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O Programa Iluminar Campinas: a construção de uma política intersetorial e interinstitucional para o enfrentamento da violência como um problema social

O Programa Iluminar Campinas: a construção de uma política intersetorial e interinstitucional para o enfrentamento da violência como um problema social

Autores:

Claudia Mara Pedrosa,
Carmen Simone Grilo Diniz,
Verônica Gomes Alencar de Lima e Moura

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.6 Rio de Janeiro jun. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015216.07822016

Introdução

Violência e os desafios para a promoção da saúde

O Ministério da Saúde, com a publicação da portaria que instituiu a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências enfatizou o reconhecimento da violência como um dos principais problemas de saúde pública e de cidadania. Porém, inúmeros estudos relatam os entraves, na área de saúde, para a organização e a oferta de atendimento humanizado, acolhedor e efetivo às pessoas que estão em situação de violência. Os fatores apontados englobam o déficit na formação profissional e as dificuldades de desenvolvimento, nos serviços, de medidas que sejam relevantes e singulares a determinados grupos da população e a contextos culturais específicos entre outros aspectos1-5. Somadas a estas dificuldades, a violência tem sido presente e marcante no cotidiano dos serviços, trazendo impactos à saúde dos usuários, à rotina e qualidade de vida dos profissionais e aos investimentos no Sistema Único de Saúde.

Apesar do grande esforço teórico metodológico e político, nas décadas de 60 e 70 do século passado, para se compreender a saúde como questão ampliada, especialmente por causa da complexa transição epidemiológica, a autora Maria Cecília Minayo6 ressalta que nunca um tema provocou e continua a provocar tantas resistências em relação à sua inclusão nas pautas do setor saúde como a violência e acidentes. A violência, segundo a autora, se transformou em um problema de saúde pública, porque afeta a saúde individual e coletiva, exige a formulação de políticas públicas específicas, assim como a organização de práticas e de serviços peculiares ao setor para sua prevenção e enfrentamento.

O presente artigo apresentará a experiência de construção de uma política municipal de promoção da saúde, O Programa Iluminar Campinas, no interior de São Paulo, que envolveu e articulou uma ampla rede de equipamentos e serviços intersetoriais para o enfrentamento da violência, considerando-a como um dos determinantes e condicionantes da saúde.

Referencial Teórico metodológico

Para compreender como foi estruturado o Programa Iluminar Campinas foram realizadas 15 entrevistas com gestores, profissionais e atores da rede de cuidados, contemplando o pertencimento na intersetorialidade na seleção. Além das entrevistas foram também analisados documentos públicos e da gestão municipal de saúde do período de 2001 a 2015.O estudo foi submetido aos Comitês de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Secretaria de Saúde de Campinas que aprovaram o termo de consentimento informado livre e esclarecido utilizado. A pergunta norteadora da entrevista aberta foi o processo de construção do Programa Iluminar Campinas e suas dificuldades, potencialidades e desafios.

Para análise dos documentos foram realizadas buscas no banco de dados virtual da prefeitura municipal de Campinas. Os documentos apresentavam informações técnicas aos profissionais, orientações à comunidade, notícias e informes sobre o Programa Iluminar e textos e citações utilizadas nos encontros de formação dos atores. Estes documentos foram disponibilizados com acesso livre a usuários da internet e alguns também foram impressos e divulgados em serviços e eventos com a comunidade e profissionais de diversos setores. Os documentos foram analisados com o objetivo de conhecer o discurso oficial sobre o processo de implantação da rede de cuidados à violência em Campinas7.

Para análise das entrevistas foi realizada inicialmente a transcrição sequencial8 que tem o objetivo de apresentar uma síntese da fala de cada interlocutor e “permite entender a dinâmica das trocas discursivas (quem fala, quando fala, sobre o quê) e, sobretudo, ter uma visão de conjunto das temáticas em discussão” conforme nos apresentam Spink e Cordeiro8. A transcrição sequencial possibilita a visão do todo e nos ajuda na eleição de algumas temáticas para análise mais detalhada, porém é importante ressaltar que, o contexto da fala é situado, pois na pesquisa com práticas discursivas é importante se referir ao todo8.

