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O transtorno da compulsão alimentar (TCA) tem impacto no reganho de peso após a cirurgia bariátrica? Relato de caso

O transtorno da compulsão alimentar (TCA) tem impacto no reganho de peso após a cirurgia bariátrica? Relato de caso

Autores:

Maria Francisca F. P. Mauro,
José Carlos Appolinario,
Marcelo Papelbaum,
Marco Antônio Alves Brasil,
João Regis Ivar Carneiro

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Psiquiatria

versão impressa ISSN 0047-2085versão On-line ISSN 1982-0208

J. bras. psiquiatr. vol.66 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000175

ABSTRACT

Bariatric surgery (BS) is the most effectiveness long term treatment to severe obesity. However being associated with resolution or improvement of clinic comorbidities, one possible outcome is weight regain. A group of evidences appoint to the presence of BED (binge eating disorder) as one risk factor associated to post-surgery weight regain. The aim of this case report is to discuss a possible impact of binge eating in patients submitted to BS. The following cases will be presented: (1): 41 years woman, evaluated after 8 years post-surgery, showing weight regain of 22.9 kg and compatible eating psychopathology with BED; (2): 48 years men, evaluated 7 years post-surgery, with weight regain of 30 kg and showing grazing complaints, although without compatible BED symptomatology; (3): 44 years woman, evaluated 3 years post-surgery, maintaining stable weight without weight regain and BED exhibited in evaluation. The authors discuss, from these three index cases, the associated evidences related to the impact of the binge eating in the BS result. Although, for the moment, any definitely consensus on the real impact of eating disorders in weight recrudescence is not possible, it is clear that the clinician need to be alert to BED and possible association with weight regain.

Key words: Bariatric surgery; eating disorders; binge eating disorder; weight regain

INTRODUÇÃO

A cirurgia bariátrica (CB) é a intervenção mais eficaz para o tratamento da obesidade grave em longo prazo. Além da perda de peso, acarreta melhora ou resolução das comorbidades clínicas à obesidade, tais como hipertensão, apneia do sono e diabetes1. Nos últimos 10 anos, houve um aumento de 300% no número de procedimentos no Brasil de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica2. Os procedimentos cirúrgicos empregados no tratamento da obesidade severa não são isentos de risco3. Complicações agudas (fístulas, embolia pulmonar) e de longo prazo (carências nutricionais, hipoglicemia) podem ocorrer3. Uma das possíveis complicações pós-operatórias tardias é o reganho de peso4.

O reganho de peso na CB é definido como o aumento ponderal que pode ocorrer a partir do menor peso pós-cirúrgico5. A perda de peso ocorre de forma rápida no pós-operatório imediato, em função dos mecanismos de proteção metabólico e adaptação do paciente à restrição gástrica e ao aumento inicial da saciedade5. A diminuição ponderal, no entanto, tende a se estabilizar ao longo dos primeiros 12 meses4. Um reganho de peso de 5 a 10% é esperado a partir de 18 meses, mas o reganho acima de 10% é considerado por alguns autores como clinicamente significativo3-6. O transtorno da compulsão alimentar (TCA) é uma das influências a ser considerada1,4.

O TCA é o transtorno alimentar mais frequente e foi incluído na classificação diagnóstica americana (DSM-5)1. É caracterizado por episódios de compulsão alimentar, que consiste em comer, descontroladamente e em um curto intervalo de tempo, uma quantidade de comida superior a normal. Episódios ocorrem com uma frequência mínima de uma vez por semana nos últimos três meses1. Os achados na literatura divergem em relação ao real impacto clínico do TCA na perda ou manutenção ponderal após a CB1,7-9. No pós-operatório podem ocorrer outras alterações do comportamento alimentar, como o beliscamento (grazing)8,10, que consiste em comer pequenas porções de comida fora das refeições e episódios de compulsão subjetiva em que ocorre perda de controle, sem excesso na quantidade1,8. Kalarchian et al.11, ao avaliar de forma transversal 96 pacientes em pós-cirúrgico de dois a sete anos, obteve como resultado o maior reganho de peso no grupo com TCA. Em contrapartida, Conceição et al.9, ao avaliarem transversalmente 127 pacientes com pós-cirúrgico acima de dois anos, não evidenciaram impacto do TCA no reganho de peso.

