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“O silêncio dos inocentes”. Os paradoxos do assistencialismo e os mártires do Mediterrâneo

“O silêncio dos inocentes”. Os paradoxos do assistencialismo e os mártires do Mediterrâneo

Autores:

Chiara Pussetti

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.21 no.61 Botucatu abr./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0625

RESUMEN

En los últimos años, la gestión de inmigrantes y refugiados pasó a ser uno de los principales desafíos sociales. Por medio de la presentación de recientes casos internacionales y de mi investigación en el ámbito de la salud mental de inmigrantes y refugiados en Portugal, reconsideraré no solo las consecuencias trágicas del endurecimiento de las políticas migratorias y del fortalecimiento de la frontera meridional de Europa, sino también criticaré la patologización de la experiencia migratoria en el léxico del trauma y su mediatización. El objetivo final de esta reflexión no será solo la desnaturalización de los conceptos que medicalizan el sufrimiento social sino también la repolitización de sus víctimas, reconociéndolas como sujetos activos, capaces de usar el léxico clínico de forma estratégica por la obtención de derechos civiles.

Palabras-clave: Fronteras; Política social; Bio-legitimidad; Trauma; Mediatización

O altar da cidadania e as vidas desperdiçadas

A 18 de Abril de 2016, um cargueiro, partido de Tobruk, na Líbia, em direção à Itália, afunda-se no Mediterrâneo: os quarenta sobreviventes – originários da Somália, do Sudão, da Etiópia e do Egito – confirmam que mais de quinhentas pessoas desapareceram no mar. Exatamente um ano antes – a 18 de Abril de 2015 –, nas proximidades do Canal de Sicília, o Mediterrâneo engolia os corpos de oitocentos náufragos, na que foi uma das maiores tragédias da história recente da imigração. Este caso, entre os muitos similares subsequentes, despertou reações severas pela decisão da magistratura italiana de não recuperar os corpos soçobrados no mar. “Os corpos já não servem à investigação”, afirmou publicamente o procurador de Catania, Giovanni Salvi, chefe da investigação. “Os custos da operação são muito altos, não temos tempo para ações de recuperação nem enterro de cadáveres. O Mediterrâneo servirá como cemitério”.

O Mediterrâneo é hoje túmulo de milhares de corpos sem nome, genericamente designados de “refugiados” ou ainda “clandestinos”, a representar um continente em movimento, independentemente do real lugar de origem. Corpos esquecidos no fundo do mar, no amordaçar das consciências. Nos últimos seis anos, mais de quarenta mil pessoas perderam a vida tentando chegar às costas europeias: destas, mais de metade foram deixadas no fundo do mar. São os “boat people”, que perseguem uma esperança de vida melhor fora dos seus países. São as vítimas da fronteira, objeto de múltiplos interesses num teatro de diversos atores. Uma fronteira cujas muralhas se dissolvem em água, tornando vãs as tentativas de bloquear o movimento. O Mediterrâneo, que condensa, no seu significado etimológico, a ideia de mediação e de contato, é hoje uma fronteira de água, carne e política, assim como de percursos migratórios inéditos, traçados pelo desespero das condições dos países de origem e pela violência da Fortaleza Europa. A fronteira contemporânea não tem, porém, como finalidade, a interrupção do trânsito, mas, sim, a sua seleção.

O Acordo de Schengen – assinado em 2 de outubro de 1997 por um total de trinta países – teve como consequência, por um lado, uma maior coesão interna, pelo outro, o fortalecimento da segurança da fronteira externa. Os “dispositivos” de fronteira – o legislativo, o administrativo e o securitário – continuam a multiplicar-se. Desde a ereção de muros, redes e entraves físicos até as barreiras da burocracia, da discriminação e da exclusão social, todo o aparato que defende a Fortaleza Europa fala dos “outros” – que fogem de pobreza e guerras à procura de um futuro melhor – como de um risco do qual precisamos de nos defender.

