Compartilhar

O que pode o Mais Médicos?

O que pode o Mais Médicos?

Autores:

Eduardo Alves Melo

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.9 Rio de Janeiro set. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015219.18772016

É com muita satisfação que leio o artigo dos queridos companheiros Gastão Wagner de Sousa Campos e Nilton Pereira Júnior, especialmente por estarmos vivendo uma forte crise que nos convoca a defender conquistas sociais como o Sistema Único de Saúde (SUS), sem, contudo, nos furtarmos a refletir sobre as práticas políticas em geral, incluindo as governamentais. Neste caso, a partir de um debate sobre inflexões importantes na configuração da atenção básica (ou atenção primária) brasileira, entendida como espaço estratégico com potencial de (re)ordenamento das redes de atenção (RAS) do SUS.

A primeira observação a fazer é de reconhecimento pelo modo como os autores, utilizando-se de diferentes fontes e referências, construíram uma narrativa abrangente acerca da implementação da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Brasil, da década de 1990 até a atualidade, indicando avanços e limites deste processo até aprofundar-se numa análise crítica sobre o Programa Mais Médicos (PMM). A despeito de grande concordância com os autores, buscarei explorar alguns aspectos passíveis de agregações mais relevantes.

O PMM e os desafios do SUS

Apesar dos inúmeros avanços, sabemos que o SUS apresenta importantes desafios à sua consolidação. Dentre estes, destacam-se o financiamento, a gestão do trabalho e da educação, a constituição de redes regionalizadas de atenção à saúde, a mudança dos modelos de atenção e gestão bem como as bases de sustentação do sistema1. Tais desafios incidem também sobre a atenção básica.

O PMM se caracteriza como uma política inédita que conseguiu enfrentar, parcialmente, o desafio de reordenar a formação e a atuação médicas, tensionando o poder desta corporação com medidas históricas. Este programa viabilizou o provimento de cerca de 18 mil médicos para a atenção básica, para regiões de maior vulnerabilidade social e dificuldade de atração profissional, produzindo um incremento significativo de cobertura e acesso e, possivelmente, um reordenamento do mercado de trabalho. Além disso, redefiniu as bases normativas da graduação e residência médicas. Em que pesem tais efeitos, não seria inesperado constatar a incapacidade do PMM de resolver os problemas estruturais do SUS. Nem caberia a expectativa de que o PMM pudesse superar os desafios deste sistema, mesmo produzindo acumulações expressivas. Poderia, talvez, criar maior pressão ou fôlego novo para enfrentá-los (na atenção primária, na relação com outros pontos das redes e na gestão, por exemplo). Neste aspecto, a interrogação e a conclusão dos autores sobre o potencial redefinidor do PMM sobre o SUS gera estranhamento.

Políticas de Saúde e Atenção Básica

Conforme indicado pelos autores, as últimas décadas têm sido marcadas por um expressivo crescimento da ESF em todas as regiões do país, respondendo pela cobertura de aproximadamente 60% da população. Assim como em outras políticas nacionais, a indução financeira foi o principal dispositivo de governo utilizado para sua implantação.

Apesar dos limites deste processo, cabe observar as evidências de que a ESF está mais acessível aos grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade, ou seja, tem sido um elemento de equidade2. Além disso, mesmo com seu financiamento federal inscrito numa lógica fragmentada, o Piso de Atenção Básica (PAB) e seus componentes, diferentemente da maioria das ações e serviços financiados com recursos da média e alta complexidade (MAC), superou a lógica do financiamento baseado na produção de procedimentos.

De todo modo, ganharam centralidade, no processo de revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2011, três grandes questões: a necessidade de qualificar e tornar mais real a cobertura formal, de incrementar o financiamento e de enfrentar a dificuldade municipal na contratação de médicos, sob pena inclusive de haver retrocessos na cobertura alcançada até então. Os dois primeiros pontos entraram de modo marcante na agenda do Ministério da Saúde (MS) naquele ano, tendo como importantes marcas o Requalifica UBS (programa que inclui reformas, ampliações, construções, informatização e teles-saúde) e o Programa de Melhoria de Acesso e de Qualidade (PMAQ), além de outras mudanças na PNAB (viabilizando, por exemplo, o crescimento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família). O Requalifica UBS e o PMAQ responderam em grande parte pelo aumento do financiamento federal da atenção básica nos anos recentes3, contemplando um número de municípios, equipes e unidades maior que o PMM (criado dois anos depois), mas sem a mesma repercussão pública deste último.