O objetivo deste artigo é apresentar três casos clínicos de indivíduos que manifestaram diferentes desfechos relacionados ao peso corporal no pós-operatório tardio da CB e discutir a possível influência do TCA no reganho de peso pós-operatório.

RELATO DOS CASOS

Os casos selecionados são do Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica (PROCIBA) do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os pacientes aceitaram participar deste estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A seleção ocorreu de acordo com os critérios de tempo cirúrgico superior a dois anos, a alteração do comportamento alimentar e o desfecho do peso. A entrevista clínica foi realizada por psiquiatra, de forma estruturada, com os critérios da DSM-5. Os dados complementares foram estabelecidos por meio do prontuário médico.

O tempo mínimo estabelecido de tratamento clínico para obesidade foi de dois anos, com o uso de agentes antiobesidade e orientações quanto à mudança de estilo de vida (exercícios e alimentação). Posteriormente, os pacientes sem perda de peso adequada e controle das doenças clínicas associadas foram encaminhados para tratamento cirúrgico.

Caso 1

A. é uma mulher de 41 anos, casada, sem filhos, com ganho de peso a partir de seu casamento aos 20 anos. Evoluiu rapidamente para obesidade grau III (IMC ≥ 40 kg/m2)3 desenvolvendo diabetes tipo 2 (DM2) e hipertensão arterial sistêmica (HAS), com indicação para CB há 10 anos.

Submetida à CB há 8 anos, apresentava no pré-operatório 162 kg (IMC = 62,54 kg/m2). Por meio da cirurgia, a paciente apresentou resolução das comorbidades clínicas associadas e atingiu o menor peso pós-operatório de 95 kg em 36 meses. Entretanto, com 48 meses de pós-operatório, apresentou recidiva do peso, atingindo 117,9 kg. Foi necessário o retorno ao uso de anti-hipertensivo.

Seu padrão alimentar é caracterizado por episódios de compulsão alimentar com frequência de três vezes na semana, configurando um TCA leve (frequência de até quatro episódios por semana). O comportamento alimentar e reganho de peso geram sofrimento psíquico na paciente, com consequente prejuízo para as suas atividades cotidianas.

Caso 2

B. é um homem de 48 anos, divorciado, taxista, que faz referência ao seu início de sobrepeso na adolescência. Aos 18 anos apresentava obesidade grau III, que evoluiu com HAS grave e dificuldades de locomoção corporal. Essa condição associou-se a prejuízo para todas suas atividades de vida diária, inclusive para trabalhar. No encaminhamento ao PROCIBA, apresentava 230 kg.

Há sete anos foi realizada a CB. Apresentou no pré-operatório (3 anos) perda de 42 kg, com peso na cirurgia de 188 kg (IMC = 50 kg/m2). O menor peso pós-cirúrgico ocorreu aos 24 meses (132 kg). Nesse período, apresentou resolução das doenças clínicas e melhora para realizar suas atividades diárias. Após 24 meses, gradualmente atingiu 162 kg.

Em avaliação atual não apresenta TCA e belisca principalmente durante a madrugada, trabalhando. Seu beliscamento consiste em comer de forma contínua, fora das refeições, sem perda de controle ou culpa associada9. O reganho de peso não está associado a nenhum sofrimento psíquico e é atribuído ao abandono do programa nutricional.

Caso 3

C. é uma mulher de 44 anos, casada, do lar, dois filhos, que aos 24 anos iniciou seu ganho de peso. Rapidamente atingiu obesidade grau III com complicações (DM 2, HAS e apneia do sono). Encaminhada ao PROCIBA, permaneceu 1 ano em pré-operatório.

Foi submetida à CB há três anos, com peso pré-cirúrgico de 156 kg (IMC = 53,97 kg/m2), sem perda de peso pré-operatório. O menor peso pós-cirúrgico foi aos 12 meses (94 kg). Atualmente está com 95 kg. Obteve sucesso cirúrgico, com resolução das comorbidades e satisfação com o resultado.

