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O Projeto AcolheSUS na Atenção Primária à Saúde do Distrito Federal, Brasil

O Projeto AcolheSUS na Atenção Primária à Saúde do Distrito Federal, Brasil

Autores:

Ana Carolina Tardin Martins,
Ana Patrícia de Paula,
Janaína Rodrigues Cardoso,
Maria Inês Guedes Borges,
Maira Batista Botelho

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.6 Rio de Janeiro jun. 2019 Epub 27-Jun-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018246.08492019

Introdução

A atenção primária à saúde (APS) é amplamente reconhecida como a espinha dorsal dos sistemas de saúde. Starfield1, em 1994, revisita o apresentado em 1992 e ressalta a importância dos quatro pilares da APS: cuidados do primeiro contato, continuidade do cuidado, cuidado integral e coordenação do cuidado. A ausência de barreiras de acesso aos usuários nas unidades de APS está associada à uma APS robusta2.

A Secretaria de Estado de Saúde do DF (SESDF) promoveu mudanças estruturantes no modelo de atenção à saúde mediante publicação da portaria nº 77, de 14 de fevereiro de 2017, pela qual foi estabelecida a nova Política de Atenção Primária à Saúde do Distrito Federal, tendo em vista que a política anterior era restritiva e com oferta de um pacote de serviços de atenção primária insuficiente. Naquele momento de transformação era imprescindível usufruir de dispositivos existentes que possibilitassem exercer uma ausculta qualificada de servidores e usuários para construir coletivamente o processo de mudança.

Os dispositivos identificados como passíveis de catalisar o processo de transformação pertenciam à Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão (PNH) do Ministério da Saúde. A PNH aposta na qualificação das práticas do cuidado na Rede de Atenção à Saúde (RAS) como estratégia para modificar um modelo de atenção e gestão à saúde hospitalocêntrico, para outro modelo que priorize a produção de saúde e fomento à RAS, centrado no cuidado ao usuário3.

A Coordenação Geral da Política Nacional de Humanização (CGPNH) constituiu o Projeto de Qualificação das Práticas de Cuidado denominado Projeto AcolheSUS a partir das portas de entrada do SUS e em reconhecimento aos desafios e às potencialidades que a diretriz Acolhimento possibilita para a mudança desejada pelos usuários. Este propõe a implantação e a implementação da diretriz acolhimento com foco na gestão do cuidado e na garantia do acesso ao usuário com qualidade e resolutividade e definiu quatro eixos, que têm como base orientar o planejamento das ações que irão direcionar investimentos, tanto no âmbito da organização do cuidado e gestão do trabalho, quanto nas articulações institucionais necessárias à sua implementação. Os eixos orientadores para o planejamento das ações do AcolheSUS são: a gestão e organização do cuidado, o acolhimento com classificação e avaliação de risco e vulnerabilidades (ACCR), a ambiência e a qualificação profissional4.

O eixo de Gestão e organização do cuidado conduz à análise crítica e valoração de práticas possibilitando a construção de intervenções à luz da cogestão4.

O eixo Ambiência incentiva a intervenção colegiada nos espaços físicos para transformar a produção do cuidado em saúde e criar novas possibilidades de convivência, pressupondo a elaboração de projetos cogeridos com a participação de usuários, trabalhadores e gestores4.

A Qualificação profissional é o eixo transversal de todo processo, inclui a metodologia ativa de formação-intervenção com abordagem teórico-conceitual, exposição dialogada e atividades de dispersão4.

O Projeto foi disponibilizado para todos os Estados e o Distrito Federal tendo sido selecionados 15 hospitais, duas maternidades, um Centro de Atenção Psicossocial, uma Unidade de Pronto Atendimento e uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

No DF, a estratégia foi realizar o projeto na APS para reduzir as frequentes queixas referentes às barreiras de acesso. O Ministério da Saúde, por meio de consultoria técnica, apoiou ativamente todo o processo de implantação com o objetivo de ressignificar a compreensão do serviço e de suas bases de organização5.

O apoio é um método de intervenção que expressa um modo de fazer em espaços coletivos, onde é exercido um método de fazer gestão no conceito de cogestão6,7. Esses espaços coletivos foram denominados dentro do Projeto AcolheSUS como Grupos Executivos Estaduais e Grupos Executivos Locais, que respectivamente referem-se a coletivos que compõe a gestão do estado e dos serviços de saúde e são os responsáveis pela implementação do projeto.