Na análise utilizamos a interlocução teórica com Bruno Latour9 a partir de sua noção de rede. Esse autor questiona o conceito de rede trazido pela ciência moderna e enfatiza que este olha a realidade como uma entidade homogênea e exterior a nós, capaz de ser capturada em modelos que não representam as práticas sociais que lhe dão sustentação. Neste sentido, os estudos de Sherrer-Warren10 destacam que ao pensar em rede devemos buscar as formas de “articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores com o pluralismo”. Nossas interações com outras pessoas são mediadas através de objetos, que carregam sentidos e, portanto, produzem ações, assim o desenvolvimento das tecnologias criou novas relações entre as máquinas e humanos, redimensionando a variação entre global e local10. Portanto, há uma tendência de transformar fenômenos amplos em totalidades sistemáticas e globais perdendo a heterogeneidade e a particularidade. Neste sentido, o autor Bruno Latour nos instiga a pôr em dúvida a definição antecipada de conexões entre fenômenos locais e globais e ressalta a intermediação entre pessoas e coisas:

Existe um fio de Ariadne que nos permite passar continuamente do local ao global, do humano ao não humano. É a rede de práticas e de instrumentos, de documentos e traduções. É um emaranhado de redes materializadas em faturas, organogramas, procedimentos locais e acordos particulares, os quais permitem, na verdade, que [est]a rede seja estendida sobre um continente, contanto que não cubra este continente9

Resultados

A estruturação da rede de cuidados à violência

A estruturação do atendimento às pessoas em situação de violência nos serviços de saúde, em Campinas, até o ano de 2001, não contava com protocolo específico, nem tampouco com a identificação dos recursos locais para referenciamento. O número de pessoas que chegava até os serviços, comparado aos dados já publicados de estudos nesta área, estava subestimado e preocupava as coordenações de saúde, principalmente na área de saúde da mulher, que identificava e cuidava das vítimas de violência sexual com importantes sequelas para a saúde, como a ocorrência de gravidezes pós-estupro e as doenças sexualmente transmissíveis e aids.

Assim, a Coordenação Municipal da área de Saúde da Mulher, em abril de 2001, considerando a necessidade da abordagem intersetorial, a participação da sociedade e o compartilhamento de responsabilidades na formulação da política municipal para promoção da saúde, convocou um seminário local com os gestores de diversos órgãos governamentais municipais e estaduais, nas áreas de saúde, educação, segurança pública e organizações da sociedade civil envolvidos no enfrentamento da violência na cidade de Campinas. Neste momento foi enfocado inicialmente o cuidado à violência sexual, dada a urgência de organizar ações para minimizar os riscos de contaminação e a gravidade dos impactos na saúde das vítimas. O encontro buscou identificar os serviços existentes e avaliar os principais obstáculos e potencialidades de cada serviço. Após o evento foi elaborada uma carta de intenções programáticas para a criação da Rede Iluminar, entregue à gestão municipal.

Em meados de maio de 2001, com o recebimento de uma verba federal de cem mil reais do Programa de Prevenção às DST/AIDS do Ministério da Saúde, foi dado início formal à articulação da rede para a organização do fluxo de atendimento inicialmente focando a violência sexual. Constituiu-se assim, o itinerário oficial dentro da rede de cuidados às pessoas que haviam sofrido violência sexual. Este fluxo reorientava o sistema de serviços de saúde, interligava os serviços e setores, facilitando o acolhimento, o atendimento e o encaminhamento dos casos.

A noção de integralidade orientou as ações de cuidados e frente à constatação da necessidade de formação profissional para efetivar o cuidado, a coordenação organizou, em parceria com o movimento social de mulheres local, encontros de sensibilização e formação para profissionais dos diferentes setores, durante os 18 meses seguintes do início da implementação. Na compreensão dos atores que estavam à frente da estruturação do Programa Iluminar, para que a rede se consolidasse e gerasse modificações substanciais nas ações em todas as áreas envolvidas, era necessário construir princípios norteadores e conceitos definidos, como relata o médico do Centro de Assistência Integral a Saúde da Mulher CAISM da UNICAMP:

Os conceitos que norteavam a estruturação (da rede) eram: a violência sexual é um problema de saúde pública e não de polícia; a realização da prevenção eficaz se faz com a urgência no atendimento de até 72hs; promover a proteção e impedir a revitimização das pessoas nos serviços; cuidar das mulheres, crianças, adolescentes e homens; intervir na cadeia de violência sexual; criar banco de dados e cuidar dos autores de violência em ambiente não policial.