A fronteira meridional da Europa é, atualmente, o ponto de maior investimento em patrulhamento de divisões marítimas e terrestres. Segundo dados recentes da Frontex – a agência europeia para a proteção e a militarização das fronteiras externas da UE –, os desembarques nas costas italianas em 2014 aumentaram 823% em relação a 2013. Em 2015, os números duplicaram; em 2016 triplicaram. A União Europeia (UE) considera esta pressão ameaçadora e multiplica os mecanismos de policiamento e intervenção no Mediterrâneo. O fortalecimento tanto da securitização da fronteira como da indústria da ajuda humanitária às costas do Mediterrâneo revela já os principais paradoxos das políticas contemporâneas da imigração, que já discuti em outros trabalhos1: inclusão e exclusão, controle e assistencialismo.

Sempre mais objetos de políticas securitárias e de intervenções caridosas e sempre menos sujeitos políticos, os harragas – os que ‘queimam as fronteiras’ – são hoje os protagonistas do marketing internacional do sofrimento. A imprensa descreve em pormenor os corpos mortos dos náufragos, páginas e páginas de detalhes escabrosos oferecidos ao voyeurismo voraz do público. Ninguém se quer lembrar da história recente da Eritreia, da Líbia, da Síria, do Sudão, da Somália, da Argélia ou da Etiópia: ninguém reconhece responsabilidades face às diásporas da contemporaneidade.

Quando a história é esquecida, a biografia e a identidade individual são negadas, o que resta é o corpo. Corpos sem nome, sem voz, sem passado e sem futuro: corpos que, como mostram os casos apresentados, podemos esquecer no fundo do mar, sem uma sepultura digna, onde alguém os possa chorar.

Os corpos dos imigrantes foram objeto principal dos projetos de pesquisa que desenvolvi nos últimos dez anos na área da antropologia médica. Nestes trabalhos, analisando as políticas do assistencialismo e a patologização das diferenças das quais os imigrantes são portadores, empreguei as ferramentas metodológicas clássicas da antropologia: trabalho de campo; recolha de narrativas, entrevistas e histórias de vida segundo o método da person-centered ethnography; e as metodologias multissensoriais da ethnography-based art, com o objetivo de envolver os sujeitos etnográficos em práticas artísticas reflexivas. Nestes anos de pesquisa, em diferentes situações, reparei que a atenção dos profissionais dos serviços sociais e dos centros de apoio à integração era centrada na exibição das feridas da imigração: nas políticas de acolhimento, a biologia impõe-se como recurso inédito de legitimação e reivindicação de direitos.

Esta redução dos imigrantes a corpos, a ‘vida nua’ nas palavras de Giorgio Agamben2, foi a inspiração da instalação artística Shrines of Citizenship que realizei, juntamente com o coletivo EBANO, em 2013. A instalação induzia a uma reflexão sobre a concomitância da hiper-representação midiática com a despersonificação das vítimas da Fortaleza Europa (Imagens abaixo).

Vitor Barros. Shrines of Citizenhip, 2013. Instalação etnográfico-artística do Coletivo EBANO na exposição Ethnographic Terminalia, 2013: Exhibition as Residency-Art, Anthropology, Collaboration. Arts Incubator in Washington Park. Chicago, IL. Arlington, VA: Society for Visual Anthropology. 

