versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.1 São Paulo jan./fev. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20140012
A doença renal crônica (DRC) é definida como a presença de lesão renal que leva à perda lenta e progressiva da função renal.1
A associação entre DRC e perda auditiva foi descrita pela primeira vez em pacientes com síndrome de Alport.2 Contudo, semelhanças anatômicas, fisiológicas, patológicas e farmacológicas entre o néfron e a estria vascular da cóclea podem explicar essa associação em casos que não estão relacionados a síndromes ou doenças genéticas.3,4 A perda auditiva neurossensorial em altas frequências é o tipo mais comum de disacusia em pacientes com DRC e a lesão pode ser tanto coclear, como retrococlear.5-8
Contudo, a influência do método de tratamento da DRC sobre a função auditiva é inconclusiva,8 e a hipertensão arterial e o diabetes mellitus são frequentemente associados à DRC e à perda auditiva, entretanto, essas variáveis são pouco consideradas na análise dos achados audiológicos.
Comparamos as avaliações audiológicas entre pacientes com DRC submetidos a diferentes métodos de tratamento e os achados audiológicos corrigidos pela hipertensão arterial e pelo diabetes mellitus.
Este foi um estudo clínico transversal realizado em um centro de referência terciário. A população-alvo consistiu de pacientes de ambos os sexos com DRC com uma amostra não probabilística do tipo intencional.
Os critérios de exclusão foram: transplante renal, perda auditiva congênita ou infecções da orelha média, síndromes genéticas, história de exposição excessiva ao ruído, história de uso de medicamentos ototóxicos e idade superior a 60 anos. Essas informações foram confirmadas pela história clínica do paciente e pelas informações médicas.
Os pacientes foram divididos em grupos de acordocom o metódo de tratamento: hemodiálise (n = 35), diálise peritoneal (n = 15) e conservador (n = 51). Foram também incluídos 27 indivíduos saudáveis como grupo controle.
A avaliação audiológica consistiu em audiometria tonal limiar (ATL), emissões otoacústicas evocadas transientes (EOE-t) e potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE).
A ATL foi realizada em uma sala com tratamento acústico utilizando fones de ouvido TDH-39 e audiômetro Interacoustics AD229b. Os limiares audiométricos por via aérea de ambas as orelhas, foram obtidos nas frequências 250, 500, 1000, 2000, 3000, 4000, 6000 e 8000 Hz.
As medições das EOE-t foram feitas utilizando o sistema Otodynamics ILO288, USB II com configurações padrão. O nível de estímulo foi estabelecido à 84 dB SPL, e foi utilizada uma média de 260 estímulos. Valores de amplitude < 3 dB foram consideradas ausentes.9
Para análise do PEATE, o estímulo clique nas polaridades de rarefação foi apresentado pelo fone de inserção 3Ω, com intensidade de 90 dBnHL e uma taxa de apresentação de 20,1 c/s com um filtro passa-banda de 100 e 3000 Hz e média de 2000 estímulos, Interacoustics EP15 Eclipse. O PEATE foi registrado por meio de eletrodos descartáveis de ECG (MEDITRACETM 200), com pasta condutora para EEG (TEN 20), posicionados após limpeza da pele com gel abrasivo para ECG/EEG (NUPREP). O nível de impedância foi mantido entre 1 e 3KΩ para os eletrodos: o eletrodo ativo foi posicionado em Fz, o eletrodo de referência em M1 e M2 e o eletrodo de terra em Fpz.10,11
Possíveis variáveis de confusão incluiram: sexo, idade, raça, diagnóstico de hipertensão arterial (não/sim), diagnóstico de diabetes (não/sim), tempos de diagnóstico de hipertensão e diabetes mellitus, estádio de DRC (1/2/3/4), duração da DRC e do método de tratamento.
As variáveis desfechos foram: perda auditiva determinada pela média dos limiares audiométricos em 500, 1000, 2000 e 4000Hz > 25 dB, classificação de ausência nas EOE-t e resultados no PEATE.
