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O SUS é interprofissional

O SUS é interprofissional

Autores:

Marina Peduzzi

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.20 no.56 Botucatu jan./mar. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0383

O artigo do professor Scott Reeves traz amplo panorama da educação interprofissional (EIP) no cenário global e nos ajuda a compreender porque e como ampliar este debate e prática no Brasil.

Inicia esclarecendo o contexto em que emerge a EIP que consiste, de um lado, no gradativo reconhecimento da complexidade e abrangência do que são saúde e doença, suas múltiplas dimensões orgânicas, genéticas, psicossociais, culturais e sua determinação social, visto que o processo saúde doença é também expressão da vida e trabalho, isto é, do modo como indivíduos família e grupos sociais estão inseridos na sociedade. De outro lado, e relacionado ao primeiro, decorre da complexidade da rede de atenção à saúde e a necessária coordenação e colaboração entre profissionais e os próprios serviços.

O artigo também trata de aspectos organizacionais que contribuem ou que constituem barreiras para a EIP e de evidencias que mostram resultados produzidos na qualidade da formação e da atenção à saúde por esta abordagem educacional.

Refere que o apoio organizacional é crucial para o sucesso da EIP. São necessárias lideranças com interesse, conhecimento e experiência tanto para incluir a EIP na agenda da educação, como para construir e implementar uma agenda própria que permita o desenvolvimento dessa modalidade de formação profissional. Também é crucial o compromisso da gestão educacional e da política institucional para apoio efetivo, visto que é necessário um conjunto de iniciativas e recursos para impulsionar a EIP. O envolvimento de professores e profissionais de saúde ligados aos serviços onde estudantes desenvolvem práticas de aprendizado também é necessário. O autor ressalta que construir um grupo de trabalho com entusiasmo pelo desafio de superação do modelo tradicional de educação - uniprofissional e estritamente biomédica, é fundamental.

Também o artigo refere necessidade de construir programas educacionais e currículos que incluam a EIP e a adoção de métodos de ensino inovadores que estimulem o que constitui característica da EIP – o aprendizado compartilhado de forma interativa.

Alguns desafios são destacados como a articulação de atividades interprofissionais e específicas de cada área profissional, visto que ambas integradas permitem o aprendizado do conjunto de competências necessárias para o trabalho em equipe e a prática interprofissional colaborativa. Tanto os programas de ensino como professores e estudantes tendem a hipervalorizar o específico, que é sem dúvida importante para a futura atuação responsável e a contribuição que cada profissional fará no cuidado às necessidades de saúde. O que parece insuficiente é limitar a formação dos profissionais de saúde à sua área especifica, pois como apontado acima há o crescente reconhecimento da complexidade e abrangência das necessidades de saúde. Também é um desafio incorporar as iniciativas de EIP como obrigatórias na grade curricular, pois sendo eletivas tenderão a ser selecionadas pelos estudantes mais sensíveis às mudanças, o que tende a limitar seu impacto.

As resistências têm raízes histórico-sociais que o autor retoma ao apontar as iniquidades existentes entre as diferentes profissões que compõem o campo da saúde. As diferenças dos saberes e práticas profissionais, constituídas também historicamente, permitem que cada profissão contribua com sua expertise no que se refere ao reconhecimento e as respostas às necessidades de saúde, que se esperam sejam definidas de forma participativa, com usuários, famílias e comunidades. Contudo, convivem diferenças e iniqüidades na atuação dos profissionais de saúde, que como assinala o artigo, comprometem a qualidade dos serviços prestados visto que estes requerem coordenação e colaboração.

A EIP visa promover que estudantes dos diferentes cursos de graduação em saúde e profissionais inseridos nos serviços “aprendam a trabalhar juntos de forma colaborativa”. Assim, se reconhece na proposta de EIP a relação recíproca de mútua influencia entre educação e atenção à saúde, sistema educacional e sistema de saúde. Neste sentido é que o Sistema Único de Saúde (SUS) é interprofissional, construído e consolidado como espaço de atenção à saúde, educação profissional, gestão e controle social, orientado pelos princípios de integralidade, equidade, universalidade e participação.

