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O trabalho fonoaudiológico em uma clínica dialógica bilíngue: estudo de caso

O trabalho fonoaudiológico em uma clínica dialógica bilíngue: estudo de caso

Autores:

Beatriz Zaki Porcelli Mariani,
Ana Cristina Guarinello,
Giselle Massi,
Rita Tonocchi,
Ana Paula Berberian

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.28 no.5 São Paulo set./out. 2016 Epub 24-Out-2016

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015287

INTRODUÇÃO

Na década de 1960, iniciou-se o ensino da Fonoaudiologia no Brasil, pautando-se em práticas associadas à Medicina. Nessa direção, buscava-se corrigir as ditas falhas existentes na linguagem, as quais eram vinculadas ao organismo humano e tomadas como meio de comunicação, dependente de um código encerrado em si mesmo.

Assim, desde os primeiros cursos de Fonoaudiologia, uma visão organicista imperou sobre a terapêutica fonoaudiológica, que se voltava essencialmente a questões de reabilitação e cura dos vícios e defeitos da palavra por meio da utilização de processos reeducativos(1). Da mesma forma, no campo da surdez, as práticas fonoaudiológicas tradicionalmente realizavam um trabalho que, em geral, buscava somente a aquisição da oralidade e o desenvolvimento das habilidades auditivas para que o sujeito surdo se adequasse a uma comunidade majoritária ouvinte.

Até os dias atuais, o trabalho fonoaudiológico com os surdos, muitas vezes, baseia-se em uma visão clínico-terapêutica da surdez, a qual percebe os surdos como deficientes, negando-lhes a língua de sinais e ancorando-se em uma perspectiva de linguagem que a entende como um sistema baseado em codificação e decodificação de uma língua, que pode ser ensinada com ênfase na correção dos defeitos da fala(2).

Contrariamente ao aspecto classicista da clínica fonoaudiológica oralista, a partir da década de 1990, alguns fonoaudiólogos passaram a perceber a surdez enquanto diferença, e a língua de sinais começou, então, a ser defendida como a primeira língua dos surdos. Essa língua legitima o surdo como “sujeito da linguagem”, sendo capaz de transformar a “anormalidade” em diferença(3).

Desse modo, tal clínica passa a repensar a surdez e a utilizar uma proposta metodológica bilíngue. Essa proposta pode satisfazer as necessidades sociais e linguísticas dos sujeitos surdos e, afiliando-se a uma perspectiva sócio-histórica da linguagem, perceber a relação interpessoal como ponto principal para a apropriação do conhecimento. Para isso, em relação à criança surda, o adulto torna-se necessariamente seu interlocutor e a língua de sinais é o objeto fundamental que age e sofre a ação dessa interação.

Nesta clínica fonoaudiológica, a linguagem é tomada como atividade discursiva, sendo capaz de influenciar e ser influenciada pelos sujeitos que sobre ela operam. Por isso, a linguagem torna-se constitutiva da própria língua e dos sujeitos que a utilizam. É neste mesmo contexto que a interação é concebida, como fruto de um constante diálogo entre sujeitos ativos constituídos socialmente, desta forma a clínica fonoaudiológica é entendida como dialógica(4).

Uma clínica dialógica bilíngue entende a linguagem como fruto da interação e da história do sujeito. Dessa forma, trabalha com o surdo a partir da apropriação de duas modalidades da linguagem, sendo a primeira a língua de sinais e a segunda o português(5). E, nesse contexto, o fonoaudiólogo assume o papel de mediador no processo de apropriação da linguagem, partindo da língua de sinais para a língua portuguesa.

Nesta proposta bilíngue, os surdos deverão ter acesso precoce à língua de sinais, o que lhes permitirá um trabalho capaz de possibilitar o desenvolvimento pleno da linguagem. Além disso, tal trabalho também preconiza que a língua portuguesa seja ensinada ao surdo, como segunda língua (L2), tanto na modalidade oral quanto escrita. Assim, a prática terapêutica deverá considerar as condições linguísticas diferenciadas de cada surdo e, por intermédio da língua de sinais, propiciar seu acesso à língua portuguesa(5).

Cabe esclarecer, portanto, que será a partir da língua de sinais que o fonoaudiólogo poderá trabalhar com a apropriação da língua portuguesa seja na sua modalidade oral ou escrita. Para isso, é preciso explicar para os pais que a língua de sinais é a língua que permite melhores possibilidades de ganhos cognitivos, linguísticos e subjetivos aos surdos(5).

Nessa direção, essa pesquisa objetiva discutir a inserção da língua brasileira de sinais como primeira língua de um sujeito surdo que frequenta uma clínica fonoaudiológica dialógica bilíngue a partir de atividades dialógicas.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Sociedade Evangélica Beneficiente de Curitiba (CAAE: 8910/11). Além disso, o responsável pelo participante surdo assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O estudo foi realizado em uma Clínica-Escola de Fonoaudiologia localizada no sul do Brasil e enfocou o caso de um sujeito surdo que faz terapias fonoaudiológicas pautadas em uma perspectiva dialógica e bilíngue. O processo clínico fonoaudiológico desenvolvido entre março de 2011 e novembro de 2014, ocorreu durante terapias semanais, com duração de 40 minutos, nas quais se utilizaram estratégias baseadas nas relações dialógicas do paciente com seus interlocutores. Cabe esclarecer que, por se tratar de uma clínica escola, durante cada ano um estagiário diferente atendeu esse sujeito.