Baseada em pesquisa etnográfica sobre percursos de imigração em direção à Europa3 e sobre serviços psiquiátricos para imigrantes e requerentes de asilo4, esta instalação multimídia – erigindo um altar para os mártires da fronteira – convidava o público a refletir sobre as consequências do endurecimento das políticas migratórias europeias. A necessidade de ir além da pesquisa para denunciar os crimes de fronteira, surgiu como reação a uma outra tragédia do Mediterrâneo, ao largo da costa da ilha italiana de Lampedusa, a 3 de outubro de 2013. Este naufrágio contou com mais de quatrocentas vítimas, sobretudo eritreus e somalis. A fila interminável de cadáveres alinhados na praia tornou-se uma imagem viral, gerando comoção coletiva. O Primeiro Ministro Italiano Enrico Letta decidiu honrar as vítimas com pomposos funerais de Estado e concedeu, aos defuntos, a glória da cidadania italiana honorária, segundo o ius soli post mortem. Os sobreviventes tiveram, porém, outro destino: foram recolhidos em campos de acolhimento, e, logo depois, acusados de imigração ilegal, crime que pode ser punido pelo estado italiano com a detenção de até cinco anos ou com uma multa de até 10 mil euros, seguida da expulsão imediata do país. Os que sobreviveram a esta terrível odisseia ficaram fechados nos campos, segregados em asilos, limbos entre prisão e hospital nos confins do estado-nação, à espera de serem expulsos do país. A lei italiana concedeu direitos aos corpos, mas não aos sujeitos destes corpos. A extrema condição de vida nua, a morte, foi, neste caso paradoxal, caraterística indispensável para a obtenção dos direitos de cidadania. É neste sentido que o filósofo italiano Roberto Esposito falou de tanatopolíticas5, isto é, a adoção de medidas que dessubjetivam e suprimem formas de vida tomadas como dispensáveis, indivíduos indesejáveis, cujas “vidas desperdiçadas”6 constituem aquela humanidade em excesso da qual precisamos de nos defender.

O sofrimento social como patologia

“... e Ulisses passava os dias sentado nas rochas na orla do mar,

consumindo-se a força do lamento, suspiros e penas,

fixando seus olhos no mar estéril, chorando incansavelmente...”

(Homero, Odisseia, Canto V)

Se, desde sempre, os homens migram, fogem, procuram refúgio, é só recentemente que estas experiências podem ser reconduzidas a um campo semântico que compreende tanto o refugiado, o expatriado, o exilado, o requerente de asilo como o imigrante laboral. Os protagonistas das diásporas contemporâneas não constituem um fenômeno exógeno e invasivo em relação aos estados-nação, mas, pelo contrário, se constituem como seu produto implícito e endógeno, fruto do paradigma nacional da definição de direitos políticos e civis. Indivíduos suspensos entre fronteiras, a fugir do passado e sem futuro, bloqueados num presente de liminaridade, duplamente ausentes7 e, portanto, duplamente culpados. Neste limbo, deparam-se com a força das fronteiras, com a densidade das nações, mas, também, com a indústria internacional da assistência clínica e do apoio humanitário.

Em outros trabalhos8, analisei os programas de apoio destinados a imigrantes e requerentes de asilo, tentando evidenciar a tensão implícita entre segurança e assistência. Por um lado, existe uma representação que relaciona o imigrante à insegurança: é o ‘clandestino’, o ‘ilegal’, o ‘parasita’, bode expiatório de qualquer problema social. Pelo outro lado, os imigrantes são concebidos como pessoas em dificuldade: sujeitos deslocados9, órfãos da sua cultura, numa condição de des-identidade ou de manque à être10, psicologicamente vulneráveis, como se a perda do lugar coincidisse com a perda da identidade e do equilíbrio mental. O psiquiatra e professor catalão Joseba Achotegui, em 2002, criou uma nova categoria diagnóstica para definir o trauma migratório: a Síndrome “de Ulisses” (estresse múltiplo e crónico ligado à migração), patologia desencadeada pela perda da família, dos amigos, da cultura de origem, da casa, da posição social e da segurança física11. O referido distúrbio, que, segundo Achotegui, afeta hoje milhões de imigrantes em todo o mundo, inclui sintomas do foro atípico depressivo, ansioso, somático e dissociativo. Além disso, a imigração pode desencadear outras psicopatologias latentes: é muito comum, afirma a literatura12, este distúrbio estar associado a psicoses, delírios paranoicos, alucinações, esquizofrenia e estresse pós-traumático, especialmente quando a migração coincida com ilegalidade e deslocamentos forçados. Quadro clínico que desperta, hoje, sérias preocupações – em razão das condições severas das odisseias da contemporaneidade, feitas de guerras, exílios ou diásporas, viagens em condições extremas e acolhimentos em ambientes, na maior parte das vezes, hostis –, a Síndrome de Ulisses tornou-se o mal do imigrante do século XXI, afetando, em particular, os que partiram subitamente por uma questão de sobrevivência. A recente pesquisa da Dra. Maria José Rebelo do Serviço Jesuíta aos Refugiados em Portugal – serviço que atua desde 1992 e que, desde 2007, dispõe de um gabinete de consulta psicológica para imigrantes e refugiados – confirma que 78% dos imigrantes atendidos nestes anos apresenta sintomas de depressão e ansiedade identificáveis com a Síndrome de Ulisses, e que, só em Portugal, já foram diagnosticados milhares de casos13.

