versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 no.7 Rio de Janeiro 2017 Epub 27-Jul-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00006016
El estudio analiza estrategias nacionales de combate a la obesidad en Brasil, en el ámbito del Sistema Único de Salud brasileño (SUS) y del Sistema Nacional de Seguridad Alimentaria y Nutricional (SISAN). En base al método de análisis documental, se examinaron documentos gubernamentales producidos en los últimos 15 años, en las siguientes dimensiones: concepciones de obesidad, acciones propuestas y estrategias de coordinación entre sectores. En el ámbito del SUS, la obesidad es abordada como un factor de riesgo y como enfermedad, con enfoques individualizados y socioambientales, con el objetivo de alterar prácticas alimentarias y de actividad física. En el SISAN, es concebida también como un problema social, de inseguridad alimentaria y son propuestos nuevos modos de producir, comercializar y consumir alimentos para alterar las prácticas alimentarias de forma integrada. Las propuestas del SUS apuntan a un enfoque integrado e intrasectorial de la obesidad, y las del SISAN refuerzan la intersectorialidad desde una perspectiva ampliada que desafía las estructuras institucionales sectoriales vigentes.
Palabras-clave: Obesidad; Política Nutricional; Seguridad Alimentaria y Nutricional
A obesidade ganhou destaque na agenda pública internacional nas três últimas décadas, caracterizando-se como um evento de proporções globais e de prevalência crescente. No Brasil, o sobrepeso e a obesidade vêm aumentando em todas as faixas etárias e em ambos os sexos, em todos os níveis de renda, sendo a velocidade de crescimento mais expressiva na população com menor rendimento familiar 1. Em adultos, o excesso de peso e a obesidade atingiram 56,9% e 20,8% da população em 2013, respectivamente 2.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a obesidade como uma epidemia mundial condicionada principalmente pelo perfil alimentar e de atividade física 3. Sua crescente prevalência vem sendo atribuída a diversos processos biopsicossociais, em que o “ambiente” (político, econômico, social, cultural), e não apenas o indivíduo e suas escolhas, assume um lugar estratégico na análise do problema e nas propostas de intervenções 4,5,6,7,8. Contudo, parte dos desafios reside em compreender como esses múltiplos fatores interagem.
No Brasil, a obesidade torna-se objeto de políticas públicas nos últimos 15 anos, e o Ministério da Saúde, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), é o principal propositor de ações, seguindo a tendência internacional. Desde a década de 1990, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN, 1999), do Ministério da Saúde, definiu diretrizes para organizar as ações de prevenção e tratamento da obesidade no SUS 9, sendo revisada em 2012, abordando a temática de forma mais contundente 10. No ano seguinte, o Ministério da Saúde estabeleceu a linha de cuidado para obesidade como parte da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas 11,12.
Em 2006, no Brasil, foi instituído o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que organiza ações implementadas por diferentes ministérios, abarcando desde a produção até o consumo de alimentos. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), as Conferências Nacionais e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) integram o SISAN. Entre 2011 e 2014, a CAISAN protagonizou a formulação do plano intersetorial de combate à obesidade, que subsidiou uma estratégia intersetorial que sistematiza recomendações para estados e municípios 13,14.
As ações propostas demandam uma articulação dentro do SUS (intrassetorial) e entre o conjunto de ministérios que integram o SISAN (intersetorial). O diálogo entre instituições com práticas distintas implica um processo político e decisório complexo, atravessado por múltiplos conflitos de interesses 15,16. Medidas que estimulem indivíduos a modificarem, por si sós, as suas práticas alimentares e de atividade física podem ser mais facilmente adotadas pelos governos, pois se alinham aos interesses e às estratégias de marketing da indústria de alimentos 17,18. Por outro lado, medidas que visam às transformações nos “ambientes obesogênicos”, como a regulamentação da publicidade de alimentos, podem afetar os interesses comerciais 15. Ambas são igualmente importantes, mas sua operacionalização impõe desafios políticos e de gestão distintos 19.
Diante da diversidade de concepções, de soluções possíveis e de interesses em disputa, os governos disseminam determinados tipos de intervenção com base em justificativas e argumentos específicos que operam como estratégias de convencimento. O discurso governamental, simultaneamente técnico e político, pode ser apropriado de forma distinta pelos sujeitos envolvidos na ação política 18. Desse modo, no âmbito do debate científico, questiona-se: “Por que a obesidade é um problema e para quem?”, “Quais são as estratégias governamentais para o seu enfrentamento?”, “Em que medida elas favorecem a intra e a intersetorialidade?” 17.