A análise longitudinal dos resultados foi realizada a partir dos dados coletados nos prontuários do paciente, durante o seu processo terapêutico, tais como: entrevista inicial; relatórios de avaliação; registros diários; relatórios bimestrais e semestrais; relatórios de contato interdisciplinar; relatórios de conversas estabelecidas com a família e exames complementares acompanhados de laudos médicos.

O sujeito desta pesquisa, que no desenvolvimento deste trabalho será identificado pela inicial N, é um menino surdo nascido em março de 2005, com perda auditiva sensório neural profunda e bilateral de etiologia congênita.

A família deste sujeito constitui-se de duas pessoas, N e sua mãe, já que ela e o pai são separados e este não convive com eles. Desde o início do processo terapêutico, procurou-se conversar com a mãe sobre as possibilidades de seu filho e sobre o seu papel fundamental como mediadora na apropriação da linguagem. Enfatizou-se apenas a mãe neste processo, pois é ela quem interage diariamente com N.

Na entrevista inicial, realizada em 2011, o discurso da mãe em relação ao seu filho estava atrelado às suas expectativas quanto à oralidade de N. Em geral, ela mostrava-se insegura com relação aos possíveis progressos do filho, pois ao conversar com profissionais da área da saúde e da educação, segundo seu próprio relato, esses ressaltavam aspectos negativos de N, caracterizando-o como: nervoso, ansioso, hiperativo e com déficits cognitivos. Tais profissionais raramente mencionaram as reais possibilidades deste sujeito.

Percebe-se que, apesar de muitas vezes a mãe não concordar totalmente com os laudos referentes ao seu filho, sua visão sobre N estava vinculada ao que havia ouvido dos profissionais que trabalhavam com ele e que o atestavam como um sujeito sem habilidades comunicativas orais.

A mãe também relatou que, em 2007, quando N tinha dois anos de idade, foi realizada adaptação do implante coclear na sua orelha direita e que, desde então, ele realiza acompanhamento semestral fonoaudiológico com uma equipe de Implante Coclear que presta atendimentos na cidade de São Paulo. Desde os onze meses de idade, N utilizou aparelho de amplificação sonora individual (AASI) na orelha esquerda, simultaneamente ao implante coclear. Porém, em 2013, aos oito anos de idade, o AASI quebrou e a mãe decidiu não substituí-lo por outro. Pois, segundo ela, N praticamente nada ouvia com o aparelho.

Assim que N realizou a cirurgia do implante coclear, começou a frequentar uma escola para surdos com uma perspectiva oralista, na qual foi dada ênfase apenas ao desenvolvimento da linguagem oral e aos aspectos auditivos.

Em 2011, aos seis anos de idade, quando chegou à clínica fonoaudiológica dialógica e bilíngue, na qual o presente estudo se realiza, N havia mudado recentemente de escola. Essa nova escola, específica para surdos, também, enfatizava a oralidade. Porém, N tinha aula de língua de sinais apenas uma vez por semana, por 30 minutos, sendo que os demais professores da escola não utilizavam esta língua e ele não tinha acompanhamento de intérprete durante as aulas. É preciso esclarecer que N costumava ficar na escola sem conseguir acompanhar as aulas, já que a professora usava apenas a modalidade oral da língua portuguesa para interagir com os alunos. N, aos seis anos, foi colocado em uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental e, segundo a professora, possuía atrasos linguísticos e cognitivos.

Antes do acompanhamento realizado na clínica dialógica bilíngue, a interação entre mãe e filho ocorria, basicamente, por meio de gestos caseiros e apontamentos. Essa interação, de acordo com os relatos da mãe, ocasionava grande aflição em ambos e, pelo fato de ela insistir no uso da língua oral, era comum que N não participasse efetivamente das interações familiares.

Na primeira avaliação realizada na clínica dialógica bilíngue, após a entrevista inicial, percebeu-se que N apresentava um atraso no desenvolvimento da linguagem, já que se utilizava basicamente de gestos caseiros, pois não estava inserido na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), produzia alguns sons, na maioria das vezes, sem sentido e não realizava leitura orofacial. Era uma criança que mantinha pouco contato visual, dificultando as interações dialógicas que seus interlocutores buscavam estabelecer com ele.

Além disso, percebia-se que N fazia mau uso de sua audição residual, pois, apesar de usar o implante coclear há 4 anos, percebia-se que ele apenas ouvia e localizava sons com uma intensidade alta, porém não os discriminava. Nesta época, N já estava com 6 anos de idade e apresentava uma recusa para ouvir e usar a oralidade, assim, a própria equipe do implante apontava que sua apropriação da língua oral e sua audição residual estavam muito aquém do esperado para uma criança de sua idade.

Nesse período de avaliação, era notório que N preferia brincar sozinho, geralmente, excluindo o outro e afastando-se de processos interativos. Ele não obedecia aos turnos dialógicos e mantinha pouca atenção no seu interlocutor. Apesar disso, tinha a intenção de se comunicar, pois tentava se fazer entender usando gestos caseiros e apontando para os brinquedos e objetos disponíveis na sala de terapia.