A análise estatística foi realizada com o programa SPSS, versão v19.0. As variáveis não paramétricas são expressas como medianas (mínimo-máximo). O teste qui-quadrado foi utilizado para examinar as variáveis categóricas. As comparações entre os grupos foram feitas com um teste de Dunn.
Os resultados categóricos (perda auditiva e EOE-t ausente) foram comparados por meio da análise de regressão logística multivariada, utilizada para calcular as razões de chance (RCs) ajustadas e os intervalos de confiança (ICs) de 95% das associações ao tratamento da DRC. Os resultados numéricos (limiares auditivos audiométricos e resultados do PEATE) foram comparados por regressão linear com uma resposta gama, corrigidos pelo efeito da idade e da presença de hipertensão arterial. Valores de p< 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Botucatu (Protocolo nº 157/2007).
As características dos pacientes, as comorbidades, o estádio da DRC e outras informações da doença, estratificadas para o tratamento da DRC, estão listados na Tabela 1. Foi observada uma diferença estatística na hipertensão arterial, idade e duração da DRC.
Tabela 1 Comparação dos dados demográficos, comorbidades e características da doença renal crônica (DRC) de acordo com os grupos
Grupos | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Controle | Conservador | Diálise peritoneal | Hemodiálise | Valor de p | ||
Sexo masculino | 44,1 | 58,8 | 40,0 | 57,1 | 0,432a | |
Raça branca | 0,0 | 7,8 | 13,3 | 14,3 | 0,217a | |
Hipertensão arterial | 0,0a | 88,0b | 66,7b | 91,4b | < 0,001a | |
Diabetes mellitus | 0,0 | 28,0 | 20,0 | 37,1 | 0,006a | |
Estádio da DRC | ||||||
1 | 0,0 | 8,2 | 0,0 | 0,0 | ||
2 | 0,0 | 2,0 | 0,0 | 0,0 | ||
3 | 0,0 | 24,5 | 0,0 | 0,0 | ||
4 | 0,0 | 38,8 | 0,0 | 0,0 | ||
5 | 0,0 | 26,5 | 100,0 | 100,0 | ||
Idade (anos) | 31 (20-58)a | 51(7-60)b | 47 (22-57)ab | 53 (17-60)b | < 0,001b | |
Duração da hipertensão | - | 8 (0,4-3,2) | 5 (1,4-26,3) | 11,1 (0,6-3,2) | 0,202b | |
Duração do diabetes | - | 17,0 (0,6-3,1) | 22,6 (18,8-24,9) | 16,0 (4,2-25,0) | 0,207b | |
Duração da DRC | - | 2,4 (0,3-16,9)a | 4,2 (1,4-25,3)ab | 6,9 (0,6-21,8)b | 0,001b | |
Duração do tratamento da DRC | - | 2,5 (0,3-16,9) | 2,3 (0,2-5,8) | 2,5 (0,1-21,8) | 0,484b |
aTeste de qui-quadrado.
bTeste de Kruskal-Wallis.
Para as variáveis com p <0,05, o teste de Dunn foi realizado e seu resultado expresso em letras na mesma linha, que indicam quais grupos diferiram entre si.
Não encontramos diferença no percentual de perda auditiva entre os diferentes métodos de tratamento (p > 0,05). As correções dos fatores hipertensão e idade não foram necessárias nessa análise, pois a distribuição da perda auditiva nos diferentes métodos de tratamento foi homogênea. Contudo, em outras comparações essas correções foram necessárias (Tabela 2 e 3).