Os estudos sobre obesidade no Brasil têm abordado o tema na ótica da epidemiologia 20, avaliam o impacto de medidas específicas 6 e apresentam um panorama das ações que vêm sendo implementadas principalmente pelo setor saúde 21,22. A abordagem do tema na ótica da segurança alimentar e nutricional é incipiente, bem como a análise das concepções que pautam as políticas públicas. Portanto, o presente estudo analisou como a obesidade vem sendo abordada em políticas do SUS e do SISAN, incluindo conceitos, indicadores, estratégias de ação e de articulação institucional, especialmente relacionadas com alimentação e nutrição.
O estudo fundamentou-se em referenciais do campo da análise de políticas que concebem a política como processo e prática, expressão de conflitos e convergências de poder, interesses e ideias 23,24. Como parte do processo político, os documentos governamentais podem ser considerados práticas sociais que disseminam concepções, são apropriados politicamente pelos sujeitos, produzem sentido e, assim, configuram a própria realidade 25,26.
Embora a política não se restrinja ao enunciado formal 27, os documentos de governo são relevantes para a análise de políticas, pois expressam estratégias de governamentalidade 25 e refletem acordos possíveis em um dado momento 28.
O estudo pautou-se no método de análise documental. Foram selecionados documentos que abordam a obesidade como questão de políticas públicas e marcam a inserção do tema na agenda governamental brasileira nos últimos 15 anos. Foram pesquisados os sítios eletrônicos do Ministério da Saúde (http://portalsaude.saude.gov.br/) e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (http://www.mds.gov.br) e selecionadas as “macroestratégias” (que definem ações para o SUS e SISAN), segundo os seguintes descritores: obesidade, doenças crônicas, promoção da saúde e alimentação e nutrição. Foram incluídas normativas específicas para a rede escolar, considerando a relevância desse espaço para o enfrentamento da obesidade infantil.
Foram analisados 13 documentos produzidos no âmbito do SUS 9,10,11,12,29,30,31,32,33,34,35,36,37 e cinco do SISAN 13,14,38,39,40, em diálogo com a literatura acadêmica, com base nas seguintes dimensões analíticas fundamentadas em referenciais de análise documental 25,26,27,28: concepções sobre obesidade e seus condicionantes; intervenções propostas; princípio da intersetorialidade e argumentos utilizados.
As questões nutricionais compõem a agenda pública de diferentes governos no Brasil desde a década de 1930, e a obesidade passa a ser concebida como um “problema de saúde pública” nas últimas quatro décadas, justificado por estudos populacionais que indicam sua crescente prevalência 15,21,41,42. No entanto, somente nos últimos 15 anos assumiu prioridade nas políticas públicas, diante da sua magnitude e da associação com doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), especialmente as cardiovasculares 43.
A OMS define a obesidade como condição crônica caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura que traz repercussões à saúde. Portanto, é categorizada, na 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), no item de doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas 3. No Brasil, diferentes documentos do governo seguem a definição da OMS e a concebem simultaneamente como doença e fator de risco para outras doenças, como condição crônica multifatorial complexa 10,11,29,30,33,34,35 e, ainda, como manifestação da insegurança alimentar e nutricional 11,33. Quanto aos fatores condicionantes da obesidade, nos documentos, destacam-se a alimentação rica em gorduras e açúcares e o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados, associados à inatividade física, ainda que se reconheça a complexidade dos processos subjacentes 10,29,30,33,34,35.
O diagnóstico do sobrepeso/obesidade vem sendo realizado por meio do índice de massa corporal (IMC), calculado como a razão da massa corporal pela estatura ao quadrado, concebido inicialmente para uso em adultos, pela sua associação com risco de adoecer e morrer, reiterando a obesidade como fator de risco especialmente para as DCNT 44,45. O IMC também é usado em crianças e adolescentes 46, idosos 47 e gestantes 48. No Brasil, os critérios diagnósticos estabelecidos pela OMS foram incorporados à vigilância alimentar e nutricional no âmbito do SUS 9. Não obstante seu emprego disseminado internacionalmente, o IMC não mede a composição corporal 45, portanto, parece haver inconsistência quanto a sua aplicabilidade para diagnosticar uma doença caracterizada por acúmulo de gordura.