Depois da avaliação, iniciou-se o processo terapêutico com N, optou-se então por inseri-lo na língua de sinais, a fim de que ele se apropriasse de uma língua o mais rápido possível, para que então pudesse adquirir a língua portuguesa como segunda língua. Na época, conversou-se com sua mãe sobre a clínica bilíngue e a importância da LIBRAS. A mãe, então, concordou com tal abordagem e buscou apropriar-se desta língua, por meio de cursos, para que assim N pudesse estabelecer interações mais efetivas no âmbito familiar.

O trabalho inicial, na clínica dialógica, com N foi realizado por meio da LIBRAS e de outros recursos linguísticos, tais como gestos, oralidade, desenhos, leitura orofacial, recursos auditivos e a língua escrita. Em terapia, buscou-se trabalhar a linguagem por meio de atividades lúdicas que necessitavam da interação com o outro, tais como: jogos de tabuleiro, produções de receitas culinárias, construção de cartazes e teatro, enfim, atividades que se utilizavam de recursos visuais, já que tais recursos são fundamentais para a apropriação da língua de sinais e como consequência da língua portuguesa. Com isso, N pôde, através da interação com o outro, preencher turnos conversacionais e apropriar-se da língua de sinais antes desconhecida.

Cabe destacar que os objetivos terapêuticos deste paciente eram a apropriação da língua de sinais e da língua portuguesa em sua modalidade oral e escrita, além do desenvolvimento das habilidades auditivas. Porém, como esse sujeito tinha um contato reduzido com a língua de sinais na escola e, na clínica fonoaudiológica, não tinha um instrutor surdo que serviria de modelo linguístico, optou-se por, a partir de interações com o fonoaudiólogo por meio da língua de sinais, inseri-lo em práticas com e sobre a linguagem.

Depois que N começou a frequentar a clínica fonoaudiológica bilíngue, além de usar a língua de sinais durante as terapias fonoaudiológicas, também começou a utilizá-la em casa com sua mãe, que participava de cursos de língua de sinais, na escola durante as aulas de língua de sinais e com alguns colegas surdos durante o intervalo das aulas.

Quando N tinha 6 anos e meio, percebeu-se, nas terapias fonoaudiológicas baseadas em uma perspectiva bilíngue, que ele já era capaz de construir enunciados curtos por meio da língua de sinais, comunicando situações de seu cotidiano ou narrando histórias infantis. Para tanto, ele baseava-se nas figuras contidas nos livros utilizados pela terapeuta para interagir com ele. Além disso, ele passou a compreender histórias narradas pela terapeuta através da LIBRAS.

Um exemplo do processo de apropriação da língua de sinais por N pode ser visualizado na produção abaixo. Nesse dia, a terapeuta e N estavam montando uma história a partir de uma sequência de figuras e, então, ele construiu enunciados curtos para narrar a história, utilizando-se dos sinais da LIBRAS:

  • PRODUÇÃO I (6 anos e meio):

    /HOMEM PESCAR. HOMEM VER. NAVIO PERTO HOMEM. HOMEM PEGAR PEIXE COMER./

Neste enunciado é perceptível que N construiu sua narrativa por meio da visualização da sequência lógica e temporal das figuras que viu, importando-se com a compreensão discursiva de seu interlocutor.

Durante este mesmo ano, também foram trabalhados aspectos relacionados à oralidade de N por meio de atividades significativas. Porém notou-se que houve poucos avanços neste objetivo terapêutico, pois N produzia apenas vocalizações que, em sua maioria, eram ininteligíveis e descontextualizadas. Era comum mostrar-se desconfortável quando lhe era sugerido que tentasse oralizar.

Isso provavelmente ocorria devido ao fato de N ter estudado em uma escola oralista que, segundo a mãe, utilizava, em geral, atividades mecânicas e fora de contexto para trabalhar a linguagem oral. A mãe referiu que a fonoaudióloga da escola a orientava a utilizar fonemas isolados, palavras soltas e a repetir palavras em casa com seu filho, afirmando que assim ele iria desenvolver a língua oral. Assim, o desconforto de N também pode estar relacionado a questões familiares, pois, conforme afirmado anteriormente, sua mãe buscava a oralidade como meio de comunicação com seu filho, solicitando que ele utilizasse a língua oral por meio da repetição de palavras isoladas e produção de fonemas.

Com relação às habilidades auditivas de N, percebeu-se que ele, aos 6 anos e meio, constantemente, apresentava recusa à escuta de sons ambientais e da fala, apesar de a terapeuta notar que ele ouvia e chamar sua atenção para os sons ambientais e da fala durante as terapias. Por diversas vezes, N mostrava-se irritado quando lhe chamavam a atenção para algum som específico e não utilizava desse recurso como apoio em suas interações.

Observou-se que N, com 7 anos de idade, após um ano de terapia, passou a apresentar um vocabulário mais amplo da língua de sinais, quando comparado ao ano anterior. A sistematização do trabalho ocorreu por meio de atividades como contar histórias, tanto de ficção quanto baseadas no seu cotidiano.

Com 7 anos e meio, percebeu-se que este sujeito passou a chamar a atenção do seu interlocutor para si quando queria dialogar. Assim, demonstrou que entendeu que para haver turnos conversacionais é preciso que tanto ele quanto seu interlocutor mantivessem contato visual e que ambos participassem da situação discursiva, para que o diálogo fosse efetivo.

