versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.3 São Paulo 2018 Epub 21-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018ao4252
Diversos estudos têm demonstrado diferenças na prevalência de doenças e de fatores de risco na população de lésbicas, gays e bissexuais (LGBT) em relação a heterossexuais, como maior tabagismo,(1–4) uso excessivo de álcool,(1,2,4) obesidade,(1,2,4,5) uso de drogas(3,6–8) e doenças cardiovasculares.(1) Uma possível explicação para estes dados, conforme o Minority Stress Model, é que as minorias sexuais seriam mais suscetíveis a problemas de saúde exatamente por vivenciarem o estresse crônico decorrente da estigmatização social.
A discriminação sofrida pelas minorias sexuais ao buscar atendimento médico já foi objeto de alerta por parte de algumas sociedades médicas, como a American Geriatrics Society. Em 2015, esta associação relatou as seguintes evidências no atendimento à pessoa LGBT: recusa de determinados cuidados médicos, pressupostos erróneos de heterossexualidade, recusa em aceitar determinados acompanhantes escolhidos pelo paciente durante internações, e declarações ofensivas e depreciativas, que podem levar a um atraso ou à evitação na busca de atendimento médico por esses grupos, devido ao receio de sofrerem preconceitos.(9,10)
Uma revisão sistemática recentemente publicada avaliou a relação de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros com o sistema de saúde, diversas particularidades foram apontadas, como falta de treinamento de profissionais de saúde, que têm dificuldade de abordar questões relacionadas à sexualidade e têm a premissa da heteronormatividade; presença de barreiras e práticas preconceituosas institucionalizadas; demandas dessas minorias não atendidas, aumentando o risco de adoecimento mental, suicídio, câncer e maior suscetibilidade a doenças sexualmente transmissíveis; aumento da homofobia internalizada pela percepção da rejeição por profissionais que deveriam tratar e acolher; medo de acessar os serviços, levando a evitação ou atraso no atendimento; ocultamento da orientação sexual; aumento da automedicação ou busca de informações sobre tratamentos em farmácias, revistas, amigos e internet; procura de serviços médicos apenas tardiamente, em casos extremos, ou situações de emergência; vivência de discursos homofóbicos, humilhações, ridicularizações e quebra de confidencialidade.(11)
Além disso, estudos apontaram a relação entre a falta de conhecimento sobre a homossexualidade e atitudes mais negativas ou preconceituosas de médicos, estudantes de Medicina e demais profissionais de saúde, em relação a lésbicas, gays e bissexuais.(12–16)
A ausência de estudos no Brasil que avaliem o conhecimento de médicos em relação à homossexualidade e à bissexualidade pode ser justificada, em parte, pela ausência de questionários específicos que avaliem o conhecimento de aspectos elementares sobre a homossexualidade. Entende-se que a disponibilização de questionários em português pode permitir a avaliação do conhecimento de médicos e a implementação de políticas de atenção à população de homossexuais e bissexuais. Dentre os questionários mais utilizados no mundo, temos o Knowledge about Homosexuality Questionnaire (KHQ), que é um instrumento de conhecimentos gerais a respeito da homossexualidade.(17)
Realizar a adaptação para o Brasil do inventário Knowledge about Homosexuality Questionnaire e avaliar o conhecimento de médicos heterossexuais sobre a homossexualidade.
O método de recrutamento seguiu a técnica de “bola de neve”, baseando-se na divulgação da pesquisa e do convite a médicos por e-mails, redes sociais e sociedades de classe. Foram incluídos médicos atuantes, que exerciam a atividade no Distrito Federal e autodeclarados heterossexuais. O cálculo amostral seguiu a recomendação de dez participantes para cada variável observável.(18,19) Assim, como o inventário original apresenta 20 itens, buscou-se uma amostra de, no mínimo, 200 casos válidos. Os critérios de exclusão não eram informados aos participantes, a fim de se evitar qualquer inibição ou situação de constrangimento, especialmente referente à informação sobre a orientação sexual; nesses casos os médicos só foram excluídos da amostra no processo de análise dos dados.