Os dados de estudos populacionais vêm demonstrando alta especificidade, mas baixa sensibilidade do IMC no diagnóstico de obesidade 20,49. Evidências apontam para a necessidade de se desenvolver curvas dos componentes da composição corporal para o diagnóstico clínico e epidemiológico do estado nutricional 50. No entanto, seu uso como critério para identificar sobrepeso/obesidade como fator de risco para DCNT, e não de diagnóstico nutricional per se, ainda parece ser adequado, particularmente em serviços de saúde.
No âmbito do SUS, em 2006, a publicação de um Caderno de Atenção Básica específico sobre o tema enfatizou aspectos individuais tanto na configuração do problema quanto no seu enfrentamento, mas também sugeriu estratégias coletivas de promoção da alimentação saudável 29. Outros documentos do Ministério da Saúde reforçam a abordagem assistencial e individualizada 10,11,29,30. Em 2014, um novo Caderno de Atenção Básica detalhou a construção da linha de cuidado para obesidade no âmbito da atenção básica e, secundariamente, destacou ações de promoção da saúde 30.
A análise dos Cadernos de Atenção Básica e dos documentos publicados nesse intervalo de tempo indica uma preocupação crescente do Ministério da Saúde em organizar ações de enfrentamento da obesidade na atenção básica 11,29,30. Desde 2007 foram publicadas portarias que pautam a organização da linha de cuidado e estabelecem critérios para o serviço de assistência de alta complexidade para os pacientes com sobrepeso e obesidade, incluindo a garantia do tratamento cirúrgico 11. Ainda que o recurso à cirurgia possa reforçar o enfoque patológico e curativo, essa alternativa de tratamento passou a ser um direito no âmbito do SUS.
Sem desconsiderar a importância de medidas individualizadas, reconhece-se que determinados segmentos que conformam o complexo industrial da saúde têm forte peso de influência no processo decisório governamental 51. Portanto, a medicalização da obesidade deve ser analisada à luz desse contexto de disputas de interesses em torno dos recursos públicos.
Ampliar a concepção restrita da obesidade como doença e propor medidas ambientais têm se tornado um imperativo diante da baixa resolutividade das intervenções focadas apenas no corpo e no atendimento individualizado 19. Estratégias que ultrapassem o âmbito de ação do setor saúde são necessárias, dadas as dificuldades em universalizar medidas individualizadas (como intervenções cirúrgicas), além dos limites que os próprios indivíduos enfrentam para modificar suas “escolhas” pessoais (alimentares ou de prática de atividade física) em contextos adversos à adoção de práticas saudáveis. Nesse sentido, a abordagem da obesidade na perspectiva da promoção da saúde contribui para pensar o problema em uma ótica referenciada não apenas na doença e no tratamento.
A construção histórica da obesidade como problema de saúde pública no Brasil tem sido influenciada pelo debate sobre promoção da saúde, como identificado nas duas edições da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNaPS) 31,32. Ainda que não tratem diretamente da obesidade, tais políticas consideram a alimentação adequada e saudável e as práticas corporais e de atividade física como prioritárias, abordando-as em uma perspectiva que transcende, mas não exclui ações individualizadas.
A PNaPS destaca a relação desses dois pilares com a promoção da saúde, a segurança alimentar e nutricional, a redução da pobreza, a inclusão social e a garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável. Reforça a importância de se considerar a autonomia e a singularidade dos sujeitos, das coletividades e dos territórios, uma vez que as escolhas individuais estão “determinadas” pelos contextos sociais, econômicos, políticos e culturais 31,32.
Diferentes abordagens de promoção da saúde podem ser identificadas na PNaPS como expressão de seu caráter híbrido: uma que a concebe como um conjunto de atividades direcionadas à transformação dos comportamentos individuais, e outra que valoriza modificações nos “determinantes sociais do processo saúde-doença” e nas condições de saúde. Nessa última perspectiva, a saúde é concebida como produto de um conjunto amplo de fatores, incluindo alimentação e nutrição, em consonância com a definição abrangente da saúde como direito, estabelecida na 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986 52. No entanto, essa abordagem ampliada da promoção da saúde também tem fomentado, ao menos, dois tipos de propostas distintas: aquelas pautadas no paradigma da patologia, da prevenção da doença, sustentadas nos modelos epidemiológicos de fatores de risco, e outras que operam com base na abordagem socioambiental, voltadas para a construção de ambientes saudáveis e disseminação de processos universais que favoreçam a saúde 53,54. Essas vertentes têm influenciado as abordagens sobre obesidade que indicam concepções igualmente distintas sobre o problema e as formas de enfrentá-la.