Esta categoria diagnóstica apareceu em concomitância com o endurecimento das políticas migratórias, e a patologia que ela define tornou-se, nos últimos anos, uma emergência de saúde pública14. Podemos considerar a Síndrome de Ulisses como um claro exemplo de patologização – sob a forma de uma perturbação psíquica – da experiência migratória. Em primeiro lugar, porque traduz conflitos sociais no léxico da psicopatologia, desviando a atenção do contexto político e económico mais amplo, para se concentrar no indivíduo como corpo despolitizado e naturalizado. Em segundo lugar, porque homogeneíza e reifica a experiência migratória, reduzindo-a ao perímetro restrito de uma definição nosológica, criando, assim, uma imagem estereotipada do sujeito imigrante como paciente psiquiátrico, cujos problemas podem ser monitorizados e resolvidos farmacologicamente. Em terceiro lugar, porque não considera que as próprias políticas migratórias podem contribuir ao aumento do risco de patologia: as constrições políticas, sociais, burocráticas e económicas que bloqueiam os imigrantes às margens da sociedade de acolhimento são completamente esquecidas.

Esta leitura patologizante do processo migratório está a impor-se como hegemónica: estudos europeus mostram que os imigrantes são considerados mais vulneráveis às perturbações mentais comparativamente à população autóctone, justamente por causa da ‘crise’ identitária, no seu significado etimológico de fratura, separação, mudança. Fala-se, então, de “mestiçagem impossível”15 como causa geradora de patologias psíquicas e da “laceração psíquica insanável”16 de quem vive suspenso entre ilusões e sofrimento. O imigrante é alguém sem colocação, alienado por definição17: a instabilidade da sua vida é interpretada como uma anomalia e correlacionada com uma potencial psicopatologia. É, portanto, um indivíduo frágil, deslocado, predisposto a distúrbios mentais, como as noções clínicas de Maladie du souvenir ou ‘psicose do imigrante’; ou, ainda, a etimologia das categorias diagnósticas de Heimweh, a doença (weh) da falta do seu lar (heim)18, de ‘Nostalgia’ a dor (algos), ligada à vontade do regresso (nostos)19, de aliéné migrateur20, de voyageurs pathologiques ou de voyage pathogène21, sintetizam muito claramente.