Com esta idade, N compareceu à terapia narrando espontaneamente seu fim de semana, utilizando-se da LIBRAS. Segue abaixo a narração feita pelo paciente:

  • PRODUÇÃO II:

    /DIA MADRINHA VIAJAR AVIÃO VER MÃE MADRINHA EU CAIR BRINCAR MACHUCAR JOELHO./

O trabalho em relação à oralidade teve pouco enfoque no ano de 2012, mas N vocalizou alguns sons, tais como a tentativa de falar o nome da terapeuta em diversas situações em que o outro era requisitado a participar da interação. Assim como para mostrar seu descontentamento com situações propostas pela terapeuta, costumava oralizar a palavra /não/. Neste ano, o implante coclear de N quebrou no mês de abril e o paciente ganhou um novo implante (Nucleus 5 da marca Cochlear), o qual possui 22 eletrodos, sendo que todos foram ativados. Essa tecnologia mais moderna proporcionou-lhe o reconhecimento de uma ampla gama de sons ambientais e da fala, por exemplo, o chamado de sua mãe. Assim, percebeu-se que N começou a demonstrar interesse pelos sons e a discriminar seu nome, o nome de sua mãe, sons de jogos do computador, alguns sons ambientais, tais como campainha e telefone. Além disso, frequentemente, N chamava a atenção da terapeuta para os sons ambientais que escutava durante a terapia. Um exemplo disso ocorreu quando um bebê estava chorando em outra sala e N fez sinal de bebê e choro; em outro exemplo N se dirigiu até a porta da sala quando ouviu alguém bater.

No fim deste ano, quando N foi para São Paulo se consultar com a equipe de implante coclear, as terapeutas da equipe se surpreenderam com sua melhora auditiva e recomendaram que o trabalho com uma abordagem bilíngue e a língua de sinais tivesse continuidade, já que os benefícios da apropriação da língua de sinais eram visíveis. A equipe escreveu em relatório que havia percebido as mudanças de N que agora demonstrava querer interagir com os outros, trocava turnos dialógicos, além de estar muito mais participativo durante as interações dialógicas.

Com o passar do tempo, a mãe do paciente, em discussões constantes com os terapeutas, passou a perceber a importância da língua de sinais durante as interações com seu filho. Depois de dois anos de terapia fonoaudiológica, ela decidiu mudá-lo novamente de escola, matriculando-o em uma escola bilíngue na qual ele se mantém até o momento em período integral. Ressalta-se que, nessa escola, N tem contato com adultos surdos usuários da língua de sinais, além disso, os professores ouvintes são bilíngues e os outros alunos também utilizam esta língua.

Nessa nova escola, N estuda em período integral, sendo que os professores resolveram mantê-lo no 1º ano do Ensino Fundamental, com o argumento de que ele estava muito atrasado com relação às outras crianças. A escola então optou por deixá-lo em um período sozinho com uma professora surda que trabalhava com a língua de sinais e, em outro, com uma professora ouvinte que trabalhava a língua de sinais e o português escrito. Dessa forma, N não foi inserido em nenhuma turma com outras crianças. Cabe esclarecer que as terapeutas foram contra essa argumentação, insistindo na importância de N estudar e interagir com outras crianças, porém a escola manteve seu posicionamento.

Quando N estava com 8 anos, durante seu terceiro ano frequentando as terapias fonoaudiológicas, o foco terapêutico era a expansão do seu vocabulário, intensificando-se o uso da LIBRAS em sessões terapêuticas. Com isso, foi possível perceber que o paciente apresentou melhoras na contextualização da LIBRAS, que passou a ser inserida não somente nos discursos feitos pelo paciente, como também em diálogos com o terapeuta e seus familiares.

Sendo assim, aos 8 anos de idade, N ampliou seu vocabulário e demonstrou como a língua de sinais passou a fazer parte do seu cotidiano. Dessa forma, ele começou a conversar de maneira coerente por meio da língua de sinais. Ao sentir raiva, por exemplo, deixou de manifestar tal sentimento por meio de ações físicas, como choro e quebra de objetos e começou a demonstrar sua insatisfação e seu nervosismo utilizando-se da LIBRAS.

No exemplo abaixo, N demonstrou seu afeto durante as terapias, por meio da LIBRAS:

  • PRODUÇÃO III (8 anos de idade):

    EU GOSTAR VOCÊ. EU GOSTAR VIR AQUI.

No enunciado acima, é possível interpretar que N fez questão que seu interlocutor soubesse do vínculo que estabeleceu com ele. Além disso, durante todo o ano de 2013, N mostrou-se questionador, tanto em relação a sua compreensão de mundo como em relação a sua língua. Ele passou a perguntar o significado de sinais novos empregados em terapia, principalmente, quando o contexto não era compreendido por ele.

Também, durante este ano, o terapeuta de N optou por realizar algumas sessões terapêuticas juntamente com outras crianças. Com isso, pôde-se perceber que a interação entre N e seus interlocutores ocorria espontaneamente através do brincar. Quando não era compreendido, N utilizava-se de diferentes estratégias, por exemplo, expressão corporal (mímica), apontamentos e vocalizações.

