versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.26522016
A regionalização dos serviços de saúde tem ocupado o centro do debate da reorganização do SUS na última década, caminho bem representado no principal arcabouço normativo do período, com as NOAS, Pacto pela Saúde e, mais recentemente, Decreto 7.508 e seus contratos organizativos. Essa visão regional tem sido fortalecida pela crescente constatação dos limites de acesso e equidade em um sistema exclusivamente de base municipal. Dificuldade prevista ainda na própria NOB 96, principal responsável pela política de municipalização: “elevado risco de atomização desordenada dessas partes do SUS, permitindo que um sistema municipal se desenvolva em detrimento de outro, ameaçando, até mesmo, a unicidade do SUS”1.
A disjunção entre a descentralização e a regionalização na saúde brasileira tem sua explicação inicial na própria desmedida diferença de peso político, histórico e conceitual em favor da primeira2,3. O modelo dessa orientação municipalista, por sua vez, resultou da somatória das possibilidades conjunturais de cada época, na qual aquela que se inicia define as novas possibilidades sobre o molde esboçado no momento anterior4,5.
Mas, diante do primado atual da regionalização, o conhecimento internacional deixa claro que seria um erro encarar a descentralização da saúde brasileira como uma etapa estanque e definida, restando acertar o processo regional. A experiência mostra que a ordem estabelecida está sujeita à constante movimentação das correlações de forças políticas6,7; rearranjos ideológicos agudos8,9; além de alguns aspectos relacionados às novas tecnologias e cuidado “relativamente independentes das estruturas políticas”10.
A política de descentralização na saúde brasileira e, mais acentuadamente, o discurso da regionalização reconhecem no acesso equitativo uma grande força motriz. Grandes ambições, grandes desafios. A desigualdade na distribuição dos equipamentos de saúde é uma realidade antiga e comum nos contextos mais variados, questão reconhecidamente de difícil abordagem11,12. Características próprias – “único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem sistema universal de saúde. E [...] descentralização política, administrativa e financeira para o poder local”13 –, e tradição do critério político na incorporação tecnológica são elementos adicionais no caso brasileiro. Mas, do lado técnico, um problema é que a relação direta entre descentralização/regionalização com a equidade não é algo simples de demonstrar – começando pela dificuldade na definição de variáveis dependentes e independentes14. Soma-se a complexificação da leitura sobre o município15.
No intuito de contribuir com as análises do processo de regionalização assistencial da saúde, este artigo apresenta uma revisão sistemática sobre as experiências recentes de organização regional do SUS, em busca dos principais condicionantes desse processo no país.
Este estudo foi despertado pela leitura de Vargas et al.16, cujas referências forneceram seis indicações iniciais de artigos. Para a revisão foi realizada busca sistematizada nas bases da Biblioteca Virtual em Saúde – que inclui Lilacs e SciELO –; e Medline/PubMed. Foram utilizados os descritores “regionalização/regional health planning” AND “Brasil/Brazil” nos campos título, resumo ou assunto; incluindo artigos originais, teses e dissertações em português, inglês, espanhol. Fontes complementares incluíram as referências dos artigos selecionados e indicações de conhecimento dos próprios autores. Como critério de inclusão: estudos com objeto específico na regionalização do SUS; com resultados empíricos e publicados a partir de 2006, de forma a incluir apenas pesquisas já referenciadas ao ‘Pacto pela Saúde’ e adiante. Como critérios de exclusão: revisões; ensaios de opinião; e pesquisas com foco em políticas anteriores ao Pacto pela Saúde; ou nos quais a regionalização surge como contexto e não como objeto primário. Interessado na revisão exaustiva, foram incluídas todas as pesquisas alcançadas pela revisão, sem considerar a relevância da publicação ou opção metodológica.
A dinâmica de seleção foi realizada por dois pesquisadores de forma independente, e os casos de dúvida foram julgados por um terceiro. Iniciou-se pela exclusão de textos através da leitura dos metadados. Neste ponto foi realizada busca de possíveis textos não incluídos nas bases científicas através do Google Acadêmico – “literatura cinzenta” –, sem sucesso. Em seguida foi realizada a leitura dos resumos dos textos incluídos na primeira triagem. Todos os textos selecionados após a leitura dos resumos foram lidos integralmente e tiveram os dados extraídos de modo independente por pelo menos dois dos autores, na sequência organizado em conjunto. A Figura 1 sistematiza o processo de busca e identificação dos trabalhos.
Os critérios metodológicos permitiram incluir vinte e seis estudos sobre o processo de regionalização brasileiro (Quadro 1). Dois estudos foram incluídos como exceção. Um ensaio, por se considerar o discurso de um grupo de secretários de saúde municipais como análogo às entrevistas empíricas com estes atores17. Outro com tema em redes de atenção, mas que após leitura foi considerado que lidava precipuamente com a questão da organização regional na saúde18. Um estudo foi excluído por duplicidade e inconsistência.
Quadro 1 Estudos incluídos na revisão.