Inicialmente, 306 médicos de ambos os sexos responderam a pesquisa. Destes, foram excluídos 45 por não completarem a participação, 17 por não trabalharem no Distrito Federal, 13 por não serem heterossexuais e 7 por serem aposentados.
O KHQ aborda aspectos centrais e objetivos da homossexualidade, diferenciando-a de outras condições que são, muitas vezes, equivocadamente associadas a ela. Este instrumento avalia conhecimentos, e não crenças ou juízos de valores, concentrando-se em elementos cognitivos e não afetivos ou comportamentais das respostas.(17)
Na presente pesquisa, optou-se por utilizar a versão do KHQ modificada por Koch, em que dois itens foram retirados (devido aos resultados do processo de validação em sua amostra) e a opção “não sei dizer” foi introduzida, permitindo uma avaliação mais fidedigna do conhecimento. Esta versão modificada consiste em 18 itens do tipo verdadeiro/falso de conhecimentos sobre a homossexualidade e gera um escore de zero a 18, sendo 18 o escore correspondente a 100% de acerto.(20) Desta forma, quanto maior o número de acertos, maior o conhecimento. O número de itens corretos foi convertido em um percentual de acerto no qual nenhum item correspondeu a 0% e 18 itens corretos corresponderam a 100%.
Em estudo de 2003 nos Estados Unidos que utilizou essa versão de Koch modificada (18 itens) em 408 professores teve média de acerto de 9,71 (desvio padrão - DP de 3,49), ou seja, 54% dos itens, com alfa de Cronbach de 0,72.(21) Entre as evidências de validade de constructo, verificou-se que respondentes com maior nível educacional obtiveram os maiores escores, e um professor de sexualidade acertou todos os itens do instrumento.(22)
Este estudo seguiu todos os procedimentos para garantir o conteúdo do instrumento original: tradução do idioma de origem para o idioma-alvo por dois avaliadores; síntese das versões traduzidas; análise da versão final por juízes experts; avaliação semântica pela população alvo; e, por fim, estudo piloto.(19)
A tradução foi realizada por duas pessoas separadamente: um pesquisador experiente na área de adaptação de instrumentos e outra pessoa não vinculada à área acadêmica, ambos fluentes em inglês. A síntese das traduções foi realizada por um grupo de três professores universitários da área de psicometria, com amplo conhecimento em adaptação de instrumentos, que se reuniram para avaliar item a item das duas versões traduzidas, chegando a uma nova versão. A discussão da versão final foi realizada entre os autores e um dos pesquisadores da área de psicometria.
Por fim, a versão final foi apresentada ao público-alvo para a penúltima etapa do processo de adaptação. Nessa etapa, o público-alvo, composto por 22 médicos, foi convidado a avaliar os itens do questionário, apontando a clareza ou não de cada um dos itens, e solicitado a sugerir modificações para os itens que não estavam claros. A escolha dos médicos foi por conveniência, tendo sido enviado convite para vários médicos e selecionados os que aceitaram participar desta etapa. Ao final da etapa de aplicação dos instrumentos a esse grupo de médicos que constituiu o público-alvo, as sugestões foram avaliadas pelos pesquisadores e pelo psicometrista, para a decisão final de quais mudanças seriam acatadas ou não, originando a versão final de ambos os instrumentos. Essa versão final foi, então, aplicada ao grupo de médicos do estudo piloto.
Após as modificações, o instrumento final foi disponibilizado em uma plataforma de coleta de dados on-line para a realização do estudo piloto quantitativo, do qual que participaram 42 médicos. Incluíram-se também itens sobre dados demográficos dos participantes como idade (em anos), sexo (masculino/feminino), religião (católica, evangélica, espírita, nenhuma ou outras), estado civil (solteiro, casado/união estável, separado/divorciado ou viúvo), exercício profissional (médico atuante, residente, aposentado ou não atuante) e orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, nenhuma das anteriores, não sei dizer ou outros). A única modificação entre o estudo piloto e a etapa posterior de coleta dos dados do estudo, foi o acréscimo da pergunta sobre o local de atuação (no Distrito Federal, fora do Distrito Federal, dentro e fora do Distrito Federal) pelo risco de que, por ser um estudo realizado com a técnica bola de neve, o levantamento fosse divulgado para médicos não atuantes no Distrito Federal, ameaçando a caracterização e a consistência da amostra planejada.