Em relação ao implante coclear, a equipe que acompanhava N realizou mudanças nos programas e estes foram testados em terapias fonoaudiológicas que enfatizavam as habilidades auditivas, buscando determinar qual seria o melhor programa para corresponder às suas necessidades. Foi observado, pelo terapeuta e também pela mãe de N, que o programa P3 (dentre as quatro programações disponíveis) apresentou melhores resultados auditivos, pois ele discriminava melhor os sons ambientais e utilizava-se desse recurso em atividades diárias, tais como atravessar a rua, ouvir música, assistir à televisão, nos jogos de computador. N também discriminava seu nome e algumas palavras do seu cotidiano, tais como: não, tchau, oi, casa, etc. A equipe do implante continuou enfatizando a importância da LIBRAS, já que nas visitas a São Paulo, N conversava nessa língua com os terapeutas e interagia conversando e trocando turnos.

No ano seguinte, aos 9 anos de idade, N mostrou-se mais seguro ao utilizar a língua de sinais e, por diversas vezes, chegou a corrigir ou a ensinar à terapeuta sinais da língua. Com o intuito de ampliar as possibilidades interativas do paciente, a terapeuta que o atendia nesse ano, trabalhou também com a construção de jogos de tabuleiro e experiências científicas. Tais momentos propiciaram trabalhos em grupo com outros pacientes, nos quais N convocava a participação de seu interlocutor em diversas ocasiões e, quando chamado para participar, não ignorava o convite.

Além disso, cabe esclarecer que nesse ano também foi enfatizado o objetivo de apropriação do português escrito como segunda língua. N demonstrou, inicialmente, uma recusa a essa modalidade de linguagem, apesar de utilizá-la quando tinha interesse, como para buscar jogos no computador. A terapeuta interpretou tal recusa como fruto de uma associação que N fazia com a oralidade e, devido a isso, o trabalho tentou afastar a escrita da língua oral, associando-a apenas à língua brasileira de sinais.

Assim, N escrevia seu nome e o nome de familiares, procurava jogos no computador escrevendo o nome do jogo, escrevia o nome dos personagens de seus jogos e desenhos favoritos, realizava experiências científicas e escrevia o passo a passo, interessava-se por histórias em quadrinhos e pedia que a terapeuta lesse para ele, etc. Percebeu-se que N começou a perceber os usos sociais da escrita e o que poderia fazer com essa modalidade de linguagem. Desse modo, a terapeuta passou a focar-se na apropriação do português escrito como segunda língua, possibilitando o desenvolvimento desta modalidade de linguagem, e também se baseando na comparação desta com a LIBRAS. Assim, buscou-se ampliar as possibilidades comunicativas e interativas de N por meio da linguagem.

As atividades com a escrita eram realizadas por meio de práticas sociais nas quais ele pudesse dialogar com essa modalidade de linguagem, ao mesmo tempo que fazia suas próprias leituras com a ajuda dos terapeutas, tornando-se interlocutor a partir de suas próprias histórias de mundo. Em relação à escrita e à LIBRAS cabe esclarecer que é por meio de negociações e das interações entre essas modalidades de língua que N é capaz de aprender as diferenças e usar cada língua de acordo com suas normas(6).

Nesse ano, N estava cursando o segundo ano do Ensino Fundamental, porém como ele estava atrasado com relação às outras crianças da escola, estudava em um período com uma professora surda que o ajudava com a apropriação da língua de sinais e à tarde era realizado um trabalho também com a língua portuguesa na modalidade escrita. N, porém, só copiava as letras e palavras. Atualmente, cursando o 3º ano e inserido em uma turma com outras crianças, ele já reconhece todas as letras e alguns nomes, mas ainda não escreve um texto sem a ajuda de um adulto mediador.

As terapias fonoaudiológicas continuaram enfatizando as habilidades auditivas, focando a discriminação e localização de sons ambientais, para que sua audição fosse utilizada em seu dia a dia, proporcionando-lhe uma audição funcional, ou seja, uma audição capaz de se enquadrar no contexto diário deste paciente, auxiliando-o a ouvir e interpretar os sons de suas atividades rotineiras. Além dos sons em que N já demonstrava interesse, como os explicitados acima, percebeu-se que ele começou a se interessar por músicas, principalmente rock e músicas de filmes a que ele havia assistido. Em uma das terapias, ele pegou um violão e tocou conforme a música que a terapeuta colocava no gravador, N também reconheceu a música do filme dos Minions, apontando para a figura, e do filme Frozen.

Durante este ano, a fala de N era composta por alguns sons produzidos espontaneamente, entretanto ele também demonstrou fazer uso da fala em algumas situações do seu cotidiano, como quando pegou o celular da terapeuta e falou alo e produziu vários outros sons imitando a fala e, nas terapias com o violão, N cantou usando a vogal /o/ no ritmo na música.

DISCUSSÃO

Por meio da análise do processo terapêutico de N, é evidente a diferença na sua interação quando comparados os momentos iniciais de terapia e os registros desse processo em 2014. Inicialmente, por conta da falta de uma língua compartilhada com seus interlocutores, parecia não haver interesse do paciente em compartilhar experiências e opiniões em relação as suas vivências e seus conhecimentos. Porém, após quatro anos de acompanhamento fonoaudiológico, N demonstra a necessidade de que o outro participe de suas vivências e aceita influências desse outro sobre suas ações compartilhando-as com diferentes sujeitos.