Historicamente, a temática central na agenda da área técnica de alimentação e nutrição foi a má alimentação como condicionante fundamental dos diferentes tipos de deficiências nutricionais. O avanço da obesidade impôs novos desafios para a saúde pública 15,21,41,42. A perspectiva de articular políticas em torno de uma “agenda única de nutrição”, com enfoque na promoção da alimentação adequada e saudável, foi justificada com base na associação entre má alimentação, obesidade e DCNT 21. Assim, a promoção da alimentação adequada e saudável foi considerada estratégica para enfrentar, simultaneamente, deficiências nutricionais e obesidade 10.
Para além do conceito de alimentação saudável, alguns documentos da saúde passaram a adotar o conceito de alimentação adequada e saudável, dialogando com a política de segurança alimentar e nutricional, que se refere à adequação cultural, social, econômica da alimentação, e não apenas nutricional 10,32,33,34,35. A promoção da alimentação adequada e saudável é um dos componentes da promoção da saúde e abarca medidas de incentivo, apoio e proteção, que visam a difundir informações, facilitar e proteger a adesão a práticas alimentares saudáveis 10,31,32, como a rotulagem nutricional obrigatória, os guias alimentares e a regulamentação da publicidade de alimentos 10,34,35.
Quanto à regulamentação da publicidade de alimentos, ainda não houve êxito, a despeito dos esforços da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma vez que esse tipo de medida se opõe aos interesses da indústria de produtos processados e ultraprocessados, que tem forte poder de influência nas decisões políticas 18,55. As medidas menos conflitivas são os acordos voluntários para redução dos teores de sal, gorduras saturadas e açúcar dos processados, previstos no Plano Nacional para Enfrentamento das DCNT, que propõem “parcerias” com a indústria de alimentos e sugerem que voluntariamente sejam evitadas as propagandas de alimentos não saudáveis 33, o que é bastante improvável.
O guia alimenntar de 2006 destaca o risco da ingestão de alimentos com elevada densidade energética e altos teores de gorduras, açúcar e sal na configuração da obesidade e DCNT. O documento já pautava o conceito de segurança alimentar e nutricional e recomendava medidas destinadas a afetar o “ambiente obesogênico”, como a regulamentação da publicidade de alimentos 34. O guia alimentar de 2014 reconfigura o setor saúde na abordagem da questão alimentar, pois amplia o diálogo entre SUS e SISAN, considera a promoção da alimentação adequada e saudável como parte da construção de um sistema alimentar “social e ambientalmente sustentável” e destaca condicionantes da alimentação, desde a produção até o consumo. Suas recomendações baseiam-se em uma classificação de alimentos segundo o grau de processamento 56, sugerindo que se limite o consumo de alimentos processados e se evite o consumo de ultraprocessados 35. Essas novas recomendações introduzem um forte elemento de confronto com a indústria de alimentos, como sugerem alguns enunciados do documento 35, tais como: “alimentos ultraprocessados tendem a afetar negativamente a cultura, a vida social e o ambiente” (p. 45); “evite alimentos ultraprocessados” (p. 50). Além disso, o guia alimentar pode qualificar as medidas voltadas para mudanças nas decisões individuais ao considerar que “recomendações sobre alimentação devem levar em conta o impacto das formas de produção e distribuição dos alimentos sobre a justiça social e a integridade do ambiente” 35 (p. 18). Portanto, o documento promove uma inflexão na abordagem das questões alimentares no âmbito do SUS.
Em termos de propostas intersetoriais para o ambiente escolar, destacam-se o Programa Saúde na Escola, que envolve os Ministérios da Educação e da Saúde e prevê ações de avaliação antropométrica, promoção da segurança alimentar e nutricional, de práticas corporais e de atividade física, que podem ser estratégicas no enfrentamento da obesidade 36, e a Portaria Interministerial nº 1.010/200637, que institui diretrizes para a alimentação saudável nas escolas da rede pública e privada.