Estes e outros princípios convergentes com a gestão sanitária do município, nortearam as capacitações onde 800 profissionais de diferentes serviços participavam e assumiam o compromisso de replicar o conteúdo aos colegas, em suas unidades. Os conceitos fundamentais utilizados nas capacitações foram: de cuidado, resiliência, e solidariedade operante.

A organização do fluxo-itinerário

A organização do fluxo de atendimento demandou a divisão da rede intersetorial de cuidados em duas áreas. A rede de cuidados indiretos: formada pelas creches, escolas municipais de educação infantil, serviços municipais de Assistência Social, Guarda Municipal, Conselhos de Direitos da Criança e Adolescentes, da Mulher, do Idoso, do Deficiente e os Conselhos Tutelares, organizações não governamentais - como o SOS/Ação Mulher e Família - que já trabalhavam com ações voltadas às mulheres, crianças e adolescentes, Instituto de Medicina Legal, Delegacias da Mulher e de Polícia, Centro de Referência e Apoio à Mulher – CEAMO, Serviços de Assistência Jurídica e Psicológica da PUC Campinas, Universidade Paulistana UNIP e Abrigo de Mulheres.

A rede de cuidados diretos foi composta pelos Centros de Saúde, Prontos-socorros Municipais, Centro de Assistência Integral a Saúde da Mulher CAISM da Unicamp; Pronto-Socorro Infantil da Hospital das Clinicas da Unicamp; CRAISA-Centro de Referência e Atenção Integral à Saúde do Adolescente; CRAMI-Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância; Serviço de Atendimento Municipal de Urgência (SAMU), Centros de Apoio Psicossociais (CAPS), Centro de Referência de DST/AIDS e Centro de Orientação e Apoio Sorológico (COAS).

As responsabilidades da rede de cuidados indiretos foram definidas como amplas, pois englobava desde o acolhimento das pessoas que sofreram violência; a realização dos cuidados específicos e o acionamento da guarda municipal para que esta conduzisse as pessoas até o Pronto Socorro definido pelos fluxos de funcionamento da rede. A rede indireta também participa da notificação dos casos e quando a ocorrência envolver crianças e adolescentes também é acionado o Conselho Tutelar. Após o percurso nesta rede, o fluxo é direcionado à rede de cuidados diretos.

Nesta rede, de cuidados diretos, acontecem os cuidados de urgência, como os atendimentos específicos da saúde com equipes multiprofissionais - médicos, enfermeiras, assistentes sociais e psicólogos, os quais são norteados pela Norma Técnica do Ministério da Saúde “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”11. Nesta etapa realizam a prevenção à gravidez por estupro; as DSTs e hepatite; realiza-se as sorologias necessárias; a coleta de sêmen; orientação à vítima para realização do Boletim de Ocorrência e exame de corpo de delito. O encaminhamento para o Centro de Referência de DST/AIDs para seguimento da medicação antirretroviral e vacinação contra hepatite também é realizado nesta instância e novamente é encaminhado aos Serviços da Rede Indireta para cuidar das questões sociais e jurídicas. A presença da Guarda Municipal neste fluxo, como veremos mais a frente, aumenta a rapidez do atendimento, possibilita segurança e proteção às pessoas que passaram por violência, principalmente a sexual, pois no percurso da rede ao serem acionadas as viaturas da Guarda Municipal conduzidas por profissionais que também foram capacitados, transportam as pessoas aos serviços estabelecidos e também até a sua residência, após os atendimentos.