N | Autor | Objetivo/Dimensão | Período | Tipo de publicação | Metodologia |
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Dimensão Federal | |||||
1 | Viana et al. (2010) | Análise teórica. Construção de tipologias das regiões de saúde | 2010 | Artigo original | Ensaio teórico. Análise de dados secundários pelos modelos de análise fatorial e de agrupamentos |
2 | Lima et al. (2012) | Processo de regionalização nos estados brasileiros | 2007 a 2010 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão(91), visitas de campo, análise documental |
3 | Albuquerque (2014)* | Processo de regionalização nos estados brasileiros | 2001 a 2011 | Tese de doutorado | Análise teórica. Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (91), visitas de campo e análise documental |
4 | Duarte et al. (2015) | Proposta de tipologia de regiões de saúde baseadas no desenvolvimento humano | 2013 a 2015 | Artigo original | Dados secundários |
Estadual | |||||
5 | Souto Júnior (2010) | Papel da CIB na regionalização do SUS-MG | 2004 a 2007 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa Fontes: atas de reuniões da CIB/MG |
6 | Brandão et al. (2012) | Rede regionalizada de saúde da PB | 2008 | Artigo original | Análise documental |
N | Principais achados empíricos | ||||
Dimensão Federal | |||||
1 | ● Tipologiazação socioeconômica menos desenvolvida e sistema de saúde menos complexo: alta cobertura de PSF; baixa relação médicos/hab.; maior percentual de leitos SUS 2. situação socioeconômica mais desenvolvida e sistema de saúde mais complexo: mais de 30% de planos e seguros privados, maior número de médicos e faculdades de medicina ● Prestação: mix público-privado disseminado e sem padrão definido (predominância do prestador público no Norte, seguida pelo Sul: “alinhado com os extremos”) ● Questão regional mais acentuada do ponto de vista econômico e social do que relativo à política de saúde ● Percepção de um vetor de encurtamento das distâncias entre os “dois Brasis” | ||||
2 | ● Três estágios de institucionalidade do processo de regionalização nos estados: incipiente, parcial, avançada ● Impactos institucionais do processo: radicais, incrementais, embrionários ou ausentes ● Governança: polarização: entre padrões coordenada/cooperativa vs. conflitiva ou indefinida ● Nenhum estado com conjuntura política desfavorável ao processo de regionalização da saúde ● Grosso modo: N e NE com contextos desfavoráveis ao processo ● Processo regional orientado pela equidade – acesso e financiamento (19 estados); foco também na ampliação da capacidade instalada (17); integração com outras políticas econômicas e sociais (5) ● Quase todos os estados: organização de redes e fluxos induzidas pelas normativas federais ● Importância da indução federal e atuação do MS, sobretudo no N e NE ● Estratégias de indução: CGR e regionais/SES; planejamento; regulação; capacidade instalada e qualificação técnica ● Atores: predomínio SMS e SES; privado (11 estados), universidades (3), consórcios (3) e Legislativo (2) ● Fragilidade da regulação da assistência: característica geral ● Condicionadores: natureza histórico-estrutural (dinâmica socioeconômica, características dos sistemas, desigualdades); político-institucional (experiência acumulada, cultura de negociação, legitimidade, poder político e qualificação técnica); conjuntural (perfil dos atores, a dinâmica política e prioridade na agenda) | ||||
3 | ● Processo de regionalização tende a ser mais avançado e com governança mais cooperativa e coordenada nos estados com maior tradição de planejamento regional, contextos mais favoráveis, e priorização nas agendas estaduais e municipais, além de forte atuação das SES no planejamento ● Também nas áreas mais populosas, densamente urbanizadas e modernizadas, concentradoras de tecnologias, profissionais, fluxos materiais e imateriais, equipamentos e recursos públicos e privados de saúde ● Amazônia – contextos menos favoráveis, institucionalidade incipiente e intermediária da regionalização ● Nordeste – contextos mais ou menos favoráveis, institucionalidade incipiente e avançada da regionalização ● Centro-Oeste – contextos mais favoráveis, institucionalidade intermediária e avançada da regionalização ● Região concentrada – contextos mais favoráveis, institucionalidade intermediária e avançada da regionalização | ||||
4 | ● A tipologia proposta aproxima-se dos pressupostos teóricos relacionados aos determinantes sociais do processo saúde-doença adotados no PROADESS ● É compatível, também, com categorias de análise propostas pela corrente teórico-metodológica dos determinantes sociais da saúde tais como características populacionais, iniquidades sociais,condições de vida, necessidades e contextos dosproblemas de saúde | ||||
Estadual | |||||
5 | ● CIB-MG: elevado grau de participação de gestores e técnicos estaduais e municipais, também representantes de consórcios intermunicipais de saúde ● Regionalização: forte presença nas pautas ● Predomínio de interesses de regiões de maior poder econômico e político na repartição dos recursos, manutenção do status quo do sistema e modelo atenção de atenção | ||||
6 | ● Aponta deficiências no processo de definição do desenho regional | ||||
N | Autor | Objetivo/Dimensão | Período | Tipo de publicação | Metodologia |
Estadual | |||||
7 | Vargas et al. (2014) | Fatores de influência na implementação política de Redes Integradas de Saúde - PE | 2010 a 2012 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (17), grupo focal, observação, análise documental |
8 | Bretas Jr, Shimizu (2015) | Planejamento macrorregional desenvolvido pelo COSEMS/MG | 2007-2012 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Analise documental. Fontes: relatórios (26) e atas (125) do COSEMS |
9 | Guerra (2015) | Descentralização e regionalização em SP, a partir da % de gestão municipal e índice de dependência ambulatorial e hospitalar das regiões de saúde | 2013 | Tese de doutorado | Revisão bibliográfica e documental. Análise de dados secundários |
Macrorregional (intra/interestadual) | |||||