Com relação ao uso da oralidade deste sujeito, cabe destacar que é comum que as famílias ouvintes com filhos surdos busquem e desejem a oralidade de seus filhos. Constatou-se que a expectativa em torno da oralidade se deve ao fato de essa modalidade de linguagem ser de grande utilidade em uma comunidade majoritária ouvinte e, ao possibilitar ao filho acesso aos sons por meio de dispositivos de amplificação sonora, o familiar, geralmente, espera que haja a aquisição da língua oral(7).

Ao chegar à clínica fonoaudiológica bilíngue, N já havia realizado a cirurgia do implante coclear na orelha direita e utilizava aparelho de amplificação sonora individual na orelha esquerda. Porém, aos seis anos de idade, o uso que fazia da língua oral era basicamente realizado por meio de sons ininteligíveis que não faziam sentido para o seu interlocutor. Além disso, quando falavam com ele utilizando apenas essa língua, percebia-se que N não conseguia participar das interações linguísticas, demonstrando que não estava inserido na língua oral. Nessa época, N também não tinha contato com a língua de sinais, o que acarretava uma limitação em relação às suas interações sociais, realizadas basicamente por meio de gestos caseiros e apontamentos.

A avaliação realizada a partir da queixa inicial da mãe, em relação à comunicação de seu filho, resultou no parecer fonoaudiológico de que N tinha um atraso no processo de apropriação da linguagem. A partir de tal parecer, decidiu-se que o trabalho com N seria realizado por meio da LIBRAS, pois, sendo esta uma língua visual, poderia facilitar o processo interativo de N com seus interlocutores. Sendo assim, as expectativas da mãe quanto à oralidade de N foram discutidas na intenção de ressignificá-las, mostrando a importância da aquisição de uma língua visual da qual o sujeito surdo possa se apropriar mais facilmente.

Para isso, foi necessário chamar a atenção de N para os sinais e também utilizar-se de estratégias interativas por meio das quais ele percebesse a importância do outro como seu interlocutor. Ao empregar a LIBRAS durante as terapias, foi possível perceber que N espelhava as ações da terapeuta, processo comum quando a criança está se apropriando de uma língua. Em vista disso, ao fim do primeiro semestre de terapia, N começou a utilizar sinais da LIBRAS para se comunicar e também a iniciar e preencher turnos conversacionais, principalmente por meio de sinais isolados.

Assim, aos 6 anos e meio, N passou a compreender os enunciados de seus interlocutores e também a interpretar, expressar e perceber o mundo através da língua de sinais, que o ajudou a organizar seus discursos por meio da linguagem, evidenciando a importância de sua apropriação.

A apropriação e a prática de uma língua proporcionam a imersão das crianças em atividades discursivo-enunciativas(8). Com isso, pode-se perceber que as situações vivenciadas por N puderam ser enunciadas em situações dialógicas. Nesse contexto, o paciente mostrava-se à vontade com a LIBRAS e o diálogo espontâneo com a terapeuta ocorria frequentemente.

Desde o início das terapias fonoaudiológicas, perceberam-se mudanças no processo interativo de N. O paciente, que frequentemente optava por brincar sozinho e não completava os turnos conversacionais, passou a aceitar o outro como interlocutor de seus discursos, através da inserção da LIBRAS.

Isso se deve ao fato de N ter-se constituído sujeito por meio do uso efetivo de uma língua, pois foi através da linguagem que o paciente construiu sua identidade e pôde tornar-se autor de seus discursos, com a mediação de interlocutores que participavam e compreendiam esse processo.

Assim, concorda-se com a afirmação de que tudo o que diz respeito a um sujeito vem do outro, vem valorado pela boca de outro sujeito. A consciência de cada pessoa se constitui por intermédio dos outros. Deles o sujeito recebe a palavra e o tom que servirão à formação original da representação que terá de si próprio(9).

Juntamente com a apropriação da língua de sinais houve avanço significativo nas interações de N que, por perceber a compreensão do outro sobre os seus discursos, passou a solicitar a participação do interlocutor em diferentes atividades. O processo de apropriação da linguagem leva à simbolização justamente pela linguagem ser uma forma de agir sobre o mundo e sobre o outro. Ou seja, por meio da linguagem, N percebeu que era possível significar o mundo social em que se está imerso e de ressignificá-lo enquanto experiência que se refaz continuamente dentro de um processo sócio-histórico(10).

Desse modo, destaca-se que, durante a apropriação da língua de sinais, o trabalho com N também visou à interação do paciente com o outro. Por meio do uso de estratégias interativas e contextualizadas, o paciente passou, aos poucos, a incluir o outro em suas ações, usando as atividades dialógicas como um meio de participação dele e de seu interlocutor nessas atividades. Isso ocorreu em função de diversas atividades linguístico-discursivas, tais como: contações de histórias infantis, de narrativas fictícias, produções de receitas culinárias, construção de cartazes, teatro de fantoches, dentre tantas outras que propiciaram situações interativas lúdicas.

O brincar, desse modo, é visto como uma interação capaz de promover mudanças, expondo o sujeito por meio da linguagem(11). A criança modifica suas maneiras de brincar, passando a manipular a linguagem, a utilizar a criatividade e o imaginário para criar jogos de enredo que explicitem suas vivências. Por meio do brincar, portanto, há o estabelecimento do diálogo da criança com seu interlocutor.