A análise crítica das dinâmicas de patologização da experiência dos refugiados, que, na exibição do trauma, encontram a exceção à regra do crime de imigração ilegal, permite desvelar os paradoxos de uma linguagem política securitária que se reveste de humanitarismo. O médico e antropólogo Allan Young22 reconstruiu a genealogia do conceito de desordem de estresse pós-traumático (PTSD), mostrando como a imposição de um modelo médico ao sofrimento ligado à guerra favoreceu a emergência de uma verdadeira indústria do trauma. Poucos anos depois, o psiquiatra Derek Summerfield23 publicou um artigo polémico, sobre a invenção da síndrome de desordem pós-traumática, desvelando interesses políticos e económicos à volta da definição diagnóstica do sofrimento ligado às memorias dos conflitos armados. Em 2009, Didier Fassin e Richard Rechtman enfrentaram um desafio análogo, examinando a construção histórica e os empregos políticos do conceito de trauma, acompanhando as etapas da criação de uma ampla indústria humanitária e clínica que prospera a volta das suas vítimas24. Que se fale de catástrofes naturais, guerras, genocídios ou ataques terroristas, o conceito de trauma – tanto na sua valência clínica como simbólica – reduz, no singular, a pluralidade das experiências individuais. Sem negarem a realidade do sofrimento dos que sobrevivem a situações extremas, os dois autores analisaram a emergência de uma nova linguagem definidora da dor, capaz de se impor tanto no ambiente médico como no senso comum.

A antropóloga Liisa Malkki, em 1995, no seu trabalho sobre exilados Hutu na Tanzânia, observou que os refugiados são frequentemente representados como “sujeitos frágeis psicologicamente ou até como mentalmente perturbados”25. Vanessa Pupavac, poucos anos depois, reforçou que estamos na era da governança terapêutica das fronteiras e da patologização de quem as tenta ultrapassar ilegalmente26. Nos relatórios da OMS, os imigrantes e os refugiados são usualmente definidos como “pessoas traumatizadas, psicologicamente feridas ou indelevelmente mutiladas, almas marcadas pelas cicatrizes da migração, devastadas pela dor”27. As intervenções humanitárias nas fronteiras compreendem sempre programas psicossociais e farmacológicos de prevenção das perturbações mentais derivadas do choque migratório. Até os imigrantes que evidenciam notável resiliência requerem tratamentos preventivos para evitar espirais disfuncionais de negação de um trauma escondido ou invisível: o equilíbrio mental desta população é sempre e só aparente28. Diversos autores defendem que o trauma é “hoje uma experiência emocional universal”29, que é “a patologia que define a situação contemporânea”30, ao ponto que a sociedade ocidental é definida como “cultura pós-traumática”31 e os refugiados como “pessoas doentes”32: as políticas públicas, animadas por este novo “ethos terapêutico”33, suportam uma indústria do apoio psicológico que considera questões sociais como patologias individuais de forma completamente apolítica. Prático conceito prêt-à-porter, o trauma eclipsa a história – e as suas responsabilidades – em nome de outras verdades (que sejam as do inconsciente ou das leis da neuropsicologia), velando o escândalo político com a linguagem neutral da ciência. O trabalho de campo mostra, porém, que narrar a experiência migratória na linguagem indubitável do sintoma psicopatológico, da cicatriz e da ferida pode ser a única forma de obter apoios e direitos. A patologização pode, portanto, se tornar um recurso.

Políticas, práticas e narrativas imagéticas do trauma

Os imaginários sobre as experiências traumáticas das vítimas de tortura dominam não só a literatura especializada, mas, também, a linguagem comum. Escrevendo sobre as experiências de refugiados e requerentes de asilo em França, Fassin e d’Halluin34 afirmam que só os que podem demonstrar serem traumatizados conseguem o direito de asilo. O acesso ao asilo político depende da demonstração do estado de ‘vítima’ por meio de uma reevocação performativa das memórias da violência e da tortura: uma condição já definida, por outros autores, como “cidadania humanitária”35.