A coleta de dados ocorreu de março a setembro de 2016. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição sob o número do parecer 1.339.076, CAAE: 49275115.0.0000.5558, com a dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), uma vez que o TCLE poderia ser um fator inibidor de participação ou permitiria a identificação do participante. A solicitação de um conjunto limitado de dados sociodemográficos ajudou a garantir o anonimato da pesquisa, até mesmo para os próprios autores.
No processo de avaliação, foi realizada a transformação de todos os itens, de modo que respostas erradas ou “não sei dizer” receberam escore zero, e respostas corretas receberam escore 1. Assim, quanto maior a média obtida, maior o número de acertos.
Os dados foram analisados com estatísticas descritivas para obtenção de distribuições de frequência, com uso do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 21. Na sequência, foram realizadas análises inferenciais, por meio do teste de correlação de Spearman, para verificar a existência de relação entre o escore total do KHQ e outras variáveis estudadas, e do teste t de Student, para amostras independentes.
Na etapa de avaliação pelo público-alvo (quarta etapa do processo de adaptação), foram avaliados 22 médicos, que responderam ao instrumento e foram orientados a responder sobre a clareza dos itens. Algumas sugestões que surgiram na avaliação do público-alvo não foram contempladas na versão final do instrumento, por não expressarem ausência de equivalência semântica ou idiomática, mas sim falta de conhecimento dos avaliados sobre aspectos elementares da homossexualidade.
O item 1, que afirmou que “uma criança que se envolve em comportamentos homossexuais se tornará um adulto homossexual”, não estava claro para três entre os 22 avaliados. O item se referia a jogos sexuais na infância entre crianças do mesmo sexo, mas gerou estranheza pelo fato de alguns membros do público-alvo ignorarem a existência desse tipo de prática na infância e, por esta razão, sugeriu-se que o item fosse modificado para “demonstra comportamentos homossexuais”. Tal alteração desconfiguraria o sentido do item e poderia gerar dúvidas sobre aspectos relacionados a manifestação de gênero (meninos com comportamentos femininos, por exemplo). Por esse motivo, a sugestão de mudança não foi acolhida. Mesmo com a manutenção das características semânticas do item, ainda foi questionável o uso do termo “homossexual” nessa fase da vida, na qual as práticas são mais motivadas pela curiosidade e vontade de pertencimento ao grupo, do que pelo desejo afetivo/sexual. Ainda que se considerasse que o termo “jogos sexuais entre crianças do mesmo sexo” tornaria o item mais claro, a mudança resultaria em uma grande modificação da versão original e optou-se por não fazê-la, considerando-se que o termo “comportamento” pertencia à dimensão das práticas e atitudes, e não necessariamente do desejo.
O item 5 na versão anterior à avaliação pelo público-alvo afirmava que “a orientação sexual é estabelecida desde muito cedo”. Cinco médicos ressaltaram que “muito cedo” é impreciso, e a sugestão de mudança foi aceita, sendo o item refeito como: “a orientação sexual é estabelecida desde muito cedo (na adolescência ou até antes)”, estando em concordância com o que afirma a Academia Americana de Pediatria.(23)
O item 12 resultou em significativas mudanças da versão original que era: “Kinsey and many other researchers consider sexual behavior as a continuum from exclusively homosexual to exclusively heterosexual”. Optou-se por adaptá-lo da seguinte forma: “Muitos pesquisadores consideram o comportamento sexual como um continuum que vai desde exclusivamente homossexual até exclusivamente heterossexual”. A modificação do item foi realizada devido ao pesquisador Alfred Kinsey, apesar de sua grande importância no estudo da sexualidade humana nas décadas de 1940 e 1950, não ser amplamente conhecido no Brasil, exceto por profissionais que estudaram a sexualidade humana. Dessa forma, optou-se por essa mudança, que ainda gerou dúvidas em metade da população-alvo (11 médicos) em relação ao termo “continuum”. Optou-se por tentar dar uma maior ideia de gradação, como foi sugerido pela população-alvo, sem desconfigurar o item original, que exigiria certo conhecimento de sexualidade e poderia, por isso, ter gerado dúvida entre os profissionais. A versão final foi: “Muitos pesquisadores consideram o comportamento sexual um continuum que pode variar desde exclusivamente homossexual até exclusivamente heterossexual”. Dessa forma, acrescentando o termo “que pode variar desde”, a palavra “continuum” ficou subentendida como uma ideia de gradação entre dois opostos.