10 | Stephan-Souza et al. (2010) | Regulação do acesso em Juiz de Fora, com foco no HU/UFJF. Macrorregião Sudeste MG (94 munic./1,6 mi hab) | 2007 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (10) |
N | Principais achados empíricos | ||||
Estadual | |||||
7 | ● Financiamento da CIR e estrutura de funcionamento indefinidos ● Critérios de construção e coordenação das redes imprecisos ● Iniciativas isoladas por áreas ou processos, sem perspectiva sistêmica ● Capacidade técnica limitada nos municípios ● Fragilidade estadual em liderar e coordenar o processo ● Fragmentação do Ministério da Saúde prejudica coordenação da política ● Desincentivos: autonomia municipal, baixo interesse na regionalização, competitividade por recursos, política partidária ● Subfinanciamento ● Rotatividade de gestores ● Dificuldades do processo mais relacionadas à municipalização do que à política de redes em particular ● Mais obstáculos do que facilitadores, reunidos em 4 grupos: 1. Implementação baseada em negociação ao invés de planejamento 2. Grande responsabilidade dos municípios com baixa capacidade técnica 3. Falhas no planejamento e coordenação das competências envolvidas 4. Falta de clareza sobre as regras políticas de implementação | ||||
8 | ● COSEMS/MG: - importante papel de apoio (SES: 22 apoiadores direcionados ao apoio técnico do Cosems) - envolvimento de todos os gestores - efetivo mecanismo de comunicação ● Pactuação das CIRs e Ciras: predominância de discussões fragmentadas; condução burocrática e cartorial ● Pautas privilegiam os ritos da CIT-CIBs em detrimento dos problemas locais ● Dificuldade de operacionalização das câmaras técnicas ● Fragilidade no Sistema de Petição e Prestação de Contas | ||||
9 | ● 52% dos procedimentos hospitalares e 72% dos ambulatoriais foram realizados sob gestão municipal ● Maiores índices de dependência na assistência hospitalar em relação à ambulatorial ● As regiões da Região Metropolitana da Grande São Paulo apresentaram maior dependência em relação ao Interior ● A gestão municipal tem influência sobre o índice de dependência, mas está condicionado ao contexto demográfico (porte populacional) e socioeconômico (IPRS) ● Importância de mecanismos de pactuação institucionalizados e regulação entre as regiões na garantia da equidade ● Apesar do maior papel dos municípios, a média complexidade hospitalar ainda é dividida com a SES, com gestão predominantemente privada (maioria sem fins lucrativos e OS) ● Alta complexidade predominantemente estadual, também com grande percentual de estabelecimentos privados ● Dificuldade com planejamento e execução da assistência nas regiões de saúde ● A SES: execução da assistência, mas com baixa coordenação do processo de regionalização | ||||
Macrorregional (intra/interestadual) | |||||
10 | ● Hospitais universitários (HU)/UFJF: fluxo informal intra e interestadual ● PDR intraestadual: não regula fluxo do RJ para MAC do município ● Convênio/contratualização dos HU: dificuldade de integração e cumprimento dos compromissos de gestão ● HU/UFJF: resistências internas à proposta de regionalização do SUS; descompasso entre pensamento do gestor e direção do HU; prioridade do ensino sobre extensão e pesquisa ● Subfinanciamento ● Baixo conhecimento dos gestores sobre instrumentos de gestão | ||||
N | Autor | Objetivo/Dimensão | Período | Tipo de publicação | Metodologia |
Regional | |||||
11 | Pereira (2009) | Papel da SES na regionalização do SUS/MG | 2003 a 2007 | Dissertação de mestrado | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (18) e análise documental |
12 | Assis et al.(2009) | Constituição do Colegiado Regional de Saúde Oeste VII - SP | 2007 | Artigo original | Relato de experiência Assinado por 11 Secretários Municipais da Região Metropolitana de Campinas-SP |
13 | Coelho (2011)* | Relações público-privadas na regionalização de duas regiões - ES, Cachoeira de Itapemirim-Vitória | 2007 a 2011 | Dissertação de mestrado | Estudo de caso de abordagem quanti-qualitativa. Fontes: visita de campo, entrevistas com gestão e prestadores (17), dados secundários, e análise documental |
14 | Mesquita (2011) | Consensos da CIR de Caucaia-CE | 2009 a 2010 | Dissertação de mestrado | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fonte: atas e resoluções da CIR |
15 | Venancio et al. (2011) | Práticas de referenciamento em 5 Regiões/SP; dificuldades nas pactuações | 2003 a 2005 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem quanti-quali. Fontes: entrevistas ligadas à gestão(75), dados secundários. |
16 | Silva, Gomes (2013) | Processo de regionalização. Grande ABC – SP | 2005 a 2006 (campo em 2010) | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (16), analise documental |
N | Principais achados empíricos | ||||
Regional | |||||
11 | ● Regionalização antiga, mas historicamente, descoordenada e fragmentada ● Falhas no papel do estado em controlar o processo ● SES: fonte de estímulo e apoio técnico à gestão microrregional e redes de atenção; administração indireta via Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) ● CIB e CIB micro e macrorregional: espaços importantes de negociação, em particular da PPI. Baixo consenso sobre capacidade de planejamento e regulação regional ● Baixa capacidade técnica dos municípios ● Visão local em detrimento da regional ● Descontinuidade de gestão | ||||
12 | ● Processo participativo: importante para integração e quebra de resistências ● COSEMS: papel importante ● SES: participação ativa como quesito essencial ● SES: notável fragilidade estrutural e técnica para assumir novo papel regulador ● Plano de Saúde: importância de sua estruturação sob olhar regional ● Ausência de instrumento jurídico que garanta o cumprimento das pactuações | ||||