O trabalho que desenvolvi durante quatro anos na Consulta de Psiquiatria Transcultural do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda em Lisboa evidencia que, não só no caso emblemático dos refugiados, mas, para qualquer imigrante ilegal, o reconhecimento de uma patologia pode constituir o único expediente para a obtenção dos direitos políticos. Sendo as patologias do foro psiquiátrico não detectáveis por exames de laboratório, a obtenção de um certificado médico que ateste uma doença mental prolongada ou crónica que obste ao retorno ao país de origem torna-se uma estratégia privilegiada para a obtenção da autorização de residência. Em muitas situações clínicas observadas durante o meu trabalho de campo, o diagnóstico psiquiátrico era considerado útil e desejável pelos próprios pacientes imigrantes, quando não abertamente solicitado como forma de permanecer no país de acolhimento. Durante a pesquisa, acompanhei as atividades de um grupo de refugiados que ensinava imigrantes e requerentes de asilo político a teatralizarem o sofrimento, a exibirem comportamentos patológicos e provas do trauma, e a construírem narrativas, testemunhos e evidências capazes de contornarem as suspeitas. A observação das ações (per)formativas deste grupo informal não só me permitiu desnaturalizar os conceitos que medicalizam o sofrimento, mas, especialmente, repoliticizar as suas vitimas, enquanto sujeitos ativos, capazes de utilizar de forma estratégica a linguagem do trauma e da patologia.

Os sem-Estado sabem que não basta evocar pobreza ou instabilidade política para aceder aos direitos outrora negados: devem mostrar as feridas da violência e das violações sofridas na memória e no corpo. Devem aprender a linguagem clínica do sofrimento; devem tornar-se ‘pacientes’, utilizando a biomedicina como um dispositivo de cidadania. É somente a partir de corpos doentes que os indivíduos às margens do sistema podem aceder aos direitos que costumamos imputar ao centro. O direito ao acolhimento deriva de uma decisão fundamentalmente clínica e, portanto, apolítica. Como defende Didier Fassin em relação ao caso francês dos sans-papiers36, o corpo impõe a sua legitimidade quando todos os outros terrenos são postos em discussão, permitindo uma passagem do político ao humanitário. Esta separação entre o político e o humanitário que caracteriza a contemporaneidade é, segundo Agamben, “a fase extrema do descolamento entre direitos do homem e direitos do cidadão”37. O sofrimento, os abusos, as cicatrizes, até a própria morte já não devem ser escondidos, mas, sim, exibidos e até teatralizados para legitimar o pedido de asilo. O corpo torna-se, assim, o lugar de uma dupla inscrição: das feridas físicas da opressão, da desigualdade e da perseguição por um lado, e do olhar clínico à procura de verdades objetivas, pelo outro. Surge nesta lógica um novo pacto social entre as ‘vítimas’ e os especialistas que definem e reconhecem clinicamente o sofrimento. Este pacto constitui, nas palavras de Isabelle Astier, um dispositivo que favorece uma vasta empresa de exploração da intimidade das pessoas38: o destinatário deve expor publicamente a sua infelicidade para corroborar as provas e receber ajuda.

A indústria humanitária encontra a sua força num campo político legitimado pela semiótica da imagem e a retórica da compaixão, que apela aos sentimentos dos que podem decidir quem pode ou não ficar na Fortaleza Europa. Para Luc Boltanski, a imagética realista da dor exerce um fascínio intenso e perverso no público e cria respostas empáticas, colmatando distâncias – geográficas, económicas e culturais – irredutíveis entre o espectador e o malheureux. A fotografia, como forma de capturar um evento na imediação do acontecimento, foi, durante muito tempo, considerada um dos mais poderosos instrumentos de exposição objetiva e científica da condição humana39. É na suposta natureza técnica e mecânica da reprodução – em comparação a outras técnicas de representação, como a pintura, consideradas interpretações subjetivas do autor – que reside a ambição da fotografia de representar o mundo de forma verídica. A película aparentemente registra, de forma objetiva e fiel à realidade, os seus objetos, duplica e reproduz o instante ao infinito, consentindo a apropriação e a conservação de ‘dados’ visuais documentais. Nas palavras de Sontag40, a imagem fotográfica é, geralmente, considerada não como um ponto de vista sobre o mundo, mas como uma miniatura de realidade cristalizada, sem considerar a ação do autor que produz a imagem, as suas prospetivas, escolhas de enquadramento e manipulações na passagem entre negativo e impressão.