Em relação ao diálogo, este é entendido como sendo um espaço em que ocorre a miscigenação de múltiplas verdades sociais, ou seja, a confrontação das mais diferentes refrações sociais expressas em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relação(4). A partir do diálogo, N também passou a manter maior contato visual com a terapeuta, principalmente, quando lhe eram explicadas as atividades que seriam realizadas em cada sessão. O diálogo, então, assumiu um caráter peculiar das relações sociais, não podendo ser reduzido ao encontro descontextualizado de enunciados a esmo(4).

A partir do uso da língua de sinais, iniciou-se um trabalho em que se tentou incluir o português escrito como segunda língua de N e, apesar da sua recusa inicial a essa modalidade de linguagem, o paciente demonstrou interesse pela escrita. É preciso esclarecer que N, durante o período em que estava na escola, em geral, fazia uso de práticas descontextualizadas com essa modalidade de linguagem, tais como cópias e nomeação de objetos e letras, talvez isso tenha desfavorecido o uso que fazia desta língua. Assim, era preciso que o terapeuta atuasse como mediador e parceiro na construção da língua escrita, deixando que N manipulasse materiais escritos e agisse sobre a língua por meio de práticas de escrita significativas(6). Percebe-se assim que N se encontra no início de um processo de apropriação da segunda língua, que ele já demonstra interesse pela leitura e a escrita e todas as suas possibilidades.

Percebeu-se, neste trabalho que, por meio das terapias fonoaudiológicas baseadas em uma perspectiva dialógica bilíngue, N foi gradativamente se apropriando da língua de sinais e da escrita. Além disso, ele passou a usar a audição e a fala em suas atividades cotidianas. N percebeu que poderia usar signos linguísticos verbais e não verbais para interagir e dialogar e usava cada signo de acordo com a situação em que se encontrava. Essas linguagens, portanto, passaram a ser utilizadas socialmente por N, possibilitando que ele fosse inserido no discurso e passasse a agir sobre o mundo e sobre o outro.

Cabe esclarecer que, em todas as terapias fonoaudiológicas, houve um processo de construção conjunta dos enunciados, tanto em língua de sinais quanto pela escrita(6). Tal processo de mediação em uma clínica dialógica é fundamental, pois permite ao sujeito que se transforme e seja transformado pela linguagem.

Com relação aos aspectos orais e auditivos foi notória a diferença de N após quatro anos de terapia. À medida que N pôde participar de atividades interativas e fazer parte do discurso ativamente, passou a usar a audição e a fala funcionalmente em seu cotidiano. No entanto, é provável que, se ele tivesse se apropriado mais precocemente da língua de sinais e tivesse feito uso da oralidade e da audição por meio de atividades dialógicas, significativas e contextualizadas, ele fizesse um uso mais proficiente dessa modalidade de linguagem.

Com relação à visão da família de N, convém esclarecer que, durante os primeiros encontros com a sua mãe, os fonoaudiólogos notaram que seu discurso estava atrelado ao de profissionais da área da saúde que trabalham sob um paradigma medicalizante, o qual entende que quanto mais o sujeito se afasta de um lugar homogêneo e explicita as suas características singulares, mais ele se afasta da norma, do que é aceito – e imposto – por dada sociedade, como normal. Assim, tal paradigma baseia-se em uma noção de cura da surdez para que assim os sujeitos se aproximem do que é considerado “normal”.

Em relação a esses profissionais, percebe-se que no dia a dia encontram-se formas distintas de lidar com determinadas situações clínicas. Diante disso, pode-se optar por assumir o papel do que “detém o saber” ou o de alguém de está disposto a ouvir e a criar conjuntamente formas e estratégias para resolução das dificuldades(12).

Muitos pais ouvintes, normalmente, optam apenas pela aquisição da oralidade como forma de comunicação e, em geral, isso é fundamentado por opiniões de profissionais envolvidos no diagnóstico da surdez e que desconsideram a importância da apropriação da LIBRAS para o desenvolvimento do sujeito surdo. Contrapondo-se a isso, o presente estudo de caso indica que é fundamental que as crianças surdas sejam postas em contato com pessoas fluentes na língua de sinais, sejam seus pais, professores ou outros, já que não há indícios de que o uso desta língua iniba a aquisição da fala. De fato, provavelmente ocorre o inverso(13).

Assim, mesmo que vários autores considerem a língua de sinais como primeira língua do surdo(6,13), é comum que as famílias ouvintes desejem e usem apenas a oralidade, já que normalmente há um desconhecimento a respeito da importância da língua de sinais. Com isso, em um contexto fonoaudiológico dialógico e bilíngue, um dos objetivos é exatamente trabalhar com a família, a fim de que ela perceba a importância da língua de sinais e também se aproprie dessa língua. Portanto, desde o início do processo terapêutico, buscou-se dialogar com a mãe de N sobre a língua de sinais e principalmente a respeito da sua percepção enquanto mediadora do processo de apropriação da linguagem.

Percebe-se que o fonoaudiólogo nesta clínica dialógica pode sim promover a escuta das necessidades de cada família e apontar novos direcionamentos, possibilitando a melhora das relações dialógicas, tão fundamentais para a constituição de sujeitos mais autônomos. Assim, as famílias podem usar um discurso vivo com seus filhos, o qual significa uma ponte, isto é, um lugar de encontro entre sujeitos, um espaço em que, por meio da alteridade, a linguagem possa se constituir na prática viva da língua(2).