A operacionalização do projeto nos territórios é realizada por oficinas dentro dos serviços de saúde, com mobilização da cogestão, para promoção do processo de intervenção em ato, tendo como ponto de partida a visita guiada para a construção do diagnóstico situacional. Durante a visita são identificados os problemas, que são dispostos em um painel visual para ressignificação dos processos e avaliação de necessidades de mudança para melhoria da qualidade da atenção e da gestão.

O Projeto AcolheSUS busca a problematização do acesso aos serviços e o cuidado com o usuário, a partir da perspectiva dos profissionais de saúde e serve de gatilho para possíveis processos de mudanças.

A intervenção

Após discussões em reuniões de colegiado da região de Saúde, decidiu-se, pela escolha de uma unidade básica de saúde (UBS) da região central de Brasília, como unidade piloto, para aplicação do Projeto AcolheSUS. A unidade estava em processo de implementação do Converte, modelo instituído por portarias da SES/DF em 2017, o qual alterava o atendimento na atenção primária anteriormente feito por ginecologistas, clínicos gerais e pediatras para o cuidado integral por equipes de Estratégia de Saúde da Família.

Inicialmente, após apresentação da mudança do modelo, a UBS restringiu os atendimentos da unidade apenas a moradores da área de abrangência da unidade mediante comprovação através de documentos como contas de luz ou telefone, por exemplo, causando aumento expressivo do número de reclamações à ouvidoria institucional, assim como transtornos a toda população que antes era atendida na unidade.

O processo de conversão na UBS teve início em julho de 2017, com a definição da área de abrangência e a organização para as mudanças dos processos de trabalho da unidade. Nessa organização estavam incluídos os matriciamentos entre médicos de diversas especialidades lotados na UBS e a capacitação por meio de curso teórico para médicos e enfermeiros.

No final de agosto de 2017, após capacitação dos profissionais médicos e de enfermagem in loco, a unidade instituiu o acolhimento e a classificação de risco para todos os usuários que procurassem a unidade. Esse acolhimento teve como referência o caderno nº 28 do Ministério da Saúde. Como consequência imediata, percebeu-se um aumento no número de consultas e na realização de procedimentos, especialmente os de enfermagem. Além disso, percebeu-se uma ampliação de acesso dos usuários e a diminuição de reclamações recebidas.

Em outubro 2017 foi realizada a primeira oficina nacional do projeto AcolheSUS com o objetivo de instrumentalizar representantes dos estados e DF e das unidades de saúde para a qualificação das práticas de gestão e cuidado, ratificando a obrigatoriedade da existência dos grupos executivos para a implementação do projeto e pactuação das agendas de intervenção.

Logo após a oficina nacional foram realizados encontros com os grupos condutores para conhecer e problematizar o perfil epidemiológico e a rede assistencial dessa região de saúde. Em novembro de 2017, iniciou-se formalmente o projeto AcolheSUS na unidade. O primeiro processo de intervenção foi a visita guiada realizada pelos membros dos grupos executivos, para a elaboração do diagnóstico situacional com análise dos processos internos e externos de trabalho e priorização dos problemas identificados, além da criação do planejamento estratégico.

Metodologia aplicada na UBS

Trata-se de estudo descritivo da implementação do Projeto AcolheSUS, em uma unidade básica de saúde da região central de Brasília, de novembro de 2017 a março de 2018, utilizando métodos participativos para a produção de dados e intervenção, assim como monitoramento e avaliação.

Foi realizado diagnóstico situacional e elaborado planejamento estratégico situacional com suas atividades, atores, objetivos e prazos.

O planejamento estratégico situacional compreende o momento estratégico, que se relaciona à questão da viabilidade e aos obstáculos, e o momento tático-operacional8.

O planejamento situacional se apresenta como cálculo que permite governar em situações de conflito e poder compartilhado, e parte da premissa de que não é possível predizer o futuro, mas sim fazer previsões de possibilidades para projetar ações e ser oportuno e eficaz na ação9.

Diagnóstico situacional da UBS

Durante a visita técnica realizada por representantes do grupo executivo local, foram identificados os seguintes problemas que foram categorizados dentro dos eixos propostos pelo projeto AcolheSUS (ambiência, acolhimento, gestão e organização do cuidado e qualificação profissional):

Falta de organização do fluxo para o atendimento dos usuários da UBS: ausência de servidor para orientar o usuário na chegada à UBS, principalmente no horário das 7 às 8 horas. Ausência de Fluxo definido para o usuário e pouca otimização dos recursos humanos.

Falta de organização para o acolhimento e o atendimento da demanda programada e demanda espontânea: Todas as consultas são agendadas para o mesmo horário, às 8h ou às 13h. Inexistência de processo definido para marcações de retorno.

Acolhimento da demanda espontânea realizado em uma única sala, gerando filas e desrespeitando as prioridades e priorizando a ordem de chegada.