Há serviços mais específicos, como o Centro de Assistência Integral a Saúde da Mulher (CAISM), responsável, no caso da violência sexual, pelo atendimento de urgência onde acompanha o tratamento por quatro semanas e depois por seis meses até se avaliar as viragens sorológicas. O atendimento é feito por uma equipe de médicos da área de ginecologia e psiquiatria, psicólogos, enfermeiras e assistentes sociais. Este serviço integra a formação profissional, na Universidade de Campinas, nos currículos das residências de Ginecologia e Obstetrícia e Saúde da Família. O CAISM realiza também o abortamento legal garantido pelo código penal às mulheres que engravidaram em decorrência do estupro, seguindo todas as orientações do Ministério da Saúde12.

A formulação do sistema de notificação local da violência

No momento da formação da rede de cuidados à violência, em 2001, surgiu a necessidade de se criar uma ferramenta local que realizasse a notificação dos casos, acionasse a rede de atendimento, interagisse com o Conselho Tutelar e também organizasse um banco de dados. Iniciou-se, assim, o desenvolvimento de um projeto específico no Serviço de Informática da Prefeitura voltado para a criação de um programa local de notificação e, em 2005, foi criado o Sistema de Notificação da Violência (SISNOV).

O SISNOV é um sistema eletrônico, integrado, intersetorial e interinstitucional de notificação dos casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes, de violência sexual em qualquer idade ou sexo e de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, em Campinas. Os dados notificados no sistema auxiliam no direcionamento das políticas locais específicas para redução dos riscos e danos associados a estes tipos de violência e geram informações e indicadores. O SISNOV foi criado a partir de uma portaria municipal do Conselho Municipal de direito da Criança e Adolescente, que garantiu a formação de um Comitê Intersetorial e Interinstitucional para a gestão da informação do banco de dados do SISNOV.

Em 2008, quando o Ministério da Saúde implantou a Ficha de Notificação e Investigação de Violências no SINAN (Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação), que era obrigatório para as unidades de saúde e trazia uma lista de violências mais ampla que a do SISNOV, os gestores deste sistema, que já planejavam a ampliação da lista de violências, buscaram adaptar o SINAN para o SISNOV. Isso se deu porque o SINAN é um sistema de uso exclusivo pelas unidades de saúde e não contemplava no seu formato o registro das notificações intersetoriais consolidado no SISNOV. Com apoio do Ministério da Saúde, o SISNOV foi adaptado para que, mantendo peculiaridades locais, fosse capaz de gerar notificações no SINAN, resultando assim no SISNOV/SINAN, que atualmente permite o registro de 14 tipos diferentes de violências predefinidas.

O acesso ao sistema em Campinas, que está situado na página da prefeitura, é via internet, porém para ter direito a ser um serviço notificador, tanto os serviços como os profissionais devem solicitar um cadastro junto ao Conselho Gestor do SISNOV que irá analisar e decidir se eles estão capacitados para entrar na rede de cuidados e fazer parte do sistema.

O Comitê Intersetorial e Interinstitucional do Sistema (CII –SISNOV) apresenta e discute os dados das notificações em reuniões periódicas, lançando anualmente um relatório com todos os dados descritos – o Boletim SISNOV. Os dados permitem que o Comitê monitore o funcionamento da rede e indique, quando necessário, ajustes ou alterações no fluxo, melhora na divulgação das ações ou serviços ou a realização de módulos de formação para os profissionais. No último boletim divulgado com os dados de notificação do ano de 2014 até o primeiro semestre de 2015, o comitê destacou a queda, no ano de 2014, nas notificações da violência contra as mulheres na faixa etária de 20 a 29 anos. O indicador foi correlacionado a alguns fatores, como a mudança de endereço, naquele ano, do Centro de Referência e Apoio à Mulher (CEAMO/SMCAIS) – importante serviço de acolhimento a mulheres nesta faixa etária dentro da rede de cuidados. Em 2014, os atendimentos naquele serviço ficaram restritos devido à reforma no novo local, readequação e divulgação do novo endereço. Já no ano de 2015, com o atendimento restabelecido e com a nova localização do CEAMO, em área central que facilitou acesso da população, foi notado um aumento considerável na demanda, com reflexo na notificação.