Ao começar a frequentar a clínica de fonoaudiologia dialógica bilíngue e aceitar a inserção da LIBRAS na vida de seu filho, a mãe passou a se apropriar de outra perspectiva em torno da língua de sinais constituindo também uma diferente visão a respeito de seu filho.

Desse modo, a partir das melhoras significativas nas suas interações com N, a mãe também buscou apropriar-se dessa língua, para que efetivamente pudesse compreender e ser compreendida por seu filho. O apoio em relação à apropriação da língua de sinais foi fundamental no desenvolvimento do processo interativo de N.

Depois de quatro anos de terapia, percebeu-se o empoderamento da mãe, o qual aqui é entendido como um processo que ajuda as pessoas a firmar seu controle sobre os fatores que afetam sua saúde e/ou educação. Esse modelo de empoderamento se efetiva na ação grupal e no diálogo direto com profissionais que buscam a promoção de saúde(14). Tal empoderamento proporcionou mudanças significativas na constituição deste sujeito que frequenta as terapias fonoaudiológicas, e é claro de sua família.

A relação construída durante os anos de terapia com a mãe permitiu que os terapeutas pudessem, de certa forma, interferir na dinâmica desta família e assim possibilitar algumas mudanças de atitudes, como dos olhares da mãe sobre seu filho, tentando distanciá-la de uma visão ancorada nas dificuldades orgânicas e aproximá-la das reais possibilidades desse sujeito.

Cabe, portanto, destacar que a relação construída com a família deve ter como base a compreensão da dinâmica familiar e da escuta de suas demandas, para que o trabalho ocorra em conjunto. Sendo assim, ao longo dos quatro anos de terapia, a mãe construiu, tanto por meio dos diálogos com os fonoaudiólogos envolvidos no atendimento de N quanto de suas próprias buscas e reflexões acerca da língua de sinais, uma nova visão sobre seu filho. Esse novo olhar é capaz de promover a escuta das necessidades de N e apontar novos direcionamentos para essa mãe, possibilitando a melhora das relações dialógicas entre ela e seu filho, fundamentais para a constituição deste sujeito com maior autonomia e participação social(2).

COMENTÁRIOS FINAIS

Durante os anos de terapia na clínica fonoaudiológica dialógica bilíngue, pôde-se perceber que N passou a completar e iniciar turnos conversacionais por meio do uso efetivo de uma língua, permitindo que ele se constituísse sujeito autor de seus textos e interações e que passasse a interagir a partir de signos linguísticos verbais e não verbais.

Por meio da análise desenvolvida neste trabalho, percebeu-se a importância da língua de sinais como a primeira língua deste sujeito surdo e da linguagem como organizadora de suas ações e de sua consciência. Nesse contexto, pode-se inferir que foi através da apropriação da LIBRAS que N passou a perceber a importância de seu interlocutor, incluindo-o em processos interativos e a apropriar-se também da língua portuguesa, principalmente na sua modalidade escrita. Além disso, N passou a fazer um uso funcional da audição e da fala no seu dia a dia.

A clínica fonoaudiológica dialógica bilíngue abrange uma outra visão a respeito da prática clínica fonoaudiológica com crianças surdas, a qual privilegia a interação e leva em consideração o trabalho de apropriação da linguagem em sua amplitude, o qual inicialmente ocorre por meio da língua de sinais, que posteriormente possibilitará o trabalho com a língua portuguesa.

REFERÊNCIAS

1 Oliveira F. Por uma Terapêutica Fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2002.
2 Guarinello AC. A linguagem na clínica fonoaudiológica: espaço de mudança da ressignificação da surdez ou utopia. In: Anais do Rodas Bakhtinianas; 2014 Nov 13-15; São Carlos. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2014. p. 1.
3 Santana AP. Surdez e linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas. São Paulo: Plexus; 2007.
4 Faraco CA. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola; 2013.
5 Santana AP, Guarinello AC, Bergamo A. A clínica fonoaudiológica e a aquisição do português como segunda língua para surdos. Distúrb Comun. 2013;25(3):440-51.
6 Guarinello AC. O papel do outro na escrita de sujeitos surdos. São Paulo: Plexus; 2007.
7 Boscolo CC, Santos TMM. A Deficiência Auditiva e a Família: sentimentos e expectativas de um grupo de pais de crianças com deficiência da audição. Distúrb Comun. 2005;17(1):69-75.
8 Lodi ACB, Luciano RT. Desenvolvimento de linguagem de crianças surdas em língua brasileira de sinais. In: Lodi, ACB, Lacerda CBF, editores. Uma escola duas línguas: letramento em lingual portuguesa e língua de sinais nas etapas iniciais de escolarização. Porto Alegre: Mediação; 2009. p. 33-50.
9 Bakhtin M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes; 2011.
10 Freire RM. A linguagem como processo terapêutico: sócio-construtivismo: interações eficazes. São Paulo: Plexus; 1997.
11 Pollonio CA, Freire RMC. O brincar na clínica Fonoaudiológica. Distúrb Comun. 2008;20(2):267-78.
12 Givigi RCN, Santos AS, Ramos GO. Um novo olhar sobre participação da família no processo terapêutico. Rev. Ter. Ocup. 2011;22(3):221-8.
13 Sacks O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.
14 Teixeira MB. Empoderamento de Idosos em Grupos Direcionados à Promoção de Saúde [dissertação]. Rio de Janeiro: Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2002.