13 | ● Dois padrões predominantes de relações público-privadas: interdependente e cooperativo; e múltiplos arranjos com conflitos ● Dependência mútua entre SUS e privado. Interesse privado na incorporação de tecnologia de alto custo ● Perfil centralizador da SESA. Conflito de papéis entre Regionais de Saúde e SES ● Baixa capacidade de planejamento e regulação do privado contratado: ausência de ferramentas eficazes de coordenação, regulação e controle ● Regionalização fortemente influenciada pelo setor privado em relações formais e informais. Seja pela oferta, pela articulação política ou múltiplos vínculos dos profissionais ● Baixa de condução política do Estado ● Integração intersetorial latente | ||||
14 | ● CIR: consensos em bases legalistas, governistas e tecnoburocratizadas ● Pautas: consensos sem discussões, automaticamente aprovadas ● Decisões pontuais com baixa intencionalidade política e de planejamento | ||||
15 | ● Facilitadores da integralidade regional: - Capacidade instalada; estabilidade de gestão; fortalecimento da AB/PSF; fortalecimento dos espaços de negociação; estruturas técnicas de apoio aos gestores com funcionamento regular; microrregiões bem demarcadas; plantão regional de regulação; contratualização dos HU; Unidades de Avaliação e Controle municipais; pactuação na DRS; contratualização por recurso fixo; mecanismo de vaga zero. ● Dificultadores da integralidade regional: - Capacidade técnica limitada das SMS; desconfiança gestora sobre transparência do processo (ocultamento de oferta); coexistência de mecanismos forais e informais de pactuação; racionalidade técnica da PPI; subfinanciamento; interferência de Hospitais Municipais na regulação regional; falta de governabilidade regional e municipal para discutir a competência financeira; Regiões metropolitanas; invasão proveniente de localidades externas à região; mecanismos formais de coordenação do cuidado insuficientes; falta de protocolos de encaminhamento; foco na MAC; modelo medicalizante; redução de oferta em serviços acadêmicos; distância e transporte; pagamento por produção | ||||
16 | ● Invasão dos serviços do SUS por munícipes vizinhos ● Disputas nas negociações com desvantagem para os municípios pequenos ● Importância da participação da SES ● Falta clareza do papel de regulação | ||||
N | Autor | Objetivo/Dimensão | Período | Tipo de publicação | Metodologia |
Regional | |||||
17 | Silva MJ (2014) | Análise do CGR Região Oeste – MT (12 municípios) | 2010 a 2012 | Dissertação de mestrado | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (11), observação e análise documental |
18 | Santos, Giovanella (2014) | Governança regional na CIR Vitória da Conquista – BA (19 municípios) | 2011 e 2012 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (17), análise documental grupo focal, observação |
19 | Silva, Gomes (2014) | Aplicação do PDR, PPI, PDI na Grande ABC – SP | 2010-2011 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão(10), análise documental |
20 | Martinelli (2014)* | Processo de regionalização e mix público-privado na Região de Tangará da Serra – MT (Médio Norte, 10 municípios) | 2006 - 2011 | Tese de doutorado | Estudo de caso de abordagem quanti-quali . Fontes: questionários auto-aplicados com gestão pública e privada, análise documental e de dados secundários |
21 | Mendes (2015) | Implementação do COAP em 5 regiões de SP. Proposta de análise de perfis regionais de saúde | 2011 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem quanti-qualitativa Fontes: entrevistas ligadas à gestão (8), análise de indicadores de monitoramento e avaliação |
N | Principais achados empíricos | ||||
Regional | |||||
17 | ● Descontinuidade da política de regionalização fortalecida entre 1995 e 2002 ● CGR enfraquecidos por “recentralização” da SES/MT ● Institucionalidade do CGR intermediária: instituído e organizado; estrutura insuficiente ao funcionamento adequado ● Espaço valorizado pelos atores, mas de legitimidade relativa ● Fragilidade técnica dos gestores municipais ● Interferências político-partidárias e clientelistas ● Interesses municipais em detrimentos aos regionais. Interesses estaduais sobressaem-se ● Destaque do Consórcio Intermunicipal de saúde na integração dos municípios ● Importante apoio técnico do COSEMS | ||||
18 | ● CIR: principal estratégia de governança regional – conflitante e institucionalidade intermediária ● CIR: importante espaço de interlocução, mas eminentemente burocrático ● Baixa autonomia dos gestores em relação ao poder executivo municipal ● Prioridade por interesses municipais, tradição clientelista e influência da política partidária ● Rotatividade de secretários de saúde ● Baixa qualificação técnica. Baixa capacidade de planejamento regional ● Recursos financeiros insuficientes dificultam cumprimento da PPI ● Baixa regulação do setor privado contratado. Compra de serviços no mercado privado por valores acima da Tabela do SUS (pagamento direto a médicos de outros municípios por procedimentos já custeados pelo SUS) | ||||
19 | ● PDR: necessidade de atualização para equilibrar a relação oferta/demanda ● PPI: arena de competição, ao invés de um espaço de articulação, negociação e pactuação ● PDI: pouco significativo, em função do subfinanciamento ● Dificuldade de alterar o foco da oferta para demanda ● CGR: inovação e ponto de mobilização e articulação regional ● Fragilidade técnica dos municípios ● Necessidade da liderança estadual ● Baixa legitimidade da pactuação/percepção de baixa influência dos pequenos municípios | ||||
20 | ● Descontinuidade política e administrativa nas trocas de gestão ● CGR: espaço importante, mas com governabilidade parcial: “somatório das partes” ● Rede de atenção fragmentada e Insuficiência da capacidade instalada ● Ausência de construção de unidades regionalizadas ● Privado: expansão e fortalecimento na rede de atenção ● MAC: garantida por contratualização do setor privado (dependência mútua) ● Baixa qualificação dos gestores municipais. Baixa cultura de planejamento ● Interferência político-partidária ● Necessidade da liderança da SES | ||||