A análise histórica das políticas de alimentação e nutrição indica que determinados períodos de descontinuidade e mudanças são estratégicos para a compreensão acerca de certos princípios que se destacam em uma dada conjuntura 15,21,39,40. Tais inflexões contribuem para identificar quando a obesidade passa a ser reconhecida como questão relevante para as políticas públicas e quando a intersetorialidade passa a ser incorporada às políticas que tratam do tema.
Identifica-se uma inflexão em 1999 com a publicação da PNAN, que reposiciona a questão da alimentação e nutrição na agenda do SUS 9,57 e fortalece o debate sobre a segurança alimentar e nutricional, dentro e fora do setor saúde, quando o tema não era prioridade de governo 58. A PNAN, embora enfatizasse as deficiências nutricionais, já apontava para a necessidade de intervenção sobre as DCNT, incluindo a obesidade 9. Mesmo com recorte setorial, sua primeira diretriz refere-se ao “estímulo às ações intersetoriais com vistas ao acesso universal aos alimentos” 9. A PNAN de 2011, embora reforce o aspecto setorial, define como diretriz a cooperação e articulação para a segurança alimentar e nutricional 10.
Outra inflexão se estabelece com as propostas de reorganização do SUS por meio das redes de atenção à saúde, o que fortalece a perspectiva de articulação intrasetorial e indica, ainda que de forma pontual, a relevância do princípio da intersetorialidade nas ações de promoção da saúde e de prevenção de DCNT 12. A linha de cuidado para o sobrepeso e a obesidade estabelece como diretriz a articulação de ações intersetoriais para promoção da saúde, visando a apoiar indivíduos e comunidades em prol da adoção de modos de vida saudáveis 11. Nos Cadernos de Atenção Básica, embora a intersetorialidade seja enunciada, a abordagem da obesidade no âmbito da saúde é reforçada em uma perspectiva de ações mais individualizadas 29,30.
O Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das DCNT no Brasil, elaborado e coordenado pelo Ministério da Saúde, prevê a cooperação entre diferentes setores em uma ótica multissetorial (e não intersetorial), uma vez que apenas reúne a contribuição de cada setor para o enfrentamento das DCNT, sem indicar como integrá-las 33.
A PNaPS é a que mais reforça as noções de integralidade e intrassetorialidade em articulação com os demais princípios do SUS, especialmente em sua recente edição 29. A intersetorialidade é concebida como processo de articulação de saberes, potencialidades e experiências de sujeitos, grupos e setores na construção de intervenções compartilhadas, estabelecendo vínculos, corresponsabilidade e cogestão para objetivos comuns, visando à construção e à articulação de redes cooperativas e resolutivas 32,59. Percebe-se, na nova versão, o uso de termos como “promover hábitos saudáveis”, “articular” e “mobilizar”, diferentes da PNaPS 2006, que privilegiava o termo “prevenção” e a abordagem da doença 31,32.
As propostas intersetoriais de enfrentamento da obesidade indicam uma nova inflexão na concepção do problema. Tal mudança foi impulsionada pela consolidação da política de segurança alimentar e nutricional 38, quando a CAISAN formulou o Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade 13 que subsidiou a Estratégia Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade: Recomendações para Estados e Municípios (EIPCO) 14. Sua implementação é complexa, pois propõe que as políticas de segurança alimentar e nutricional e alimentação e nutrição vinculem a garantia do acesso aos alimentos com a adequação de toda a cadeia alimentar e reforcem o papel do Estado na proteção à saúde por meio de funções regulatórias e mediadoras das políticas públicas setoriais.
A EIPCO pode ser considerada produto de uma nova institucionalidade e de um novo modo de operar a política, em parte relacionado com o SISAN na perspectiva de integração de ações e da intersetorialidade 13,14. O deslocamento de pauta para estados e municípios tanto pode significar um movimento de aproximação com as diferentes realidades locais de gestão, como refletir dificuldades enfrentadas para organizar uma estratégia articulada, conjunta e intersetorial em nível nacional.
Ao extrapolar a esfera da saúde pública, a obesidade passa a ser reconhecida também como um problema social, relacionado, nos termos dos próprios documentos, ao sistema alimentar vigente, com repercussões na saúde e na qualidade de vida. Como expressões dessa inflexão, destacam-se: a ampliação da explicação sobre os fatores condicionantes; o deslocamento do foco das “soluções” para os modos de produzir, abastecer, comercializar e acessar os alimentos; os avanços na perspectiva da alimentação e nutrição como direito; o fortalecimento dos espaços institucionais para a intersetorialidade, bem como das bases legais da segurança alimentar e nutricional visando, inclusive, a potencializar a intervenção do Estado nas práticas comerciais 13,14.
