão política, teórica e metodológica acompanhada de imensa precisão, erudição e gracejo narrativo consta desse magnífico Ce que peut l'histoire. Que, no fundo, representa uma grande provocação. Um grande convite à reflexão sobre história e sobre o tempo presente que nos toca viver.

REFERÊNCIAS

BOUCHERON, Patrick. Histoire mondiale du monde. Paris: Seuil. 2017.
BOUCHERON, Patrick. Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard. 2009.
BOUCHERON, Patrick. Léonard et Machiavel. Lagrasse: Verdier. 2008.
BOUCHERON, Patrick. Religion et société urbaine au Moyen Âge: études offertes à Jean-Louis Biget par ses élèves. Paris: Publications de la Sorbonne. 2000.
BOUCHERON, Patrick. Le pouvoir de bâtir: urbanisme et politique édilitaire à Milan, XIVe-XVe siècles. Roma: École Française de Rome. 1998.