Considerações finais

O Programa Iluminar, ao evidenciar as lacunas existentes na rede de cuidados, buscou a superação dos limites e contornos que se desenhavam ao redor de cada território, ou seja, que limitava e definia cada espaço setorial. Através das reuniões de monitoramento da rede que analisaram os casos e as deficiências enfrentadas nos atendimentos, surgiu a necessidade de incluir novos atores. A inserção da Guarda Municipal na rede de cuidados foi um exemplo de uma nova composição que gerou resultados significativos.

A Guarda Municipal, ao integrar o itinerário de cuidados, passou a auxiliar na problemática da proteção e deslocamento ágil das pessoas que passaram por situações de violência sexual, até os serviços de saúde. Os profissionais da Guarda Municipal, após as capacitações, passaram a identificar nas ocorrências de violência quais os serviços mais adequados para o atendimento da situação. Dessa maneira, compõem a rede auxiliando tanto na identificação rápida dos casos que necessitam de atendimento à saúde, segundo o protocolo do Ministério da Saúde para os casos de violência sexual, quanto na efetivação de transporte sanitário seguro entre um serviço e outro do itinerário.

A Guarda Municipal incorporou em suas práticas a noção da integralidade do cuidado, respeito e sigilo, e passou a reconhecer o atendimento à saúde como prioritário. Constituiu assim, importante parceria na proteção e recuperação das pessoas após a situação de violência e os serviços de saúde passaram a identificar e acionar os profissionais da Guarda Municipal na linha de cuidados. A Guarda Municipal passou a usar viaturas ‘à paisana’ que são utilizadas especificamente para este atendimento, protegendo assim os cidadãos de exposições e riscos que uma viatura identificada poderia trazer.

A Guarda Municipal contribuiu para diminuir o tempo de atendimento após a ocorrência da violência sexual, que é fundamental para as profilaxias e a qualidade de vida das pessoas, pois ao identificar, em qualquer espaço social uma pessoa que sofreu a violência sexual, a Guarda a transportará ao serviço de referência, priorizando sua saúde. O diferencial pode ser constatado na temporalidade de atendimento como reduzir o risco da gravidez após o estupro, pois a administração da pílula do dia seguinte dentro das 72 horas após o evento, aumenta a chance de reduzir a ocorrência da gravidez e protege a mulher de procedimentos mais invasivos e dolorosos como procedimentos cirúrgicos para a garantia do aborto legal. No ano de 2000, o tempo de realização do primeiro cuidado após a violência sexual foi de 72 horas para 80% dos casos recebidos. Já no ano de 2007, para 88% dos casos atendidos, este tempo já havia caído para 12 horas, aumentando assim a efetividade das profilaxias e da qualidade de reabilitação das pessoas.

Outra importante conquista neste movimento de articulações, foi a superação de hierarquias entre instâncias municipais e estaduais. A entrada do Instituto Médico Legal (IML) na rede de cuidados é um exemplo desta busca de superação das demarcações. O IML é uma instância gerida pela Secretaria de Segurança Pública do Estado e foi inserida nas prioridades municipais no momento da implantação da rede de cuidados, recebendo uma parte da verba destinada à implantação do Programa Iluminar. Os recursos foram utilizados para realizar a reforma do espaço físico do IML, que se mostrava emergente e para a compra de equipamentos e materiais ginecológicos.

O IML, ao compor oficialmente a rede de cuidados, transformou seu modelo de atendimento historicamente voltado para a perspectiva policial. Atualmente, além do atendimento, condizente a um modelo humanizado de saúde e ajustado à demanda da/o usuária/o, o IML garante que todos procedimentos realizados pela rede de cuidados à saúde sejam válidos como laudo indireto para uso do IML, evitando assim que a vítima necessite fazer o exame de corpo de delito no período do trauma.

O IML também abriu suas portas para estágios profissionalizantes aos alunos de graduação de Enfermagem de uma Universidade que compõem a Rede de Cuidados, possibilitando o acesso ao ensino em uma área pouco explorada nas formações de saúde e permitindo às vítimas o acolhimento e o preparo para o exame ginecológico pelas graduandas de Enfermagem. Essa foi uma ação da Política que contribuiu para alterar o cenário de pratica da formação para o SUS.