Destaca-se, ainda, como produto dessa inflexão, notadamente alicerçada nos princípios da segurança alimentar e nutricional, a formulação do Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas, que objetiva promover um campo comum de reflexão e orientação sobre as práticas educativas, e propõe que as ações sejam consideradas pelos diversos setores que atuam nos processos de produção, distribuição, abastecimento e consumo de alimentos 40.
O enfrentamento da obesidade pelo poder público no Brasil foi historicamente vinculado ao setor saúde e recentemente vem sendo reconfigurado a partir de novas abordagens protagonizadas por instâncias do SISAN. Destacam-se inflexões ao longo dessa trajetória. A primeira refere-se ao contexto em que a subnutrição e a fome eram o principal foco de intervenção 15,21,41,42, dando lugar a um crescente reconhecimento, principalmente a partir dos anos 1990, da obesidade como problema prioritário de saúde pública, justificado por estudos epidemiológicos que indicavam aumento expressivo da sua prevalência e associação com DCNT 1.
Essa abordagem é fundamental para o enfrentamento de um problema que, de fato, se particulariza e se concretiza no indivíduo. No entanto, tem favorecido intervenções biomédicas tradicionalmente restritas à dimensão biológica e focadas no tratamento de uma doença já instalada que, por si só, não têm sido efetivas na redução de sua prevalência. Consultas individuais ou em grupo, cirurgia bariátrica, intervenções medicamentosas, mesmo que pudessem ser massificadas, não seriam suficientes para afetar os principais condicionantes do problema. A cirurgia bariátrica, por exemplo, é específica para um tipo de obesidade, que não é a mais prevalente e pode ocasionar complicações relevantes 60. Além disso, a adesão ao tratamento individualizado é baixa, em grande medida porque os indivíduos continuam sendo submetidos às mesmas pressões ambientais que concorrem de forma desigual com a motivação pessoal para modificar práticas alimentares e comportamentais 61,62.
Portanto, medidas individuais exigem um esforço maior do que é possível operar frente ao ambiente obesogênico 4,63. Ademais, muitas vezes, consultas e ações educativas são fortemente prescritivas e não favorecem uma transformação sustentável de práticas saudáveis 64. Ações sobre o ambiente podem criar oportunidades para que os indivíduos adotem práticas mais saudáveis 4,8,63, além de facilitar sua adesão aos processos terapêuticos. Portanto, não cabe polarizar o debate em torno de medidas individuais e ambientais, e sim compreender a complexidade e os desafios para o enfrentamento do problema. Se, em alguma medida, a concepção da obesidade como doença pode ter favorecido intervenções mais individualizadas, isso não significa que a abordagem biomédica não seja importante, inclusive, para subsidiar políticas públicas. Os estudos que indicam os efeitos biológicos do consumo de alimentos ultraprocessados vêm subsidiando o debate sobre medidas regulatórias, como ocorreu no caso do controle do tabaco 19,65,66.
As análises disciplinares (e não interdisciplinares) sobre o problema e a fragmentação institucional podem ter contribuído para que as ações de prevenção e controle da obesidade fossem implementadas de forma isolada, inclusive favorecendo a baixa resolutividade das medidas individuais. Nesse sentido, os esforços de construção da intrassetorialidade e da intersetorialidade são essenciais, pois podem contribuir para uma maior integração e efetividade do conjunto de medidas de prevenção e controle. No âmbito do SUS, as políticas de promoção da saúde, em uma dada abordagem, e o recente movimento de construção das redes de atenção à saúde favoreceram esses princípios. A proposta das redes de atenção à saúde, que inclui a linha de cuidado da obesidade, consolida-se em um contexto de valorização crescente das ações da atenção básica, de organização da rede de serviços e sinaliza a importância da intrassetorialidade no SUS 67.