21 | ● Vale do Ribeira. Baixo protagonismo regional. Relação de dependência da DRS. Suporte do consórcio da região. Fragilidade técnica, político-administrativa, capacidade instalada e interesses partidários ● Bauru: protagonismo do município-sede, força política, técnico-operativa, financeira e de estrutura instalada ● ABC paulista: maior protagonismo, dinâmica mais compartilhada e horizontalizada. Relação com consórcio metropolitano ● Baixada Santista: desmonte do processo anterior. Rotatividade de gestores ● Extrema fragilidade politico-administrativa, em geral, dos gestores municipais ● COSEMS: papel importante ● DRS: detentora do poder, mas com frágil capacidade de protagonismo político ● Governo do Estado: distante, autoritário, burocrático, quando não dificultador. Forte prestador com baixa relação produtiva com os municípios ● Qualidade da equipe técnica (ex. Câmara Técnica) condiciona pactos e liderança do município no colegiado regional ● CIR: dificuldade de sair da pauta da assistência, interesses municipais, vulnerável aos interesses particulares ● COAP pouco referido – mais na captação financeira do que de pactuação regional | ||||
N | Autor | Objetivo/Dimensão | Período | Tipo de publicação | Metodologia |
Regional | |||||
22 | Kehrig et al. (2015) | Regionalização da saúde sob o recorte da institucionalidade e governança. Região Sul-Mato-Grossense (MT) | 1995-2009 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Análise documental. Fontes: atas da CIB-CGR (também regulamentos, regimentos e instrumentos de gestão. |
23 | Medeiros, Gerhardt (2015) | Análise da RAS – cardiovascular – em 02 municípios de pequeno porte. 16ª região de saúde – RS | 2012 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fonte entrevistas ligadas à gestão(3); grupo focal (2). |
Fronteiriça | |||||
24 | Preuss, Nogueira (2012) | Regionalização na fronteira entre Brasil (RS), Argentina e Uruguai | ? | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (n?) |
Metropolitana | |||||
25 | Spedo et al. (2010) | Regionalização metropolitana do município de SP. (foco em uma Supervisão Técnica) | 2005 a 2008 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Fontes: entrevistas ligadas à gestão (5) e análise documental |
26 | Ianni et al. (2012) | Regionalização e condicionantes do acesso à AB na Baixada Santista - SP | 2007 a 2010 | Artigo original | Estudo de caso de abordagem qualitativa. Principais fontes: entrevistas ligadas à gestão (n?); análise das atas da CIR e CONDESB |
N | Principais achados empíricos | ||||
Regional | |||||
22 | ● Forte indução da SES, principalmente nos oito primeiros anos de existência da CIB Regional (1995-2002) ● Organização de consórcios intermunicipais, criação das CIB Regionais, câmaras de compensação para AIH; câmaras de auditoria e sistema de controle e avaliação ● Regionalização permeada pelo mix público-privado ● Afastamento da SES no processo regional depois de 2002 ● Importante papel do COSEMS ● Ausência de qualquer planejamento regional ● Dificultadores: - indefinição de responsabilidades entre as esferas de governo e as instâncias regionais - rotatividade dos gestores - predomínio de aspectos político-partidários | ||||
23 | ● Modelo assistencial fragmentado e focado em procedimentos ● Rede organizada principalmente sobre a oferta ● Suficiência de serviços, mas baixa integralidade e coordenação (baixo papel da AB) ● CIR: fórum importante de negociação e pactuação, mas com participação limitada dos gestores ● Baixa participação social ● Baixa capacitação técnica das SMS, baixa capacidade de planejamento ● Ausência de monitoramento e avaliação ● SES: centralizadora, mas ausente nas questões de regulação e pouco apoio técnico aos municípios | ||||
Fronteiriça | |||||
24 | ● Conselho Municipal de Saúde: principal ator no processo de pactuação ● Ações de integração isoladas, distância dos centros decisórios ● Gestão burocrática, centralizadora e normativa ● Gestores: compreensão superficial do Pacto pela Saúde | ||||
Metropolitana | |||||
25 | ● Fracasso da reforma regional intramunicipal ● SMS: caráter centralizador; separação político-administrativas entre atenção básica e a assistência hospitalar e U/E. Não assumiu de fato a gestão dos ambulatórios e hospitais estaduais ● Poder institucional e resistência dos hospitais em se integrar ao sistema de saúde ● Rotatividade de Secretários e cargos gerenciais de coordenação ● Falta de negociação prévia com atores institucionais. Baixa inclusão das várias representações (ex. usuários) ● Indefinição do papel estadual | ||||
26 | ● “Dupla identidade”, metrópole e região: prob. regionalização vs. prob. implantação da região metropolitana ● “Invisibilidade” do tema metropolitano para o gestor local e regional ● Invasão dos serviços do SUS por munícipes vizinhos, incluindo MAC e AB ● Ineficiência das instâncias e instrumentos e infraestrutura de gestão regional. Subfinanciamento ● DRS: cultura centralizadora e fragilidades técnicas e políticas ● CIR: importante espaço de discussão. Fragilidade técnico-política a mantém como espaço meramente homologatório ● Baixa capacidade de regulação: mecanismos informais e interpessoais associados ● Competitividade intermunicipal pelo aporte financeiro do estado ● Interesses municipais sobre regional |
* Recentemente foram publicados artigos das teses/dissertação. Entretanto foram mantidos os resumos dos trabalhos originais, até por terem maior amplitude do que os artigos iniciais gerados42-44.
Como esperado, a maioria das pesquisas concentram-se na abrangência regional (estado, macro e região)16-34; quatro apresentam dimensão nacional2,35-37; duas abordam regiões metropolitanas38,39; e apenas uma tem o foco em região fronteiriça40. No geral, sobressaem-se estudos de caso com método qualitativo, abordagem fenomenológica e baixo poder de generalização analítica. Mas, vários estudos se destacam pela originalidade, consistência metodológica e aprofundamento analítico2,16,22,25,27,35-37,41. À exceção da proposta de tipologia regional37, as demais pesquisas representam o universo discursivo de profissionais ligados à gestão em saúde. Ainda que de modo quase que tangencial, três estudos agregam pontos de vista do prestador23,25,32. O Quadro 2 elenca as principais categorias de análise levantadas nesses estudos. Em seguida, breves comentários sobre as dimensões gerais dessas categorias.