O conhecimento produzido na integração da rede de cuidados foi incorporado pelo Instituto Médico Legal nas materialidades físicas ao adaptar o espaço para o atendimento digno e humanizado; e nas habilidades técnica ao transformar o modelo assistencial. Quando o conhecimento é corporificado em várias formas materiais, ele é produto final de muito trabalho nos quais elementos heterogêneos13, como a mesa ginecológica, o especulo vaginal, o avental médico, as luvas descartáveis, os tubos de ensaio, os reagentes, as mãos habilidosas, os profissionais e os protocolos médicos são justapostos numa rede que supera suas resistências.

A transformação que a rede está proporcionando possibilita refletir a composição e a articulação dos atores, pois todos estes elementos que se articulam compõem diferentes redes que participam da estrutura social e esta não é algo separado e independente, ‘mas um local de luta, um efeito relacional que se gera recursivamente e se autorreproduz’14-16.

Dessa maneira, a construção da rede de atenção à violência em Campinas produziu diferenças fundamentais ao articular em suas conexões elementos conceituais, como a concepção ampliada de cuidado e direitos; elementos físicos, como as viaturas da Guarda Municipal; e elementos textuais como os protocolos definidos na linha de cuidados, gerando novos sentidos a velhos desafios sociais17-22.

Desafios e desdobramentos futuros

O Programa Iluminar avançou ao concretizar práticas que costumeiramente se apresentam para os gestores e serviços como ações de planejamento e execução difíceis e inovou ao articular novas parcerias e pactuações. Porém, vários obstáculos e dificuldades estiveram presentes neste percurso e continuam a desafiar o desenvolvimento e a manutenção da rede de cuidados.

Eventos como as mudanças frequentes de profissionais na área da saúde dificultam a consolidação da linguagem comum frente à violência e geram notificações deficitárias ou errôneas, que são percebidas no SISNOV quando chegam dados incoerentes com a descrição, como por exemplo, apontam que um homem foi vítima de estupro. A categorização errada dos tipos de violência pode acarretar prejuízos na condução do caso para a/o paciente e impossibilitar a utilização do sistema como um banco de dados legítimo da realidade local. A cada mudança se faz necessário que os serviços integrem os novos profissionais aos propósitos da rede e os sensibilize para o trabalho; tarefa nem sempre inserida na temporalidade adequada. Estes desenhos organizativos são específicos dos serviços e por isso são desafios para a consolidação da rede, pois irá depender da prioridade que os gestores oferecem a questão e seus desdobramentos, como a manutenção do atendimento e da notificação ativa.

Desde o início da implantação da rede de cuidados buscou-se realizar sistematicamente reuniões intersetoriais para discutir casos de difíceis resoluções, são considerados casos sentinelas, porém nem sempre estas participações acontecem sem a presença de ruídos, pois as reuniões, para alguns serviços, demandam grandes mobilizações de gestores e chefias diretas para a participação de seus membros. Apesar dos obstáculos, são momentos imprescindíveis para condução dos casos e para a avaliação e o monitoramento dos serviços da rede, que para continuar ativa a coordenação do Programa Iluminar precisa mobilizar grandes esforços.

A maior dificuldade do programa tem sido oferecer suporte sistemático aos profissionais envolvidos no cuidado à violência. Este cuidado tem significativa importância devido a todos os sentimentos que podem acompanhar a violência como impotência, medo, angústia, repulsa, entre outros. O cuidador necessita de um espaço de troca, de amparo, de apoio afetivo e técnico competente e presente, porém estruturar um serviço especifico para esta demanda ainda se apresenta como um desafio23.

A ação coletiva que foi proposta pelo programa Iluminar na construção do cuidado à violência buscou promover a conscientização das pessoas através da ressignificação de novos eixos conceituais para uma realidade que antes não era percebida como tal. Na perspectiva construcionista, consideramos que a consciência da realidade não é algo que se dê a alguém, nem uma propriedade das pessoas, mas algo que vai sendo construído junto, por meio de uma ação conjunta.