Dificuldade em realizar a gestão da agenda dos trabalhadores de forma a seguir as diretrizes da APS (visita domiciliar, reunião equipe, colegiado de gestão UBS, integralidade cuidado, equidade)

Não realização das visitas domiciliares, justificadas pelo motivo da agenda assistencial cheia e como consequência dificuldade para realização de cadastramento dos usuários mesmo das áreas consideradas vulneráveis.

Dificuldade na realização do cadastro da população da área de abrangência: grande demanda na única sala de acolhimento.

Equipes da odontologia e nutrição não inseridas no processo de mudança para a ESF.

Retaguarda fragilizada identificada quando é necessário o referenciamento para outro nível de atenção, especialmente o serviço hospitalar de emergência.

Planejamento estratégico situacional

Após a identificação dos problemas da unidade, foi elaborado o planejamento estratégico situacional. Para cada problema identificado foram traçados objetivos, planejadas atividades para alcance destes, definido os atores responsáveis e o prazo para execução. (Quadro 1)

Quadro 1 Planejamento estratégico situacional da UBS 2 da Asa Norte. DF, 2018. 

Objetivos Atividades Prazo Responsável
Eixo: Gestão e Organização do Cuidado
Organizar a agenda de trabalho dos profissionais de forma a respeitar as diretrizes da APS Organização da agenda das equipes assegurando visita domiciliar, reunião de equipe, presença diária de médicos e enfermeiros na UBS Nov/2017 Gerência da unidade
Organização do rodízio dos técnicos de enfermagem das equipes na sala de vacina Nov/2017 Gerência da unidade
Organização dos representantes do colegiado gestor composto pelos coordenadores das equipes e representatividade das categorias profissionais da unidade Nov/2017 Gerência da unidade
Inserção da equipe de saúde bucal e nutricionista no novo modelo assistencial Jan/2018 Gerência da unidade e GEL
Apresentar e discutir a carta de serviços da APS com todos os trabalhadores da UBS. Nov/2017 Gerência da unidade
Organização dos pacientes com HAS, DM, os de CD e Pré-natal para controle da equipe Criação de planilhas para controle de consultas e exames de rotina Fev/2018 Gerência da unidade /Coordenadores equipes
Uso dos Cadernos de atenção básica do Ministério da Saúde (CAB MS)para consulta Gravação dos CAB MS em todos os computadores das equipes Nov/2017 Gerência da unidade
Controle de abstenção dos pacientes Organização das abstenções através de anotações nas agendas Fev/2018 Coordenadores das equipes
Eixo: Acolhimento
Resolutividade no atendimento do usuário Organizar as consultas marcadas por horário Dez/2017 Gerência da unidade
Criar sala de acolhimento e pré-atendimento para cada equipe Dez/2017 Gerência da unidade
Reorganização do fluxo de marcação de consultas da atenção especializada Nov/2017 Gerência da unidade
Organização da fila de espera por pré-atendimento e agendamento de consultas Nov/2017 Gerência da unidade
Utilização da classificação de risco do CAB MS no 28 Nov/2017 Gerência da unidade
Rearranjo das áreas das equipes Reorganizar a área de abrangência das equipes Nov/2017 Colegiado da unidade
Eixo: Ambiência
Acolher o usuário que chega a U.BS de forma resolutiva Abertura do guichê da unidade durante todo o horário de funcionamento da unidade Nov/2017 Gerência da unidade
Avaliar a satisfação do usuário Realização de pesquisa de satisfação dos usuários Dez/2017 Gerência da unidade e GEL

Após a execução do planejamento, avaliamos dados disponíveis do período anterior ao início do projeto (abril-setembro de 2017) e iniciamos o monitoramento (outubro/2017 a março/2018) referente ao número de consultas, número de pacientes acolhidos e classificados, número de procedimentos, além do número de cadastros individuais realizados pelas equipes.

Resultados da intervenção

No mês de outubro de 2017, a unidade possuía apenas 135 cadastros individuais feitos pelas equipes. No mês de março de 2018, após a implementação das diretrizes do projeto AcolheSUS, a unidade possuía 3.525 cadastros. Este fato foi uma consequência da criação de um horário específico para a realização de visitas domiciliares e cadastramentos individuais em cada equipe. A prática permitiu a apropriação territorial por parte das equipes, tanto cultural, como epidemiológica e ambientalmente. Além disso, as equipes se mostraram motivadas a cada descoberta, o que favoreceu o andamento do projeto.