Quadro 2 Categorias prevalentes sobre regionalização no discurso ligado à gestão pública em saúde no Brasil.
Pereira, 2009 | Assis et al., 2009 | Viana et al., 2010 | Souto Junior, 2010 | Stephan-Souza et al., 2010 | Spedo; et al ., 2010 | Venancio et al., 2011 | Mesquita, 2011 | Coelho, 2011 | Lima Et Al., 2012 | Brandão et al., 2012 | Preuss; Nogueira, 2012 | Ianni et al., 2012 | Silva; Gomes, 2013 | Albuquerque, 2013 | Silva; Gomes, 2014 | Santos; Giovanella, 2014 | Silva, 2014 | Vargas et al., 2014 | Martinelli, 2014 | Guerra, 2015 | Mendes et al., 2015 | Medeiros; Gerhardt, 2015 | Kehrig; et al., 2015 | Bretas Jr; Shimizu, 2015 | |
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Importância da indução Federal | x | x | x | ||||||||||||||||||||||
Subfinanciamento | x | x | x | x | x | x | x | x | |||||||||||||||||
SMS/SES: cultura burocrática, perfil centralizador | x | x | x | x | x | x | x | x | |||||||||||||||||
SMS: baixa capacidade técnica, rotatividade | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | ||||||||||
SES: baixa liderança e apropriação do processo | x | x | x | x | x | x | x | x | |||||||||||||||||
CIR/CGR: importância, inovação | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | |||||||||
CIR/CGR: burocrática, interesses, vulnerabilidade | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | ||||||||||
Planejamento: baixa cultura,carência de instrumentos | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | x | ||||||||||||
Regulação: baixa clareza,carência de instrumentos | x | x | x | x | x | x | x | x | x | ||||||||||||||||
Jurídico: carência de instrumentos efetivos | x | ||||||||||||||||||||||||
Influência do mix estado/mercado (público/privado) | x | x | x | x | x | x | |||||||||||||||||||
Dificuldade na inserção/oferta dos hosp. universitários | x | x | x | ||||||||||||||||||||||
Apoio do COSEMS | x | x | x | x | x |
* Duarte et. al (2015) estão ausentes do quadro por não trabalharem elementos discursivos.
Na dimensão política (politcs), a autonomia municipal advinda do processo de descentralização – com consequente fragmentação do sistema – é vista como principal entrave à organização regional dos serviços. Problema cuja solução não se dissocia do desafio próprio que o arcabouço jurídico federativo imprime. A cultura política de negociação em detrimento do planejamento, e de tendência clientelista, é observação comum. Na dimensão das políticas (policies), fica patente a influência da indução normativa federal, responsável por orientar a política regional na maioria dos estados pelo princípio da equidade – no âmbito particular do acesso e desigualdades de financiamento –, e aumento da capacidade instalada. Entretanto, essa indução se vê debilitada no passar do tempo por motivos variados: dificuldade em incrementar o estímulo de modo continuado e proporcional às novas necessidades do fortalecimento do processo regional – o subfinanciamento é consenso; fragmentação das pastas do Ministério da Saúde envolvidas; imprecisão normativa; e iniciativas com baixa perspectiva sistêmica.
Categoria onipresente, as SMS, principais responsáveis pelo pressuposto da gestão cooperativa, solidária e de interdependência regional, são vistas como estruturas burocráticas de perfil centralizador. Sua atuação é ainda prejudicada pela descontinuidade política decorrente da rotatividade de secretários. A fragilidade técnica é talvez seu maior ponto de vulnerabilidade. O CONASEMS aparece citado como importante apoiador no processo regional.
Como regra, a esfera estadual é vista como o parceiro ausente. Há certo clamor para que as SES assumam maior papel de liderança na coordenação do processo regional, com presença efetiva na regulação, mediação e negociação. Entretanto, é reconhecida sua fragilidade estrutural e técnica para este novo protagonismo.
As instâncias regionais são amplamente valorizadas como espaço político inovador e de governança regional. Mas, naturalmente moldadas na amplitude política de uma democracia em consolidação e seus temperos históricos, ressentem-se da dificuldade em superar a reprodução da cultura política municipal e seus acentuados interesses eleitorais, clientelistas e corporativos. Com isto, infere-se que a regionalização da saúde sofre mais influência da dinâmica política e social abrangente, e seu acúmulo histórico, do que da política de saúde especificamente.
Mais do que coexistência, a interdependência entre Estado e mercado é uma característica disseminada pelo país. Embora apresente regiões com maior ou menor predominância nessa composição, não há um padrão definido pelo país. É consensual a incapacidade do gestor em regular o setor privado contratado, cuja forte influência se dá pela capacidade instalada, participação nos processos de decisão e múltiplos vínculos profissionais.
A falta de cultura de planejamento é outro forte consenso, obstaculizado ainda mais pela debilidade dos instrumentos disponíveis: o Plano de Saúde é trabalhado de modo formal e simbólico; o PDR contaminado pela política menor; e a PPI obstada pelo subfinanciamento e disputas intermunicipais. Os instrumentos jurídicos de garantia das pactuações são débeis, praticamente ausentes nas dimensões metropolitana, interestadual e fronteiriça. O desenvolvimento de ferramentas eficazes de coordenação, regulação e planejamento é disposto como um dos principais desafios à governança regional.
Embora expressão corriqueira, a realidade é que falta clareza sobre o sentido mais abrangente do termo. De pragmático é assinalada a dificuldade geral de regulação de fluxos regionais, comumente referida pelos municípios mais estruturados como “invasão”.