O item 13, “a identidade de gênero de uma pessoa homossexual não coincide com seu sexo biológico”, não foi entendido por sete dos médicos avaliados. Eles sugeriram que fosse explicado o que é “identidade de gênero”, configurando um exemplo claro que a falta de clareza do item poderia ser pelo desconhecimento do assunto por parte da população-alvo, e não por falhas no processo de adaptação.
O item 18 que originalmente era “Recent research has shown that homosexuality may be linked to chromosomal differences” foi adaptado como: “Pesquisas recentes têm mostrado que a homossexualidade pode estar relacionada a diferenças genéticas” por sugestão da pesquisadora, à luz dos conhecimentos atuais que sugeriram a relação da homossexualidade com alterações genéticas ligadas ao cromossomo X.(24) Na avaliação pelo público-alvo, não foram sugeridas alterações nesse item.
Após a fase de adaptação, a versão final do instrumento foi inserida na plataforma on-line para a segunda etapa da pesquisa (avaliação da amostra).
A amostra final foi composta por 224 médicos heterossexuais atuantes no Distrito Federal, com idades variando de 24 a 72 anos (média de 42,2 anos; DP=9,5 anos), sendo 149 mulheres (66,5%) (Tabela 1).
Tabela 1 Características dos participantes do estudo
Variáveis | n (%) | Coeficiente de correlação de Pearson | |
---|---|---|---|
Grupos etários, anos | |||
<34 | 49 (21,9) | 0,0072 | |
35-44 | 91 (40,6) | ||
45-54 | 61 (27,2) | ||
55-64 | 20 (8,9) | ||
65-74 | 3 (1,3) | ||
Sexo | |||
Feminino | 149 (66,5) | -0,0137 | |
Atuação | |||
Médico (staff) | 208 (92,9) | ||
Médico (residente) | 16 (7,1) | ||
Estado civil | -0,0448 | ||
Solteiro | 31 (13,8) | ||
Casado/união estável | 174 (77,7) | ||
Separado/divorciado | 18 (8,0) | ||
Viúvo | 1 (0,4) | ||
Religião | 0,1504* | ||
Católica | 102 (45,5) | ||
Espírita | 41 (18,3) | ||
Evangélica | 27 (12,1) | ||
Nenhuma | 44 (19,6) | ||
Outras | 10 (4,5) |
*p<0,05.
Dos 261 médicos que completaram a pesquisa, 248 (95%) se declararam heterossexuais.
A média de acertos foi de 11,8 (DP de 2,81) dos 18 itens, ou seja, 65,5% de todos os itens. O número de acertos variou de 2 a 18 questões (alfa=0,61). As categorias católicos e evangélicos juntas acertaram significativamente menos itens, com média de 11,43 (DP de 2,77) quando comparadas a outras ou nenhuma religião, com média de acertos de 12,42 (DP de 2,78; t(222)=2,63; p=0,009, d=0,47 – variáveis não ajustadas para idade). Não foram verificadas diferenças nas respostas entre homens e mulheres, t(222) <1, p=ns.
