versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170011
A doença renal crônica (DRC) é atualmente um problema de Saúde Pública mundial que afeta indivíduos em sua idade produtiva e traz consequências negativas à qualidade de vida. Há evidências de que a DRC é um fator de risco independente para angina, infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca, acidente vascular encefálico, doença vascular periférica e arritmias.1,2
A incidência e prevalência da DRC estão aumentando e associam-se ao aumento da expectativa de vida da população e ao número de casos de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus (DM), as principais causas de DRC.3,4 Aproximadamente 13% da população adulta dos Estados Unidos tem DRC estágios 1 a 4.5 No Brasil, a incidência e prevalência da DRC não é conhecida, mas estima-se que mais de 100.000 brasileiros estão atualmente em diálise.6
A obesidade tem sido identificada como uma causa importante de doença renal, incluindo a DRC,7-9 com evidência causal em vários estudos.3,7,10-12 Devido à sua estreita associação com DM e HAS, o sobrepeso e a obesidade, que atingem proporções epidêmicas no mundo todo,13 são importantes fatores de risco para o desenvolvimento da DRC, especialmente em adultos. Aspectos dietéticos, incluindo alguns padrões alimentares, têm sido identificados como possíveis fatores de risco para DRC.14
A obesidade influencia o desenvolvimento da DRC, entre outros fatores, por predispor à nefropatia diabética, nefroesclerose hipertensiva e glomeruloesclerose segmentar e focal.3,8 Considerando a tendência crescente de excesso de peso, que já atingia metade da população brasileira em 2013, de acordo com resultados da pesquisa telefônica mais recente, VIGITEL,15 um aumento do número de casos de DRC é esperado. Em um estudo de coorte multicêntrico (ELSA-Brasil), que incluiu 15.105 adultos brasileiros, a taxa encontrada de sobrepeso foi alta, afetando 65,9% dos homens e 60,8% das mulheres.16
O presente artigo aborda aspectos fisiopatológicos e a associação entre obesidade e doença renal, discutindo os aspectos mais importantes e as evidências mais recentes desta associação.
O sobrepeso e a obesidade vêm apresentando incidência e prevalência crescentes no mundo todo. Nos Estados Unidos, estima-se que um terço dos adultos apresentam sobrepeso e obesidade.13 Vários estudos têm evidenciado associação significativa entre obesidade e doença renal.7,3,10-12 Atualmente, uma epidemia tanto de sobrepeso quanto de obesidade, bem como de DRC, pode ser observada, e estas condições podem estar associadas.13
Nos últimos 15 anos, um aumento contínuo do número de pacientes obesos em diálise tem sido observado.17 Também há evidência de que níveis elevados de creatinina sérica estão associados com aumento do risco de síndrome metabólica (SM).18 Além disso, há evidência de que a obesidade, especialmente quando presente nos anos iniciais da vida adulta, é um fator de risco para o desenvolvimento de carcinoma renal.8 Associação entre obesidade e nefrolitíase também tem sido descrita, particularmente nos cálculos de ácido úrico e oxalato de cálcio.8,9
A associação entre aumento da circunferência abdominal, hipertensão, glicemia de jejum elevada e dislipidemia constitui a chamada síndrome metabólica (SM), que está associada a aumento do risco cardiovascular.19-21 O papel da SM como causa de DRC tem sido ainda pouco discutido, apesar de que representa uma causa importante de HAS e DM, condições que respondem por mais de 70% dos casos de DRC.7 Indivíduos com SM têm um risco duas a três vezes maior de desenvolver microalbuminúria que aqueles sem SM.22
Há evidência de que todos os componentes da SM apresentam associação significativa com a DRC.11,12 Em um estudo longitudinal com 3437 indivíduos na Coreia do Sul, a DRC esteve associada com a SM, independentemente do peso corporal, e a obesidade esteve associada à DRC, independentemente da presença de SM.12 A circunferência abdominal e outros componentes da SM apresentam associação independente com DRC.3
Existe associação positiva entre o número de componentes da SM e o risco de DRC.22 A obesidade central parece ser mais importante que o índice de massa corporal (IMC) como fator de risco para doenças cardiovasculares e DRC.8 Várias alterações renais estão associadas a sobrepeso, obesidade e SM, como sumarizado na Tabela 1.