Mesmo que se trate do exercício de funções semelhantes, é mais do que notável a homogeneidade e a regularidade do corpo discursivo revisado, independente do tempo, dimensão e região analisada – e que se remete mesmo a estudos anteriores ao Pacto pela Saúde33,45. Característica de certa forma esperada, até porque a indução normativa federal determina certa coesão entre a atuação dos entes, revelando dificuldades técnicas comuns. Fóruns e representações nacionais, à exemplo de CONASS e CONASEMS, também participam nessa correspondência. Mas, é como se um grande resumo dessa literatura revisada tivesse sido encomendado no ensaio produzido por uma reunião de Secretários de Saúde municipais17 – no sentido da ideia de “isomorfismo organizacional”46 –, mas sem querer aqui adentrar pela abordagem institucionalista.
Uma primeira indução é que a coesão geográfica e temporal do conjunto de estudos revela substancial validade externa das categorias revisadas; de forma a assumir esse corpo discursivo como uma representação comum do discurso gerencial no processo de regionalização do SUS em todo país. A consequência mais imediata é reforçar o crédito de que os fenômenos mencionados são realmente inegáveis e importantes ao processo regional de sul a norte.
Mas isso não exclui a possibilidade de que o olhar de pesquisa esteja em sua maioria voltado para o mesmo lado, despercebendo possíveis variações do cenário (a escolha dos atores-chaves e do roteiro é opção da pesquisa – e quem pergunta não só apenas conhece parte da resposta como influencia no direcionamento do discurso). Por exemplo, apenas dois trabalhos fazem menção à perspectiva de uma regionalização intersetorial, contudo sem aprofundar os méritos25,35. O papel do prestador, em especial dos hospitais, ou questões tecnológicas e de inovação estão amplamente encobertos.
Essa baixa variação discursiva nos últimos anos também fortalece indícios de que na sequencia da inflexão promovida pelas NOAS, e mais fortemente pelo Pacto pela Saúde, o processo regional atingiu há algum tempo uma espécie de platô político. Uma das causas mais fáceis de elencar seria a insuficiência de novos estímulos – diga-se recursos – para superar os estágios alcançados. A onipresença da queixa de subfinanciamento é autoexplicativa.
A esfera estadual, por sua vez, agrega pouco no cômputo global, na maioria das vezes tida como omissa, algumas como entrave. No entanto, a fragilidade técnica do ente municipal – mas também estadual – surge como um dos entraves mais categóricos do processo de regionalização no país; sem dúvida com reflexo na percebida vulnerabilidade e burocratização dos CGR/CIR.
De modo geral, as categorias temáticas resultantes são de compreensão imediata, sendo desnecessário estender discussões específicas sobre cada uma. Entretanto, a dimensão e a perenidade desse conjunto em diálogo com o contexto histórico-estrutural do país permite aprofundar as análises em categorias analíticas mais robustas, realizadas a seguir.
Há uma crítica renitente à participação da SES no processo regional. Embora seu enunciado tenha origem no âmbito da regionalização, o problema é anterior e se remete ao processo de descentralização4,5. Provavelmente, com influências mais abrangentes e antigas, pois o desenho da polarização entre municípios e federação já havia sido caracterizada na política varguista47. Uma questão, portanto, é saber em que medida o processo regional depende também da atualização da questão federativa.
Sabe-se que a municipalização trouxe um padrão mais democrático de governança local48,49. Mas, inversamente, é conhecido o problema da descentralização com a iniquidade regional, burocratização e politização dos níveis locais, ao mesmo tempo em que dificulta a regulação do nível central6, justamente as motivações para o fortalecimento da questão regional no país.
Os estados brasileiros alcançaram estágios diferenciados de descentralização na saúde, o que se traduz em particular no grau de controle sobre a média e a alta complexidade (MAC), definindo posição privilegiada ao hospital de referência na organização do sistema. O papel que esse hospital exerce na governança regional é ainda pouco compreendido no processo de regionalização14. Há certa percepção de que os estados que mais avançaram na descentralização dos seus sistemas de saúde têm hoje mais dificuldade em regular o processo regional, o que levantaria a possibilidade de que algum grau de recentralização poderia ser benéfico em alguns casos (questão certamente incompleta, uma vez que São Paulo detém considerável componente da MAC e é também visto como elo frágil do processo). Balança em que se pesam continuamente medidas estruturais e não estruturais na busca de um equilíbrio dinâmico10.
A gestão municipal é amplamente interpretada como um elo frágil e dificultador do processo regional, questão que naturalmente embute a ideia de que a melhoria técnica do quadro municipal impactaria na capacidade regional. Sem dúvida, mas, de fato, os estudos não avançam em uma questão nuclear: porque essa fragilidade não dá mostras de reversão ao longo do tempo? Não parece ser apenas um problema do ‘como fazer’, algo para o qual alguém logo sugeriria cursos técnicos, de especialização e afins, ou apenas ligada à rotatividade.
Sob outro olhar, pode ser aventado que o foco das análises esteja demasiadamente concentrado no conteúdo regional da reforma, na formação de redes, na assistência, em detrimento dos atores envolvidos50. Aqui pensando especificamente em inverter a perspectiva da visada para o município como ator principal interessado na regionalização e suas próprias necessidades (e não na ‘regionalização’ interessada no município). Deste novo ponto de vista, aparentemente paradoxal, parece despontar a necessidade de apoio, reforço e investimento na gestão municipal como parte inerente das próprias políticas de regionalização. Questão que releva também a discussão do papel do COSEMS, ator pouco rememorado nos estudos, mas sempre de forma positiva.
A indução exitosa da capacidade técnica municipal é uma possibilidade histórica concreta51. Fica o desafio de se pensar um modelo de indução que fortaleça tecnicamente município e região em paralelo, e em período de tempo aceitável. É como se necessitasse – e se necessita – entrar em uma sociedade pós-industrial, sem antes experimentar a industrialização; ou entrar em uma administração pública moderna, sem antes experimentar uma administração burocrática eficiente.