O item com maior percentual de erro foi o 14, que afirmou que, “historicamente, quase todas as culturas têm mostrado ampla intolerância contra os homossexuais, os considerando como doentes ou pecadores”; apenas 16,5% dos entrevistados marcaram o item como falso, configurando resposta correta. O item com maior percentual de acerto foi o item 17, que afirmava que “a bissexualidade pode ser caracterizada por comportamentos sexuais e/ou atração por ambos os sexos”; 96,9% dos avaliados marcaram como verdadeiro, configurando resposta correta (Tabela 2). O item 2, “é possível converter pessoas homossexuais em heterossexuais”, revelou que 19,6% dos médicos não sabiam se é possível e 7,6% achavam que era possível. O item 6, “a homossexualidade é uma doença” foi respondido como “não sei” por 34,4% dos entrevistados, e 4,9% responderam que sim.
Tabela 2 Padrão de resposta aos itens do Knowledge about Homosexuality Questionnaire
Itens | n (%) | |
---|---|---|
1. Uma criança que se envolve em comportamentos homossexuais se tornará um adulto homossexual | ||
Verdadeiro | 9 (4,0) | |
Falso* | 180 (80,4) | |
Não sei | 35 (15,6) | |
2. Há boas chances de se converter pessoas homossexuais em heterossexuais | ||
Verdadeiro | 17 (7,6) | |
Falso* | 163 (72,8) | |
Não sei | 44 (19,6) | |
3. A maioria dos homossexuais deseja ser do sexo oposto | ||
Verdadeiro | 11 (4,9) | |
Falso* | 172 (76,8) | |
Não sei | 41 (18,3) | |
4. Algumas religiões são contra a discriminação legal e social de homens e mulheres homossexuais | ||
Verdadeiro* | 136 (60,7) | |
Falso | 22 (9,8) | |
Não sei | 66 (29,5) | |
5. A orientação sexual é estabelecida desde muito cedo (na adolescência ou até antes) | ||
Verdadeiro* | 166 (74,1) | |
Falso | 23 (10,3) | |
Não sei | 35 (15,6) | |
6. De acordo com a American Psychiatry Association, a homossexualidade é uma doença | ||
Verdadeiro | 11 (4,9) | |
Falso* | 136 (60,7) | |
Não sei | 77 (34,4) | |
7. Homens homossexuais são mais propensos a seduzirem jovens garotos do que homens heterossexuais a seduzir jovens meninas | ||
Verdadeiro | 16 (7,1) | |
Falso* | 150 (67,0) | |
Não sei | 58 (25,9) | |
8. Homens gays são mais propensos a serem vítimas de crimes violentos do que a população em geral | ||
Verdadeiro* | 178 (79,5) | |
Falso | 23 (10,3) | |
Não sei | 23 (10,3) | |
9. A maioria dos homossexuais foi seduzida na adolescência por uma pessoa do mesmo sexo, geralmente muitos anos mais velha | ||
Verdadeiro | 27 (12,1) | |
Falso* | 124 (55,4) | |
Não sei | 73 (32,6) | |
10. Uma pessoa se torna um homossexual (desenvolve orientação homossexual) por escolha própria | ||
Verdadeiro | 72 (32,1) | |
Falso* | 121 (54,0) | |
Não sei | 31 (13,8) | |
11. A homossexualidade não ocorre entre outros animais (que não os seres humanos) | ||
Verdadeiro | 11 (4,9) | |
Falso* | 183 (81,7) | |
Não sei | 30 (13,4) | |
12. Muitos pesquisadores consideram o comportamento sexual um continuum que pode variar desde exclusivamente homossexual até exclusivamente heterossexual | ||
Verdadeiro* | 160 (71,4) | |
Falso | 12 (5,4) | |
Não sei | 52 (23,2) | |
13. A identidade de gênero de uma pessoa homossexual não coincide com o seu sexo biológico | ||
Verdadeiro | 91 (40,6) | |
Falso* | 100 (44,6) | |
Não sei | 33 (14,7) | |
14. Historicamente, quase todas as culturas têm mostrado ampla intolerância contra os homossexuais, os considerando como “doentes” ou “pecadores” | ||
Verdadeiro | 154 (68,8) | |
Falso* | 37 (16,5) | |
Não sei | 33 (14,7) | |
15. Homens heterossexuais tendem a expressar mais atitudes hostis para homossexuais quando comparados com mulheres heterossexuais | ||
Verdadeiro* | 165 (73,7) | |
Falso | 17 (7,6) | |
Não sei | 42 (18,8) | |
16. “Sair do armário” é um termo que os homossexuais utilizam para assumir publicamente sua homossexualidade | ||
Verdadeiro* | 198 (88,4) | |
Falso | 16 (7,1) | |
Não sei | 10 (4,5) | |
17. A bissexualidade pode ser caracterizada por comportamentos sexuais e/ou atração por ambos os sexos | ||
Verdadeiro* | 217 (96,9) | |
Falso | 4 (1,8) | |
Não sei | 3 (1,3) | |
18. Pesquisas recentes têm mostrado que a homossexualidade pode estar relacionada a diferenças genéticas | ||
Verdadeiro* | 69 (30,8) | |
Falso | 35 (15,6) | |
Não sei | 120 (53,6) |
Fonte: Koch CA. Attitudes, Knowledge, and anticipated behaviors of preservice teachers toward individuals with different sexual orientations Washington DC: George Washington University; 2000.(20)
*Resposta correta.