O dispositivo acolhimento com classificação de risco dos usuários, que nos meses antecedentes era inexistente, apresentou uma média de 1.099,8 nos meses após, conforme demonstrado no Gráfico 1. Houve um treinamento do protocolo de acolhimento e classificação de risco proposto pelo Ministério da Saúde, os pacientes classificados pela cor verde, ou seja, aqueles que apresentavam afecções agudas porém sem risco iminente de agravamento de condição, poderiam ser atendidos pelo enfermeiro ao longo do dia10. Além disso, tal fato promoveu um maior contato da equipe com sua população adstrita, contribuindo assim para maior criação de vínculo e melhoria no acesso à unidade.

Gráfico 1 Número de pacientes acolhidos e classificados entre os meses de abril a dezembro de 2017, janeiro a março de 2018 na UBS 2 da Asa Norte. DF, 2018. 

Como consequência, a implementação do acolhimento e a classificação de risco, o número de procedimentos e de consultas de enfermagem na unidade apresentaram um aumento de 121,2% e 193,7%, respectivamente, como pode ser visualizado no Gráfico 2. O empoderamento desta equipe, baseado em protocolos pré-estabelecidos, capacitações e matriciamento, permitiu uma maior autonomia do enfermeiro. O enfermeiro tornou-se protagonista nos atendimentos da unidade, especificamente na puericultura, pré-natal e no acompanhamento de pacientes portadores de doenças crônicas, como hipertensão arterial e diabetes mellitus.

Gráfico 2 Número de procedimentos e consultas de enfermagem realizados entre os meses de abril a dezembro de 2017, janeiro a março de 2018 na UBS 2 da Asa Norte. DF, 2018. 

Houve mudança de gestão da unidade em julho de 2017 e a informação recebida à época era que a população da área de abrangência usuária do SUS e frequentadora da unidade era minoritária (dado não consolidado). No mês de outubro de 2017, o percentual de pacientes atendidos na unidade e que morava na área de abrangência era de 71% (930 de 1328) e em março de 2018 alcançou 90,5% (2738 de 3026). É importante ressaltar que essa informação é autodeclarada pelo usuário. Segundo relatos da própria população residente, no antigo modelo, as filas de pacientes oriundos de diversas regiões se formavam nas primeiras horas da manhã, esgotando a capacidade de atendimento da unidade e dificultando assim o acesso.

Discussão

A reorganização do SUS no DF, no início de 2017 foi centrada no fortalecimento da atenção primária para que a APS cumprisse o seu papel de ordenadora do cuidado. Uma das características de uma APS resolutiva é o acesso fácil e em tempo oportuno2.

Considerando os problemas identificados no diagnóstico situacional da UBS da região central de Brasília e revisitando Franco et al.11, que apontava as barreiras de acesso à atenção primária como um grande entrave para que a APS se consolidasse como a ordenadora da rede de atenção à saúde no SUS, identificamos, no início do projeto, razões na APS para a manutenção da hegemonia do modelo hospitalocêntrico na capital do país.

No tocante aos indicadores sociais e de saúde, a UBS estudada pertence a uma Região de Saúde com alto grau de urbanização, além de altos níveis de escolaridade e de renda por grande parte da população residente. Segundo a CODEPLAN12, a Asa Norte possui coeficiente de Gini de 0,437, com uma renda per capita de R$ 5.476,87 e uma renda média mensal familiar de R$ 12.428,50. Com isso, acreditava-se que esta população não era prioritariamente usuária do SUS. Porém, com a mudança nos processos de trabalho na unidade e com a melhoria no acesso, a população adstrita atualmente passou a buscar a unidade básica como referência por serviços à saúde. Isso mostra que o SUS não atende somente as populações de alta vulnerabilidade social.

Além disso, a territorialização é um fator facilitador do acesso dos usuários à atenção básica, o que consiste em um conceito técnico na definição de territórios para distinção de responsabilidades sanitárias13. Essa territorialização somente foi possível com a mudança do modelo assistencial adotado pela unidade, o que permitiu a realização de ações de abordagem familiar, comunitária e de saúde ambiental. Com isso, existe a valorização da cultura e do vínculo afetivo das pessoas com o território pelo serviço de saúde14.

O acolhimento é uma ferramenta pautada nos princípios do SUS para atender a todas as pessoas que procuram os serviços, garantindo a universalidade no acesso, deslocando o eixo centrado no médico para uma equipe multiprofissional, capaz de produzir a escuta qualificada, responsabilização, vínculo e resolubilidade. O acolhimento deve alcançar a dimensão da gestão do processo de trabalho, pois ele só será possível se a gestão for participativa, baseada em princípios democráticos e de interação entre a equipe15. A implementação da diretriz Acolhimento na unidade foi fundamental para que o contato não programado passasse a ocorrer diretamente com a equipe de saúde e demandou uma prática profissional com importante grau de comunicação, interpretação, negociação e responsabilidades compartilhadas, estimulando o vínculo, acalmando as ansiedades e buscando resoluções contextualizadas para os problemas16.