O contexto do movimento sanitário de Campinas parece ter favorecido ‘o convite’ a esta mudança de foco, pois os conceitos que nortearam as capacitações vincularam o modelo de cuidado à compreensão do indivíduo na sua integralidade e ampliaram aos profissionais espaços de participação e interlocução, remetendo, assim, ao modelo de gestão do cuidado que historicamente vinha sendo proposto24.

A continuidade do Programa Iluminar após sucessivas mudanças de gestão municipal parece indicar que houve uma consolidação das propostas que sobrepõe interesses partidários e se justificam pelo impacto na saúde da população e na sociedade de um modo geral. Após a implantação da rede de cuidados, outros programas e serviços como o Rotas Recriadas e Quebrando o Silencio também voltados para a questão da violência foram implementados e ampliaram os recursos oferecidos à população, legitimando mais intensamente a rede entre os profissionais, a comunidade local e outros municípios.

Importante ressaltar que o Programa Iluminar após contar com o financiamento inicial, na implantação, do Programa de DST/AIDs, passou a administrar a rede com verbas do município, mantendo-se por longo tempo autogerido no sistema financeiro municipal da saúde. O que sugere que no planejamento financeiro da gestão local, pode haver a percepção da relevância das ações propostas para a população em termos de cidadania e saúde e, também, de redução do orçamento, uma vez que o planejamento das ações e a prevenção possibilitam reduzir gastos com as causas da violência no setor saúde.

O Programa Iluminar tem difundido suas práticas através de Visitas Técnicas, que são oferecidas aos municípios ou entidades que desejam conhecer a rede de cuidados, além de oferecer assessoria às cidades no processo de estruturação e implantação da rede de atendimento à violência, auxiliando na reflexão de um modelo local que contemple as diretrizes do Ministério da Saúde. O programa foi reconhecido como uma experiência exitosa de gestão municipal e recebeu através do Programa Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), uma premiação em dinheiro que foi utilizada na compra de computadores para as unidades notificadoras que não tinham o recurso.

O Programa passou a integrar o Plano Nacional de Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher da Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres do governo federal, a Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências do Ministério da Saúde e o Plano Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Ministério da Justiça e Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Na esfera federal, a Área Técnica de Saúde da Mulher e de Vigilância a Saúde, inseriram o Programa Iluminar em suas atividades de capacitação levando a experiência de Campinas como um conhecimento situado construído sobre pressupostos éticos e políticos, aos diversos estados e municípios que ainda estão estruturando suas ações.

Este estudo nos auxiliou na reflexão da necessidade das redes estruturarem suas ações a partir das realidades já existentes, considerando a reorganização dos espaços e instituições, a construção de uma linguagem consonante e as problematizações nos espaços coletivos. Sabemos que os dados notificados ainda não conseguem mapear a totalidade das ocorrências, mas com aqueles disponíveis estão dando visibilidade ao problema e instrumentalizando ações e políticas.

O modelo de trabalho estruturado foi outro importante ponto de reflexão neste estudo, pois ao construir as possibilidades de trabalho nos espaços coletivos, problematizando e considerando as limitações e os alcances dos atores envolvidos, o Programa Iluminar inovou e rompeu com os modelos tradicionais, onde se apresenta uma proposta pré-definida de ação e busca-se ajustar os participantes nesta estrutura. Assim, o modelo propõe uma metodologia problematizadora e inclusiva aos profissionais, para a consolidação de sujeitos ativos num atendimento empoderador.

Esperamos assim contribuir para a reflexão acerca da construção das práticas voltadas ao enfrentamento da violência, ilustrando a necessidade de se estabelecer desde a etapa de estruturação o olhar ampliado, intersetorial e colaborativo, que possibilite parcerias, pactuações, acordos e responsabilizações em todos os momentos do cuidado. As ramificações construídas pela rede, contribuem nos seus múltiplos espaços para desativar a imobilização dos setores e colocam em circulação os novos discursos que dão visibilidade à violência numa perspectiva que é possível incluí-la na agenda da saúde.

REFERÊNCIAS

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