O item 10, que afirmava que “uma pessoa se torna homossexual por escolha própria”, foi considerado verdadeiro por 32,1% dos médicos, e 13,8% não sabiam responder. Essa resposta revelou que quase metade dos médicos desconhecia os vários aspectos biopsicossociais relacionados à homossexualidade e a atribuía simplesmente a uma escolha feita pelo indivíduo.
Diferenças em relação às condições de saúde entre heterossexuais e não heterossexuais são bem descritas na literatura dos Estados Unidos, motivando políticas de cuidados específicos, comitês de treinamento e atualização de médicos de diferentes sociedades. No Brasil, entretanto, não há estudos que avaliem o conhecimento de médicos em relação aos homossexuais, que utilizem inventários específicos para esse fim (e não apenas aspectos gerais sobre sexualidade), constituindo importante lacuna na literatura, cujo conhecimento poderia ser revertido em políticas de saúde e em treinamento de profissionais.
Ainda na etapa de adaptação do instrumento, o processo de avaliação do público-alvo se mostrou complexo, por ser um inventário de conhecimentos, e não de juízo de valor ou relatos de comportamento. Desta forma, o público-alvo frequentemente apontou falta de clareza nos itens, o que, em realidade, representava falta de conhecimento do assunto, mas não falhas no processo de adaptação.
Os dois itens com maior número de acertos no presente estudo foram os mesmos de um estudo com professores de Ensino Médio realizado nos Estados Unidos, mostrando que seu conhecimento não é restrito à área de saúde: o conceito de bissexualidade e a expressão “sair do armário”.(21)
Por outro lado, apesar de a homossexualidade ter deixado de ser considerada doença desde 1973 pela American Psychiatric Association (APA) e, portanto, qualquer técnica de conversão ser inadequada e carente de amparo científico, tal dado era desconhecido por um em cada quatro médicos da amostra na presente pesquisa. Nota-se ainda o desconhecimento por quase 40% dos médicos que a homossexualidade não é considerada doença. Ademais, a American Medical Association condenou “terapias reparativas” que visavam converter homossexuais em heterossexuais.(25)
Chama atenção o desconhecimento, por importante parcela dos médicos, de aspectos que diferenciam a identidade de gênero e a orientação sexual. Um quarto dos médicos desconhece ou acredita erroneamente que “a maioria dos homossexuais deseja ser do sexo oposto” (Item 3). Esse desconhecimento também foi evidenciado no item que afirma que “a identidade de gênero de uma pessoa homossexual não coincide com seu sexo biológico” (Item 13), que apenas 44,6% dos entrevistados acertaram. Isso evidencia que apenas uma minoria detinha o conhecimento de que a homossexualidade é da ordem do desejo sexual (atração afetiva e/ou sexual por pessoas do mesmo sexo), e não uma disforia de gênero (forte desejo de pertencer ao outro gênero), termo mais aceito hoje, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, quinta edição edição (DSM-5).(26) As duas manifestações são distintas e requerem dos profissionais de saúde uma abordagem diferenciada em relação às suas especificidades.