O dispositivo acolhimento com classificação de risco configura-se como uma das intervenções potencialmente decisivas, partindo do pressuposto da eficácia no atendimento. O aumento no uso de tal dispositivo com o auxílio de protocolos preestabelecidos, orienta o atendimento de acordo com o nível de complexidade, e não por ordem de chegada, exercendo, dessa maneira, uma análise e uma ordenação da necessidade, distanciando-se do conceito tradicional de triagem e suas práticas de exclusão, já que todos serão atendidos13. Portanto, pode-se dizer que ao aplicar tais protocolos, contribui-se para que ocorram quebras de barreiras ao acesso do usuário, os quais eram visíveis no antigo modelo assistencial da unidade, na qual existia um número limitado de consultas com sua distribuição entre os usuários por meio de senhas, sem qualquer escuta qualificada, pondo em risco tanto a segurança do paciente quanto a do profissional.

O cadastro individual também é de suma importância para a estratégia saúde da família, sendo, na maioria das vezes, o primeiro contato da população com a sua respectiva equipe e talvez seja o primeiro fator de vinculação à unidade. Por meio dele, é possível reconhecer a prevalência de doenças crônicas, características biológicas e culturais da população. Com isso, as equipes de saúde da família têm as melhores condições para atuar preventivamente sobre as condições crônicas que representam as principais causas de internações evitáveis17,18, por exemplo. Portanto, a inclusão de um horário exclusivo para realização do cadastro individual permitiu o aumento do número e maior conhecimento da área de abrangência da unidade.

Similarmente ao estudo de Tesser e Norman17, os dados do presente relato demonstram que no modelo de APS anterior ao processo de conversão, não havia destaque ao papel do enfermeiro na UBS. Atualmente, a enfermagem possui papel fundamental na atenção primária à saúde, representado pelo cuidado de saúde integral, um dos fundamentos preconizados pelo SUS19. Entretanto, ainda hoje, um dos grandes desafios do enfermeiro consiste na luta pelo reconhecimento e valorização do cuidado de enfermagem na APS do Distrito Federal.

Existe uma real necessidade da efetivação da produção de cuidado pelos enfermeiros. Esse papel protagonista não era observado na UBS do presente estudo, onde a enfermagem desempenhava um reduzido papel no cuidado integral à saúde do usuário. Com a implementação do Projeto AcolheSUS e a mudança do modelo assistencial houve aumento do número de atendimentos e procedimentos realizados pela enfermagem, o mesmo não sendo evidente na realização de atendimentos e procedimentos pelos médicos, que apesar da mudança no público atendido, manteve-se estável nos meses após.

A taxa de encaminhamentos da unidade para outros níveis de atenção foi de 8% em março, mantendo, portanto, uma taxa de resolutividade acima de 85%, conforme preconizado pela modelo atual da APS da SESDF.

Conclusão

O Projeto AcolheSUS, com o objetivo de qualificar o acesso e as práticas de cuidado por meio da implantação/implementação da diretriz acolhimento da PNH nos serviços de saúde, contribuiu com importantes ferramentas metodológicas e apoio matricial para nortear o processo de mudança para o modelo de estratégia de saúde da família em uma unidade básica de saúde. A construção de um modelo lógico-operacional, nos moldes de um planejamento estratégico situacional, pautado por uma gestão participativa tornou-se fundamental para o funcionamento da unidade básica de saúde.

A modelização participativa contribui para a apropriação do plano por todos os integrantes. Porém, existe a necessidade de conhecimento das técnicas de modelização para a construção do planejamento estratégico e durante a problematização ao longo do diagnóstico situacional. Além disso, não existem restrições para a aplicação do mesmo.

A recente mudança de modelo da APS para a estratégia de Saúde da Família, com foco centrado no usuário e na territorialização, corroborada pela gestão participativa e pela implantação das ferramentas de intervenção do projeto AcolheSUS, poderão reverter a longo prazo os danos do antigo modelo, proporcionando o cuidado adequado e seguro, ofertado em tempo oportuno para o usuário do SUS na SES-DF, com aumento da acessibilidade do usuário e da resolutividade da unidade.

Contudo, o presente trabalho mostra que uma gestão local capacitada, aliada a utilização de métodos científicos e por meio de ideias inovadoras, é capaz de mudar a realidade local de unidades básicas de saúde e reduzir as barreiras de acesso à APS.

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