O discurso fotográfico como forma de construção de realidade foi objeto de pesquisa para vários teóricos das comunicações visuais, entre os quais: Roland Barthes, François Soulages, Vilém Flusser, Susan Sontag, Jacques Aumont, Lúcia Santaella e Boris Kossoy. Sontag, no seu último livro, refletiu sobre a representação televisiva e fotojornalística da “dor dos Outros”, analisando as narrativas imagéticas contemporâneas do sofrimento. As calamidades, as guerras, os corpos mortificados pelas feridas da história são submetidos a processos de midiatização e híper-visibilidade. É a representação vívida da violência e das suas vítimas que impulsiona o espectador a se tornar ator, isto é, a tentar se aproximar e agir na vida do infeliz distante, criando uma relação – complexa e ambígua – entre piedade, curiosidade e indiferença. O excesso de imagens do sofrimento dos outros, afirma Susan Moeller, no seu volume Compassion Fatigue41, causa de facto uma espécie de anestesia geral. A impossibilidade de tolerar o confronto contínuo com a dor dos outros está na base da produção social da indiferença. Já quase não reagimos face a estes corpos – sempre idênticos e que não têm o mesmo valor do que os nossos – que fazem sangrar as nossas fronteiras. A imagem do artista inglês Banksy (The European Union) alude ironicamente a esta despersonificação, despolitização e dehistoricização do sofrimento dos outros: cadáveres anônimos compõem o símbolo da bandeira europeia, utopia de liberdade pela qual muitos arriscam a vida. Paradoxalmente, também, a fotografia de Aylan, a criança curda afogada numa praia de Bodrum na Turquia, ícone descontextualizado da tragédia de todos os refugiados42, reproduz a mesma lógica: é ele que nos faz chorar, mas, no fundo, qualquer outra criança serviria para o mesmo fim. Para qualquer um dos infelizes representados, temos uma multidão de substitutos idênticos, com o mesmo valor de puras vítimas43. As vítimas parecem-se todas – dos genocídios às deportações de massa, das populações obrigadas a exílios forçados aos que fogem da carestia e da fome. Não é um caso em que as representações mais sensacionalistas dos conflitos armados e dos corpos feridos têm como objeto privilegiado os que classificamos como ‘estrangeiros’ e, portanto, distantes da nossa experiência quotidiana. O sofrimento de quem é próximo, dos nossos amigos e familiares, merece maior discrição: a morte dos ‘nossos’ é para ser respeitada e protegida, certamente, não exposta pornograficamente.

As imagens do sofrimento alheio são, hoje, sempre mais abundantes, e entre estas, em particular, segundo Liisa Malkki, os retratos fotográficos dos refugiados, ao ponto que todos já temos uma representação visual de como é um refugiado: “corporeidades anónimas”44, desesperados, degradados, desfigurados pelas violências da história. As narrativas imagéticas que nutrem o discurso das políticas públicas contemporâneas acabam, todavia, para esconder um aspeto importante: a representação estereotipada das vítimas afasta, das nossas consciências, as vozes das pessoas que reivindicam o direito a uma existência digna e que nos confrontam com a obrigação de esclarecer as responsabilidades, de desmascarar e acusar os carnífices. As causas políticas, económicas, históricas e sociais do sofrimento ficam confinadas às margens da imagem: esquecemos, assim, que somos cúmplices do sofrimento que observamos com incómodo ou comoção, e que os nossos privilégios se colocam no mesmo mapa geográfico da dor dos outros e que podem – em maneiras que preferiríamos nem imaginar – ser conectados a estes mesmos sofrimentos, sendo que a riqueza de alguns pode implicar a indigência dos outros45. A solidariedade – relação de poder assimétrica que se expressa por meio do sentimento da compaixão, contemporânea, pietas humanitária de herança católica – não só cria consentimento, desarma as críticas e não tem inimigos46, mas, especialmente, afirma enfim Susan Sontag, tem o poder de nos desresponsabilizar, e de nos proclamar inocentes, além do que impotentes.

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