O SUS e a Estratégia Saúde da Família (ESF) são reconhecidos no contexto nacional e internacional como importante contribuição para reforma de sistemas de saúde que respondam de forma pertinente, tanto na dimensão tecnológica como ética, às necessidades de saúde das populações1,2. Estudo do impacto da ESF mostra o sucesso da abordagem integral que articula ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde3, o que requer atuação integrada e colaborativa de um amplo elenco de profissionais de saúde para além do médico: agentes comunitários de saúde, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, cirurgiões dentistas, auxiliares e técnicos de saúde bucal e os profissionais inseridos nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) como fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, psicólogos e outros - daí o caráter eminentemente interprofissional da atenção à saúde e da formação dos profissionais.

Literatura sobre EIP e pratica colaborativa mostra que não se trata de um objetivo colocado no horizonte distante, mas sim de mudanças efetivamente necessárias para a melhoria do acesso e qualidade da rede de atenção, o que está fundamentado tanto no contexto acima assinalado, como nas evidencias trazidas pelos estudos sobre o tema, como bem apresenta o artigo.

No Brasil houve um avanço maior do trabalho em equipe e da prática interprofissional na organização dos serviços e no cotidiano de trabalho dos profissionais, em descompasso com a ainda incipiente EIP4,5. Portanto há muito que avançar na educação e prática interprofissional colaborativa e para tal é preciso o envolvimento e apoio de diversos atores sociais como: Instituições de Ensino Superior (IES) e Educação Profissional, instâncias governamentais (federal, estaduais, municipais) para que as políticas de saúde e de educação incorporem EIP e prática interprofissional no conjunto de mudanças propostas. Também é crítica a ação dos órgãos de regulação das práticas profissionais, pois sua participação é crucial para a mudança do paradigma ainda centrado na auto-regulação das profissões, para um paradigma de regulação que incorpore a defesa da saúde como direito e interesse público, que remetem a abordagem interprofissional dada a integralidade da saúde6.

Nessa perspectiva é importante o debate em torno da ampliação do escopo de prática das profissões da saúde, de modo que os profissionais de cada área façam tudo que foram formados para fazer e atuem com o conjunto de suas competências. As profissões não são estáticas e mudam à medida que mudam o perfil populacional, as necessidades de saúde e o modo de organização dos serviços e de cuidado em saúde.

Para fortalecer a EIP e prática colaborativa no país é preciso estar atento às resistências, entre elas ao risco de reiterar conceitos e modelos tradicionais de auto-regulação e abordagem biomédica estritos, bem como de atuação profissional isolada e independente em um campo da saúde cada vez mais complexo, interprofissional e interdisciplinar. O risco mencionado se refere à dialética entre ação e seus significados, veiculados pela linguagem e comunicação, pois como aponta Charmaz7 (p. 983): “Ações produzem significados e significados modelam ações. Nós precisamos estar atentos aos significados sociais dominantes nos quais as pessoas se inspiram em suas ações”.

REFERÊNCIAS

1. Harris M, Haines A. Brazil’s Family Health Programme. BMJ. 2010; 341:c4945 doi:10.1136/bmj.c.4945.
2. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances and challenges. The Lancet. 2011; 377:1778-97.
3. Rasella D, Harhay MO, Pamponet ML, Aquino R, Barreto ML. Impact f primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a Nationwide analysis off longitudinal data. BMJ. 2014; 349:g4014 doi:10.1136/bmj.g4014.
4. Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, Silva JAM, Souza GC. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev Esc Enferm. USP 2013; 47(4):977-83.
5. Batista NA. Educação interprofissional em saúde: concepções e práticas. Cad FNEPAS 2012; (2).
6. Bourgeault IL, Grignon M. A comparison of the regulation of health professional boundaries across OECD countries. Eur J Comp Econ. 2013; 10(2):199-223.
7. Charmaz K. Premises, principles and practice on qualitative research: revisiting the foundations. Qual Health Res. 2004; 14(7):976-93.