Tabela 1 Alterações renais associadas ao sobrepeso, obesidade e síndrome metabólica
Alterações hemodinâmicas/fisiológicas | Aumento do fluxo plasmático efetivo |
Aumento da TFG | |
Aumento da fração de filtração | |
Aumento da incidência e magnitude da albuminúria/proteinúria | |
Alterações anatômicas | Aumento do peso renal |
Aumento da superfície glomerular | |
Glomerulomegalia | |
Espessamento da membrana basal glomerular | |
Expansão da matriz mesangial | |
Proliferação celular mesangial | |
Hipertrofia de podócitos | |
Redução do número de podócitos por glomérulo | |
Aumento da largura dos processos podocitários | |
Patologia | Aumento da proporção de glomérulos com esclerose segmentar e global |
Glomerulopatia-associada à obesidade/GESF | |
Doença Renal Crônica/Glomerulopatias | Nefropatia diabética |
Nefrosclerose hipertensiva | |
GESF | |
Nefropatia por IgA | |
Outras complicações renais/urológicas | Maior incidência de carcinoma renal |
Maior incidência de nefrolitíase (por ácido úrico e oxalato de cálcio) | |
Maior incidência de complicações cirúrgicas e perda do enxerto no transplante renal | |
Doença Renal Crônica Terminal (DRCT) | Maior incidência e prevalência de DRCT |
* TFG: Taxa de Filtração Glomerular; GESF = Glomerulosclerose Segmentar e Global. Adaptado de Kopple & Feroze, 2011.
O sobrepeso e a obesidade estão associados a alterações renais hemodinâmicas, estruturais e histológicas, bem como desordens metabólicas e bioquímicas que predispõem à doença renal, mesmo com a função renal estando normal nos exames convencionais.8,23 Atualmente, sabe-se que o tecido adiposo não é apenas um reservatório de gordura, mas um tecido dinâmico envolvido na produção de "adipocinas", incluindo a leptina, adiponectina, fator de necrose tumoral-α, proteína quimiotática de monócitos-1, fator de transformação do crescimento-β e angiotensina-II.23
Uma série de eventos é desencadeada pela obesidade, incluindo resistência à insulina, intolerância à glicose, hiperlipidemia, aterosclerose e hipertensão, estando todos associados a aumento do risco cardiovascular. A associação entre DRC e dislipidemia também tem sido descrita, mas as causas ainda são desconhecidas. Resistência à insulina, presente na DRC, reduz a atividade da lípase lipoproteica, que pode estar implicada na fisiopatologia da dislipidemia na DRC.24
A obesidade leva ao aumento da reabsorção tubular renal de sódio, prejudicando a natriurese pressórica e causando expansão de volume devido à ação do sistema nervoso simpático (SNS) e sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA). Ocorre também compressão dos rins, especialmente quando a obesidade visceral está presente.3,7,8
O aumento na reabsorção de sódio e a consequente expansão de volume é um evento central no desenvolvimento da HAS associada à obesidade. Algumas evidências sugerem que o aumento na reabsorção de sódio ocorre em alguns segmentos além do túbulo proximal, possivelmente na alça de Henle.7 Há ainda um aumento no fluxo sanguíneo renal, na taxa de filtração glomerular (TFG) e na fração de filtração.
A hiperfiltração glomerular, associada ao aumento da pressão sanguínea e outras alterações metabólicas, como a resistência insulínica e DM, resultam em dano renal e redução da TFG.3,7,8 A ativação do SNS também contribui para a hipertensão associada à obesidade. Há evidência de que a desnervação renal reduz a retenção de sódio e a hipertensão da obesidade, sugerindo que a ativação do SNS induzida pela obesidade aumenta a pressão sanguínea sobretudo pela retenção de sódio, mais do que pela vasoconstrição.
Os mecanismos que levam à ativação do SNS na obesidade ainda não são completamente conhecidos, mas vários fatores têm sido propostos como desencadeadores, incluindo hiperinsulinemia, hiperleptinemia, aumento dos níveis de ácidos graxos e angiotensina II e alterações nos barorreceptores.3,7,8 O aumento dos níveis de leptina está associado à ativação do SNS e o seu efeito no aumento da pressão sanguínea também inclui inibição da síntese de óxido nítrico (vasodilatador potente).
Uma produção aumentada de endotelina-1 também tem sido observada em indivíduos obesos, o que contribui para a elevação da pressão arterial e consequente disfunção renal.3 Estudos recentes também evidenciam que os níveis séricos de endotelina-1 estão aumentados em pacientes com DRC e hipertensão intradialítica,25 sugerindo que esta substância desempenha um papel central na gênese da hipertensão na DRC e está possivelmente associada à hipertensão em pacientes obesos.