Tabela 2 Comparação dos limiares auditivos nas frequências de 250 Hz a 8 kHz na audiometria tonal limiar em cada orelha de acordo com os grupos
Grupos | |||||
---|---|---|---|---|---|
Orelha | Frequência | Controle | Conservador | Diálise peritoneal | Hemodiálise |
Direita | 250 Hz | 5 (0-15)a | 10 (5-80)b | 15 (0-40)ab | 15 (0-110)ab |
500 Hz | 5 (0-15)a | 10 (0-80)b | 15 (0-45)ab | 10 (0-110)ab | |
1 kHz | 5 (0-15)a | 10 (0-80)b | 10 (0-40)ab | 5 (0-120)ab | |
2 kHz | 5 (0-10)a | 10 (0-85)b | 10 (0-35)ab | 10 (0-120)ab | |
3 kHz | 5 (0-15)a | 15 (0-85)b | 10 (0-35)ab | 15 (0-120)ab | |
4 kHz | 5 (0-15)a | 25 (0-90)b | 20 (10-45)ab | 20 (0-120)ab | |
6 kHz | 10 (0-25)a | 25 (0-105)b | 20 (0-55)a | 25 (0-120)ab | |
8 kHz | 10 (0-15)a | 30 (0-95)b | 15 (0-65)a | 35 (0-120)ab | |
Esquerda | 250 Hz | 5 (0-15)a | 10 (5-100)b | 15 (0-60)b | 10 (0-110)ab |
500 Hz | 5 (0-15)a | 15 (0-120)b | 10 (0-60)b | 10 (0-105)ab | |
1 kHz | 5 (0-10)a | 10 (0-120)b | 10 (0-65)b | 10 (0-110)b | |
2 kHz | 5 (0-10)a | 10 (0-120)b | 10 (0-50)b | 10 (0-110)b | |
3 kHz | 5 (0-10)a | 15 (0-120)b | 15 (0-45)b | 15 (0-115)b | |
4 kHz | 10 (0-15)a | 20 (0-115)b | 10 (0-50)ab | 20 (0-120)b | |
6 kHz | 10 (0-15)a | 30 (0-100)b | 35 (5-90)b | 25 (0-120)b | |
8 kHz | 10 (0-20)a | 25 (0-120)ab | 25 (5-90)b | 30 (0-120)ab |
aOs valores são apresentados como mediana (mínimo-máximo).
bCorrigidos para idade e hipertensão.
As letras na mesma linha indicam quais grupos diferiram significativamente (p< 0,005) entre si no teste de Wald.
Tabela 3 Comparação dos parâmetros do potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE) em cada orelha de acordo com os grupos
PEATE | Grupos | ||||
---|---|---|---|---|---|
Orelha | Controle | Conservador | Diálise peritoneal | Hemodiálise | |
Direita | I | 1,37 (1,17-1,60)a | 1,40 (1,17-1,90)a | 1,40 (1,20-1,57)a | 1,47 (0,93-1,83)a |
III | 3,47 (3,23-3,90)a | 3,60 (3,27-4,07)a | 3,67 (3,37-3,90)a | 3,62 (3,20-4,53)a | |
V | 5,50 (5,27-5,93)a | 5,77 (5,20-6,60)a | 5,77 (5,27-6,23)a | 5,70 (5,13-6,60)a | |
I-III | 2,10 (1,83-2,43)a | 2,17 (1,77-2,73)a | 2,23 (2,00-2,43)a | 2,20 (1,73-2,70)a | |
III-V | 2,07 (1,50-2,40)ab | 2,13 (1,73-2,80)a | 2,10 (1,60-2,73)ab | 2,07 (1,87-2,53)b | |
I-V | 4,20 (3,77-4,67)a | 4,30 (3,80-5,43)a | 4,33 (3,97-4,97)a | 4,25 (3,77-4,77)a | |
Esquerda | I | 1,37 (1,20-1,53)a | 1,37 (1,17-1,87)a | 1,40 (1,17-1,57)a | 1,43 (1,17-2,00)a |
III | 3,49 (3,20-3,70)a | 3,57 (3,37-4,07)a | 3,62 (3,43-3,97)a | 3,67 (3,27-4,43)a | |
V | 5,47 (5,27-5,90)a | 5,73 (5,30-7,43)a | 5,69 (5,47-6,23)a | 5,80 (5,27-6,43)a | |
I-III | 2,12 (1,77-2,47)a | 2,20 (1,77-2,80)a | 2,25 (2,03-2,63)a | 2,27 (2,00-2,90)a | |
III-V | 2,07 (1,73-2,37)ab | 2,10 (1,83-3,67)a | 2,09 (1,67-2,30)ab | 2,09 (1,77-2,27)b | |
I-V | 4,12 (3,80-4,67)a | 4,33 (3,87-5,87)a | 4,35 (4,03-4,90)a | 4,33 (3,90-5,00)a |
aOs valores são apresentados como mediana (mínimo-máximo).
bCorrigidos para idade e hipertensão.