Quanto às repercussões dos princípios da intersetorialidade e da intrassetorialidade nas estratégias propostas, diferentes perspectivas emergem no âmbito da promoção da saúde e influenciam a própria concepção de promoção da alimentação adequada e saudável. Nesse contexto, o entendimento mais restrito da obesidade como uma doença e\ou como fator de risco para DCNT, considerando o uso do IMC no diagnóstico e na delimitação entre “doentes” e “não doentes”, pode ter implicações nas medidas propostas. Esse entendimento pode favorecer ações preventivas ou curativas focadas nos doentes ou naqueles com alto risco de adoecer e morrer. Tais ações tendem a ser implementadas, principalmente, pelo setor saúde e podem não ser tão efetivas quanto medidas universais de promoção da saúde 68. Nesse sentido, determinadas propostas de promoção da saúde aqui analisadas tendem a ser “setoriais” por serem pautadas na prevenção da doença “obesidade” e de seus fatores de risco e voltadas principalmente para mudanças na alimentação e na prática de atividade física, a partir de esforços individuais. Por outro lado, aquelas norteadas pela abordagem socioambiental da saúde, visando a garantir ambientes e contextos de vida saudáveis, podem, em tese, favorecer propostas de articulação intersetorial por meio de medidas como a garantia do acesso à alimentação adequada de saudável nos locais de trabalho, escolas e a regulamentação da publicidade de alimentos.
No conjunto de políticas analisadas, foram observadas tanto propostas do setor saúde, que privilegiam medidas individualizadas e socioambientais, quanto as do SISAN, que enfatizam transformações na forma como os alimentos são produzidos, no seu abastecimento e comercialização. Esta última abordagem abarca vários espaços institucionais do governo federal e, portanto, complexifica o processo político, ao exigir maior articulação entre setores e ampliar os pontos potenciais de conflito. O fato de a obesidade ser objeto da política intersetorial de segurança alimentar e nutricional no Brasil pode favorecer a gestão dos múltiplos processos que condicionam o problema e afetar também os termos das próprias políticas setoriais.
Nesse sentido, o setor saúde, que tradicionalmente focou a abordagem da obesidade na dimensão do consumo alimentar, vem interagindo em uma via de mão dupla, com as propostas que deslocam o foco das soluções para o conjunto de políticas do SISAN. Ainda que a intersetorialidade estivesse presente nas políticas de saúde, tanto na PNAN quanto na PNaPS, no âmbito do SISAN passou a ser um princípio estruturante e identitário de uma política pública 15. Dessa forma, a abordagem da obesidade no âmbito da EIPCO estabelece conexões com os processos de produção, abastecimento, comercialização, acesso e consumo dos alimentos 14. Essa perspectiva fortalece determinadas ações que compõem a “agenda única” da nutrição no SUS 21, especialmente aquelas que visam a enfrentar a obesidade e as carências nutricionais por meio da promoção da alimentação adequada e saudável, que conflitam com as soluções medicalizantes e com os interesses da indústria de alimentos, de sementes, de suplementos e de biofortificação. Os reflexos da abordagem da segurança alimentar e nutricional na saúde podem ser identificados nos próprios termos do novo guia alimentar, nos novos significados sobre alimentação adequada e saudável, bem como no reconhecimento da obesidade como uma questão de insegurança alimentar.
A proposta de reorganização dos serviços de saúde na perspectiva de rede e de linhas de cuidado favorece uma abordagem mais integrada e intrassetorial da obesidade, e a intersetorialidade expressa nas propostas do SISAN pode contribuir para fortalecer a perspectiva socioambiental pautada na conformação de sistemas alimentares que promovam a alimentação adequada e saudável de forma mais sustentável.
Cabe indicar que o escopo deste estudo está limitado aos documentos oficiais e a uma seleção assistemática da literatura acadêmica analisada, o que pode afetar o aprofundamento de determinados conceitos abordados, como a intersetorialidade. Contudo, oferece uma visão panorâmica e articulada de concepções e propostas de ação que pretendem afetar o problema da obesidade sob diferentes óticas. Há que se compreender melhor como os diversos fatores condicionantes interagem na configuração da obesidade (em uma ótica interdisciplinar). Ressalta-se o desafio de implementar medidas de caráter regulatório e fiscal que são fundamentais para a transformação das práticas alimentares e de atividade física, e ainda os desafios inscritos nas próprias estruturas institucionais, setoriais, vigentes nos diferentes níveis de governo, que ainda dificultam o planejamento, o financiamento e a implementação de estratégias integradas que afetem o sistema alimentar.