O acúmulo de tecido adiposo, especialmente adiposidade visceral, causa compressão renal e consequente aumento da pressão intrarrenal. O excesso de tecido adiposo retroperitoneal envolve os rins e penetra no hilo renal até a medula, causando compressão da medula renal e aumento da pressão hidrostática do fluido intersticial renal.
O excesso de gordura visceral também aumenta a pressão intra-abdominal, provocando mais compressão renal.3,8 A compressão física dos rins causa aumento da formação de matriz extracelular. Como os rins são envoltos por uma cápsula, que tem baixa complacência, o acúmulo de matriz extracelular pode ainda exacerbar a compressão intrarrenal e aumentar a pressão hidrostática do fluido intersticial.
O aumento da pressão intrarrenal, por sua vez, comprime a alça de Henle e os capilares peritubulares (vasa recta), o que reduz o fluxo pelos túbulos renais, levando à reabsorção tubular de sódio.3,7,8
Outro importante fator na fisiopatologia das complicações renais da obesidade é a chamada "lipotoxicidade", que se refere às desordens causadas pelo metabolismo exacerbado dos ácidos graxos em tecidos não adiposos, como músculo esquelético, ilhotas pancreáticas, miocárdio e possivelmente os rins.
Em estados de "supernutrição", o suprimento de ácidos graxos para estes tecidos excede as necessidades metabólicas, levando a um aumento compensatório da sua oxidação. O aumento do metabolismo dos ácidos graxos leva à produção e liberação de várias substâncias danosas às células, incluindo produtos da peroxidação lipídica e triglicérides, que podem induzir a apoptose e fibrose nos tecidos não adiposos.3,7,8
A obesidade está ainda associada à inflamação, uma vez que o aumento na produção de citocinas inflamatórias, como fator de necrose tumoral-α, interleucina-6 e proteína C reativa, pode ser observado, sendo chamadas de "adipocinas" por alguns autores devido à sua produção pelos adipócitos. A inflamação por si só é um fator de risco para perda de função renal.26,27Fibrose renal (intersticial e glomerular), em adição ao acúmulo irreversível de matriz extracelular no tecido renal, é associada à inflamação, processo que pode estar inter-relacionado às "adipocinas".3,8
Há ainda evidência de que a obesidade por si só leva ao aumento da excreção de albumina, que progressivamente aumenta com a gravidade da obesidade e, em casos raros, leva à síndrome nefrótica.7 A obesidade também tem sido apontada como um importante fator de risco para a progressão da doença renal em pacientes com glomerulopatias, incluindo a nefropatia por IgA.28
A glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) é o tipo histológico de doença glomerular mais frequentemente associada à obesidade.29 A GESF associada à obesidade tipicamente manifesta-se com síndrome nefrótica e perda progressiva da função renal. Os achados morfológicos incluem glomerulomegalia, predomínio da variante peri-hilar e fusão leve dos podócitos.29 Perda de peso, tanto por meio de dieta quanto por cirurgia bariátrica, leva à redução da proteinúria.8 A associação entre obesidade, SM e nefrolitíase tem sido observada em alguns estudos, principalmente devido ao aumento dos níveis séricos de ácido úrico em indivíduos obesos.30
Apesar de a obesidade representar um fator de risco importante para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, alguns estudos têm demonstrado que a obesidade é um fator de proteção em pacientes com DRC estágio final (em diálise),8,31 talvez porque a desnutrição neste mesmo grupo de pacientes associa-se com maior mortalidade quando comparada aos indivíduos obesos. Entretanto, mesmo nos pacientes em diálise, a obesidade visceral é associada com aumento do risco de calcificações coronarianas e eventos cardiovasculares adversos.17 A fisiopatologia da doença renal associada à obesidade está ilustrada na Figura 1.
A incidência de obesidade vem aumentando no mundo todo e é um importante fator de risco para doença renal. Há evidências de que a obesidade por si só pode levar ao desenvolvimento de doenças renais, incluindo a DRC, glomerulopatias e nefrolitíase. A fisiopatologia da doença renal associada à obesidade inclui alterações anatômicas e hemodinâmicas do sistema renal. Mais estudos são necessários para uma melhor compreensão da associação entre obesidade e doença renal.