Apresenta TCA leve, com episódios de compulsão (duas vezes por semana) de forma subjetiva (a quantidade de comida é pequena, mas acompanhada da perda de controle). Não apresentou reganho de peso, mas o TCA confere sofrimento psíquico e prejuízo à sua vida social.

A Tabela 1 apresenta a evolução ponderal associada aos parâmetros clínicos.

Tabela 1 Evolução ponderal associada aos parâmetros clínicos 

Peso na cirurgia (kg) Menor peso pós-cirurgia (kg) Reganho de peso kg (%) Tempo de cirurgia (anos) TCA pós-cirúrgico Técnica cirúrgica
Caso 1 162 95 22,9 (24,10) 8 Presente Bypass gástrico*
Caso 2 188 132 30 (22,72) 7 Ausente Bypass gástrico*
Caso 3 156 94 1 (1,06) 3 Presente Sleeve**

* Cirurgia do tipo mista restritiva e disabsortiva; ** Cirurgia do tipo restritiva.

DISCUSSÃO

A evolução de pacientes com obesidade severa para indicação de CB é cada vez mais frequente3. Os três casos apresentados caracterizam pacientes submetidos à CB, com perda de peso inicial adequada, posteriormente evoluindo com alteração do comportamento alimentar (TCA ou beliscamento) e dois casos com reganho de peso.

Os casos 1 e 3 retratam pacientes com TCA leve, sendo o primeiro com episódios de compulsão objetivos e o segundo com episódios de compulsão subjetivos. No caso 1 ocorreu reganho de peso após 48 meses, com impacto na saúde física e retorno ao uso de anti-hipertensivo. O caso 3, sem reganho de peso, com tempo cirúrgico inferior aos demais (três anos), foi incluído para caracterizar a importância da perda de controle alimentar9. As pacientes foram submetidas a técnicas cirúrgicas distintas (Bypass e Sleeve), as quais apresentam evolução de peso distintas, devido aos mecanismos hormonais e de saciedade envolvidos, com maior reganho no Sleeve12. Os casos apresentam desfecho distinto, com evolução ponderal pior no Bypass, com diferentes tempos cirúrgicos. Essa variável também pode influenciar o reganho de peso13. Quanto ao comportamento alimentar pós-operatório, a presença de TCA é apresentada como um possível fator de impacto para o desfecho do peso1,7.

O caso 2 descreve um paciente que apresentou no pré-operatório uma perda significativa de peso (18,26%), discutida na literatura como um fator de influência positivo para o sucesso cirúrgico13. Na evolução, aos 24 meses, com beliscamento (grazing)14 apresentou reganho de peso. Kofman et al.6, em uma amostra de 497 entrevistados pós-cirúrgico (três a sete anos), associaram recidiva de peso ao beliscamento.

Nos casos apresentados não foi descrito o padrão de comportamento alimentar pré-operatório, pois a entrevista psiquiátrica relatada neste artigo ocorreu no pós-operatório. Alguns autores sugerem aumento do risco de sintomas alimentares pós-operatório em pacientes com alterações alimentares no pré-operatório6. Não existe um consenso na literatura em relação aos critérios para reganho de peso pós-operatório, tais como pontos de corte distintos e uso de peso absoluto versus IMC, o que dificulta a comparação entre os estudos que investigaram a associação entre TCA e perda de peso pós-operatória1,4,7. Outras limitações metodológicas incluem a dificuldade de se avaliar um transtorno alimentar com as alterações anatômicas da CB e o uso de técnicas cirúrgicas distintas1. Além disso, como já discutido, o tempo de acompanhamento pós-operatório é importante na investigação da associação entre a presença de TCA e reganho de peso, com estudos de avaliação de longo prazo apresentando evidências mais consistentes10,12,15. De fato, os três casos apresentados exemplificam algumas das diversas variáveis clínicas e psicopatológicas que influenciam a manutenção de peso após a CB.

CONCLUSÕES

O TCA pós-cirúrgico é um diagnóstico prevalente nessa população. A avaliação desse e de outros fenômenos do comportamento alimentar e o impacto no paciente submetido à CB auxiliam o clínico em sua prática cotidiana.

REFERÊNCIAS

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