Encontrou-se ainda que um terço dos respondentes acreditava que a homossexualidade ocorre por escolha pessoal. Destaca-se que a associação da homossexualidade à teoria da escolha pessoal (ou livre opção) está ligada a maiores níveis de preconceito e de homofobia.(12)
Pesquisas têm associado piores escores em conhecimento sobre homossexualidade entre homens e entre pessoas mais religiosas.(13,16) Em pesquisa com médicos e estudantes realizada na Sérvia, que avaliou o conhecimento sobre homossexualidade e a atitude dos avaliados em relação aos homossexuais, evidenciou-se que os indivíduos que apresentavam maior conhecimento foram os que mostraram menos atitudes negativas em relação aos homossexuais.(13) No presente estudo não houve diferenças significativas entre homens e mulheres em relação ao conhecimento, o que pode ser um viés da forma de seleção da amostra (bola de neve).
Apesar de estudos sugerirem que o maior conhecimento sobre a homossexualidade pode levar a atitudes mais positivas em relação a minorias sexuais,(13,14) a realidade do ensino em algumas universidades brasileiras parece estar bem distante disso. Um estudo que avaliou estudantes de Medicina de universidades públicas e faculdades privadas na cidade de Teresina (PI) mostrou que a ênfase nas aulas de sexualidade é essencialmente em aspectos orgânicos e patológicos, com pouca atenção aos temas da orientação sexual, homofobia e papéis de gênero.(27)
Outro estudo que avaliou 455 estudantes da Faculdade de Medicina de Botucatu, em São Paulo, evidenciou que apenas 59% dos homens sabiam que a homossexualidade não é uma doença. Entre as mulheres, esse percentual foi de 80%. Em relação ao item “uma lésbica preferiria um homem, se fosse um homem de verdade e usasse a técnica correta”, em torno de 38% de homens e mulheres acreditavam que sim, não souberam responder ou deixaram em branco. Na avaliação por período de curso (primeiro ou segundo ano; terceiro ou quarto ano; e quinto ou sexto ano) não houve diferenças, tanto entre os homens como entre as mulheres, em relação ao conhecimento de que a homossexualidade não é uma doença, sugerindo, apesar das limitações ressaltadas pelos autores por se tratar de um estudo transversal (e não longitudinal), que um estudante possa concluir o curso de Medicina sem tal conhecimento.(28)
Uma das principais limitações da presente pesquisa está relacionada à forma de seleção da amostra em técnica bola de neve, o que poderia torná-la não representativa dos médicos do Distrito Federal. Estudos com amostras randomizadas poderiam minimizar possíveis vieses de seleção. Ademais, estudos longitudinais seriam mais indicados para avaliar os impactos da educação referente à homossexualidade na atitude e na qualidade do atendimento clínico prestado à população de gays, lésbicas e bissexuais. A aplicação do KHQ revelou que, nessa amostra de médicos do Distrito Federal, houve um desconhecimento de vários aspectos relacionados à homossexualidade. É possível que tal desconhecimento esteja relacionado a atitudes mais negativas em relação a minorias sexuais. Intervenções educacionais no momento da formação (graduação) e também destinada aos próprios profissionais podem minimizar essa atitude. Obviamente mais estudos são necessários para se conhecer o perfil dos médicos em relação à população de gays, lésbicas, bissexuais e transgeneros, e para que se possam estudar formas de intervenção educacional, buscando minimizar os problemas.
A adaptação e aplicação do Knowledge about Homosexuality Questionnaire em uma amostra de médicos do Distrito Federal revelou aspectos importantes da falta de conhecimento deles em relação a características elementares da homossexualidade e situações equivocadamente relacionadas a ela. A disponibilização de um questionário abrangente e específico sobre orientações sexuais permitirá estudos sobre o conhecimento de outras amostras (médicos e demais profissionais de saúde) e o surgimento de políticas que ampliem o conhecimento, e as quais podem se reverter em melhorias no atendimento da saúde desta população.