Em posição serena e reflexiva, Gilles Dussault52 assinala aquela que lhe parece a maior diferença gerencial entre as culturas anglo-saxãs e latinas: “o grau de profissionalização e correspondente despolitização da gestão dos serviços de saúde e, em geral, dos serviços públicos”; aliada a uma tradição de formação em gestão e favorecimento da nomeação meritocrática, especialmente “para postos de direção em que esta resulta das competências e experiências que correspondem às exigências específicas da função”.
Mas, se a necessidade de maior foco nas necessidades municipais, favorecimento de carreiras de gestão e escolhas gerenciais mais apropriadas fornecem parte da resposta, outra característica particular da política brasileira, discutida a seguir, também contribui para determinar a abrangência e a perenidade da incapacidade municipal revelada nas pesquisas.
O argumento desenvolvido aqui se beneficia da análise de Vargas et al.16, na qual observam que os desafios da regionalização da saúde no Brasil reúnem quatros maiores categorias de análise:
Implementação baseada em negociação ao invés de planejamento
Grande responsabilidade dos municípios com baixa capacidade técnica
Falhas no planejamento e na coordenação das competências envolvidas
Falta de clareza sobre as regras políticas de implementação
Não é o caso de rediscuti-las, senão remeter os interessados à discussão original. Mas, aqui interessa observar que essas categorias não se dispõem no mesmo plano histórico de análise; de forma que é possível discriminar uma hierarquia do tipo causa e consequência entre elas. Nesse raciocínio a cultura política de consenso mediado por negociação, em relação inversa com a política baseada em planejamento, ganha anterioridade às demais – muito particularmente quando contextualizada às tradições do modelo de negociação política no país (barganha), apontadas extensivamente desde Oliveira Viana53, Victor Nunes Leal54, ou Rodolfo Mascarenhas55, este na especificidade paulista da saúde pública.
Vargas et al.16 trazem um problema essencial ao debate. No pragmatismo norte-americano, por exemplo, são antigos os exemplos de como a questão metropolitana e regional ligada à saúde pública encontram-se primariamente no âmbito do planejamento e não da barganha política56.
Em nosso histórico sanitário, um tanto tributário dessa formação pragmática, Barros Barreto57, principal responsável pela conformação sanitária do país na primeira metade do século XX, já chamava a atenção para a necessidade do planejamento da distribuição dos serviços de saúde no interior do país, atento ao que viria ser abordado como integração intersetorial. Em termos de cultura institucional, a Fundação SESP, de forte influência norte-americana, foi quem mais insistiu na necessidade da organização racional, planejamento e integração dos serviços de saúde entre nós3,55-58 – escola fortemente combatida com a ascensão do pensamento político crítico que culminaria na Saúde Coletiva. Entre as principais motivações, justamente a contraposição ao que se via como uma cultura eminentemente técnica que desconsiderava a importância estratégica da intencionalidade política no planejamento. De todo modo, embora se possa pensar nas repercussões específicas desta ruptura na formação em saúde pública, os resultados revisados sugerem que a dinâmica regional diz mais respeito à cultura social e política aberta do que à questão setorial da saúde propriamente16,35. Notadamente uma cultura político-administrativa com dificuldades de planejamentos virtuosos de longo alcance2.
Mas, como interpretar a perenidade dessa deficiência em planificação? Uma questão central é que em última análise a lógica da barganha mantém a ideia de planejamento em saúde eminentemente subordinada ao rol de possibilidades restantes da negociação política – de condições desiguais entre os municípios. Desequilíbrio que aniquila a própria concepção de planejamento (como aprimorar um conceito mutilado?). Completa-se assim um círculo vicioso composto pela baixa qualificação técnica e gerencial, alta rotatividade profissional e esvaziamento do sentido de planejamento. Enfim, numa reafirmação de que a categoria do primado da negociação política sobre o planejamento acaba por subordinar as demais elaboradas. Um contexto certamente pouco favorável ao desenvolvimento de ferramentas efetivas e inovadoras de planejamento regional e, por conseguinte, à superação dos limites alcançados pela inovação das novas instâncias regionais. Contribui ainda para compreender a baixa possibilidade de reversão do modelo de planejamento sobre a oferta – obviamente prioridade quando a negociação vem primeiro – para outro sobre a demanda, capaz de conduzir o setor privado complementar a aderir aos objetivos precípuos do SUS.
A revisão evidenciou que o processo de regionalização é hoje uma realidade vívida na gestão da saúde em todas as esferas de governo, mas que se defronta com um conjunto de desafios comuns às diversas realidades do país. Os colegiados são valorizados como importantes espaços de inovação, mas ainda em busca da superação de uma cultura política burocrática e clientelista. A governança regional deve enfrentar a fragmentação do sistema e a histórica deficiência com planejamento, desde as questões locais às políticas estratégicas, como a incorporação tecnológica. As análises permitiram uma incisiva implicação da cultura de amplo privilégio da negociação política em um ciclo vicioso que sustenta a deficiência técnica da gestão.
Uma produção científica em franco amadurecimento releva, entre outras características, a latência entre as prioridades políticas estabelecidas no setor saúde e a capacidade de reação acadêmica em prover evidências e indicadores do processo. A distância entre as prioridades acadêmicas e a política parece bem representada na presença significativa das universidades no processo regional em apenas três estados35, além da histórica dificuldade de inserção dos hospitais universitários no planejamento da rede assistencial23. De fato, o descompasso entre a implementação de políticas sociais e a pesquisa acadêmica tem sido descrito na literatura internacional como um desafio comum59. Uma variável fundamental na baixa reflexividade do desmonte recente dos processos regionais da saúde canadense teria sido justamente a ausência de evidências científicas sobre as políticas instituídas9.