Pela relevância destes dois programas, que precederam o PMM em dois anos e que, no embate com a categoria médica e na mídia, compuseram o argumento técnico-político de que o PMM não era uma política de provimento isolada, chama a atenção o fato de os autores não os terem considerado na análise (embora tenham citado alguns dos seus dados de avaliação). Por exemplo, em que medida a perspectiva do gerencialismo estaria presente no PMAQ? Quais os efeitos locais deste programa diante do seu objetivo de incentivar a melhoria do acesso e da qualidade? Como o PMAQ e o Requalifica UBS se relacionam com o PMM?

Considerados em conjunto, estes três programas evidenciam um grau diferente de priorização da atenção básica na agenda governamental, além de terem movimentado diferentes atores (em especial gestores, equipes de saúde e universidades).

Alguns desafios do PMM como componente estratégico da atenção básica no SUS

O PMM foi criado em 2013, no terceiro ano do governo Dilma, num cenário de grandes manifestações urbanas no Brasil. Alguns dos seus principais efeitos até o momento foram o aumento da permanência dos médicos nas UBS e o crescimento da ESF, indicando melhorias significativas de acesso e cuidado na atenção primária. Talvez possamos falar também de uma reconstrução do sentido social da prática médica na atenção básica em curso, representada pelo contraste frequentemente mencionado entre a postura dos médicos brasileiros e dos cubanos em particular. Ademais, deu destaque e criou uma importante janela de oportunidades para a medicina de família e comunidade, além prever a rede básica como um espaço central de formação em larga escala, na graduação e residência médicas.

Não obstante, as carreiras profissionais seguem sendo uma importante lacuna, inclusive como forma de fixação dos futuros médicos formados. Além disso, considerando a formação e a prática dos médicos (inclusive cubanos), talvez tenhamos que interrogar em que medida a biomedicina e a medicalização4 estão sendo enfrentadas com o PMM, indagando se as pessoas, com seus sofrimentos, demandas e potências de vida, têm sido mais centrais, nas práticas profissionais, do que os riscos, doenças e prescrições normativas. Condições como saúde mental, uso de álcool e outras drogas, adesão a tratamentos, por exemplo, poderiam funcionar como analisadores5 com potencial de dar visibilidade a esta questão.

A atenção básica não se constrói apenas por meio da gestão formal e de importantes ações macro, na medida em que o processo de trabalho em saúde tem relativo grau de autonomia, configurando-se também como espaço de coprodução de realidades num plano micropolítico6,7. E o trabalho cotidiano numa UBS é prenhe de desafios. Neste sentido, reforçando o argumento dos autores, a supervisão do PMM apresenta limites de ter foco no médico e não na equipe. O PMM logrou envolver as universidades como instituições supervisoras responsáveis por este processo, o que o fortalece. Todavia, a articulação entre supervisão do PMM e as ações de apoio voltadas à gestão e às equipes de saúde é insuficiente. Considerada a capilaridade que os médicos supervisores têm nas UBS do país, a supervisão poderia ser oportunidade de apoio intensivo aos processos locais de trabalho das equipes, à gestão do cuidado. A supervisão do PMM ganharia muito se fosse repensada a partir das noções de apoio institucional, educação permanente, apoio matricial e cooperação lateral.

Por fim, ao pensar na sustentabilidade do PMM, há que se considerar diferentes dimensões normativo-legais, políticas, temporais, financeiras, simbólicas, subjetivas. Apesar dos limites deste programa, os significativos avanços produzidos, os desafios de sua sustentabilidade e o papel estratégico que representa requerem uma atitude de defesa do PMM (e de outros componentes da atenção básica) sincrônica com o enfrentamento dos entraves e ameaças ao SUS, nos planos macro e micro.

REFERÊNCIAS

1. Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira: avanços, limites e perspectivas. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 91–122.
2. Malta DC, Santos MAS, Stopa SR, Vieira JEB, Melo EA, Reis AAC. A Cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Cien Saude Colet 2016; 21(2):327–338.
3. Pinto HA, Sousa ANA, Ferla AA. O Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: várias faces de uma política inovadora. Saúde Debate 2014; 38(n. esp.):358–372.
4. Camargo Júnior KR. Das necessidades de saúde à demanda socialmente construída. In: Pinheiro R Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: Cepesc; 2005. p. 91–101.
5. Baremblit G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari; 2002.
6. Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 71–112.
7. Campos GWS. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Cecílio LCO, organizador. Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 29–87.