As letras na mesma linha indicam quais grupos diferiram significativamente (p< 0,005) entre si no teste de Wald.
O grupo conservador apresentou limiares auditivos piores em comparação ao grupo de controle em todas as frequências testadas. Em contrapartida, não foi observada nenhuma diferença significativa dos limiares audiométricos entre os grupos diálise peritoneal, hemodiálise e controle (Tabela 2).
O percentual de EOE-t ausentes entre os grupos não foi significativo (p > 0,05).
No PEATE, o grupo conservador apresentou aumento simétrico bilateral do intervalo III-V em comparação ao grupo hemodiálise, com uma diferença estatisticamente significativa (Tabela 3).
O presente estudo foi motivado pelos achados inclusivos da literatura com relação ao efeito método de tratamento da DRC - conservador, diálise peritoneal e hemodiálise - sobre a acuidade auditiva e pelas possíveis correlações de hipertensão arterial e diabetes,12,13 que são frequentemente associadas tanto à DRC como à perda auditiva.
Para isso, adotamos alguns critérios para reduzir a interferência de outros fatores com as alterações auditivas. Foram excluídos os indivíduos com mais de 60 anos, pois 25% dos indivíduos nessa faixa etária apresentam alterações nos exames auditivos devido à idade.8 Os indivíduos submetidos a transplante real foram excluídos por terem ingerido medicamentos imunossupressores pós-transplante, que podem exercem um efeito ototóxico.5,14 Além disso, o transplante, em geral, é a última alternativa de tratamento, e, consequentemente, os pacientes foram submetidos anteriormente a outros métodos, fato que dificulta a análise de seus efeitos.
Hipertensão arterial e diabetes mellitus são as principais causas ou consequências de DRC1 e, portanto, foram mantidas no estudo e levadas em consideração na análise dos dados.
Possíveis alterações na avaliação auditiva logo após diálise foram descritas por alguns autores, e esses achados poderiam ser atribuídos aos medicamentos utilizados ou às concentrações iônicas das células sensoriais.15,16 Contudo, grande parte dos estudos não mostra um efeito significativo de uma única sessão de diálise sobre a audição.15-18 Assim, evitamos avaliar os indivíduos nesse momento, mesmo porque pré e/ou pós-diálise os pacientes estão cansados e/ou estressados.
Quando o método de tratamento da DRC foi considerado, os subgrupos mostraram-se afetados da mesma forma pela perda auditiva, conforme relatado por Mancini et al.19 e Nikolopoulos et al.20 Porém, os resultados mostram que os limiares audiométricos no grupo conservador foram significativamente piores que os no grupo de controle. Acreditamos que o método conservador pode apresentar acúmulo de substâncias tóxicas no sangue, pois estas não são eliminadas de forma eficiente nem pelos rins, nem por diálise consequentemente prejudicando as funções auditivas.
O grupo menos afetado pela ausência das EOE-t foi o da diálise peritoneal, e o mais afetado foi o da hemodiálise, apesar dessa diferença não ser significativa, conforme também relatado por Ozturan & Lam15 e Naderpour et al.21 Apesar de a hemodiálise poder ser um método mais agressivo com relação à cóclea por possivelmente causar alterações iônicas bruscas na membrana celular,19,20,22,23 as mesmas não foram observadas nas EOE-t nesta pesquisa.
No PEATE, o grupo conservador diferiu do grupo hemodiálise, com aumento do intervalo III-V, sugerindo danos nas vias auditivas centrais.24
Concluímos que o tratamento conservador apresentou piores limiares audiométricos em todas as frequências testadas e PEATE anormal, reforçando que pacientes com doença renal crônica devem realizar uma avaliação auditiva completa para terem um melhor entendimento da doença e de seus efeitos sobre o sistema auditivo.