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Óbitos no trânsito urbano: qualificação da informação e caracterização de grupos vulneráveis

Óbitos no trânsito urbano: qualificação da informação e caracterização de grupos vulneráveis

Autores:

Lúcia Maria Miana Mattos Paixão,
Eliane Dias Gontijo,
Sueli Aparecida Mingoti,
Dário Alves da Silva Costa,
Amélia Augusta de Lima Friche,
Waleska Teixeira Caiaffa

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.31 supl.1 Rio de Janeiro nov. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00081314

Introdução

Os acidentes de trânsito representam um relevante problema global de saúde pública e estão associados a fatores comportamentais, segurança dos veículos e precariedade do espaço urbano. Configuram-se como importantes causas de mortalidade e morbidade devido ao número crescente de veículos, mudanças no estilo de vida e comportamentos de risco na população geral 1.

Estima-se, por ano, no mundo, que 50 milhões de pessoas sofram lesões e sequelas decorrentes de acidentes de trânsito, com 1,3 milhão de óbitos. Cerca de 62% dos óbitos ocorrem em dez países; o Brasil ocupa a quinta posição, precedido pela China, Índia, Rússia e Estados Unidos 2.

Estudos epidemiológicos têm demonstrado que os acidentes de trânsito apresentam distribuição diferente para sexo, idade, grupos sociais e áreas de risco, revelando situações de vulnerabilidade de pessoas e de lugar 3,4. Assim, os acidentes devem ser abordados na perspectiva da Saúde Urbana, que integra aspectos da saúde dos habitantes da urbe indissociáveis dos atributos do ambiente construído 5.

O aumento da motorização, especialmente nos países em desenvolvimento, não acompanhado de adequada infraestrutura viária e eficiente penalização das infrações, contribui para o incremento dos acidentes de trânsito, configurando o chamado caos urbano, de solução complexa, que demanda intervenções direcionadas à construção de um ambiente de tráfego seguro 6,7.

No Brasil, o número de mortos e feridos graves ultrapassa 150 mil vítimas/ano, com gastos anuais girando em torno de 28 bilhões de Reais, além de altos custos sociais decorrentes da assistência, perdas materiais, despesas previdenciárias e do imensurável sofrimento das vítimas e seus familiares 7,8. Desde o modelo holístico sugerido por Haddon Jr. 9 , que propõe que as lesões decorrentes dos acidentes de trânsito resultam da interação entre pessoas (fatores do hospedeiro), energia (fatores dos veículos) e o ambiente, não é mais possível admitir a dicotomia entre o planejamento da saúde e o urbano. As análises epidemiológicas com a caracterização dos acidentes e do perfil das vítimas deveriam ser usadas no planejamento do ambiente urbano, numa abordagem interdisciplinar e intersetorial para a organização do espaço urbano, como estratégia efetiva na prevenção de acidentes, propiciando um ambiente seguro, especialmente para os grupos mais vulneráveis 5.

A implantação do Código de Trânsito Brasileiro em 1998 e as leis complementares, o controle municipal do trânsito, a melhoria da segurança dos veículos e a fiscalização eletrônica, apesar de importantes iniciativas, ainda são insuficientes para reduzir, de modo significativo, as mortes e as incapacidades 8. A gravidade desse cenário, entre outros fatores, levou o Ministério da Saúde a implantar, em 2001, a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências 10 e criar, em 2006, o Projeto de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), que tem como um dos objetivos a caracterização dos atendimentos de emergência por violências e acidentes para conhecer a distribuição, magnitude e tendência desses agravos 11.

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 2009, proclamou o período de 2011 a 2020 como a Década de Ação pela Segurança no Trânsito e instou os países, como o Brasil, a atingirem a meta de estabilizar e reduzir as mortes causadas pelo trânsito, por meio da implementação de um plano de ação voltado para cinco pilares de intervenção: fortalecimento da gestão; investimento em infraestrutura viária; segurança veicular; comportamento e segurança dos usuários do trânsito; além do atendimento pré-hospitalar e hospitalar ao trauma. Assim, em 2010, foi implantado o Projeto Vida no Trânsito – designação do Projeto Road Safety in 10 countries – RS10 (OMS/OPAS), no Brasil. A iniciativa, coordenada pelo Ministério da Saúde, busca o fortalecimento de políticas de prevenção de lesões e mortes no trânsito por meio da qualificação das informações, planejamento, monitoramento e avaliação das intervenções 12.

A prevenção dos acidentes de trânsito demanda o conhecimento das ocorrências, do perfil das vítimas, dos meios de transporte envolvidos e da localização das áreas de risco 13, e é dificultada pela dispersão dos dados em diversos sistemas de informação. Nesse sentido, o relacionamento das fontes revela a real magnitude dos acidentes 14,15.

Como verificado no Projeto Vida no Trânsito no Município de Belo Horizonte, Minas Gerais, divergências têm sido observadas nas análises independentes dos diferentes sistemas de informações, devido às deficiências atribuídas aos registros do trânsito, que incluem, quase exclusivamente, os óbitos ocorridos no local do acidente, e ao fato dos registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) não possibilitarem, muitas vezes, a identificação do acidente de trânsito como causa básica do óbito.

Portanto, a abordagem dos acidentes de trânsito na perspectiva da saúde urbana associada à integração e qualificação das informações disponíveis, ao permitir a comparação das diversas fontes 14,15, contribui para a implantação, desenvolvimento e monitoramento de políticas integradas de prevenção destes acidentes.

Assumindo a hipótese de que a qualificação das informações poderá revelar o real perfil de vulnerabilidade das vítimas fatais, este estudo tem como objetivo integrar dois sistemas de informação gerados em setores organizativos distintos da cidade, respectivamente o órgão responsável pelo transporte e trânsito e a Secretaria Municipal de Saúde, construindo uma base de dados relacionada de óbitos por acidentes de trânsito na cidade de Belo Horizonte, com vistas à caracterização do perfil das vítimas e identificação de vulnerabilidades entre usuários das vias urbanas.

Métodos

Estudo realizado com base no cruzamento de dois sistemas de informação: Sistema de Informação da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A – BHTRANS (BH10) e o SIM, descritos a seguir, resultando em um banco de dados denominado BH10-SIM. Esse banco relacionado incluiu as vítimas de acidentes de trânsito ocorridos nos limites do município no ano de 2010, que evoluíram para óbito e foram identificadas no SIM, nos anos de 2010 e 2011. As vítimas fatais de acidentes ocorridos nas rodovias dentro do perímetro urbano também foram consideradas na análise.

Procedimentos para o relacionamento dos bancos BH10 e SIM

O BH10 inclui os acidentes de trânsito com vítimas, registrados pela autoridade policial local nos boletins de ocorrência (BO), contendo as seguintes informações: tipo de acidente, circunstâncias, localização, indivíduos envolvidos, se feridos ou mortos.

O SIM é um sistema de informação baseado nas declarações de óbito, compondo o sistema de vigilância epidemiológica do país. As secretarias municipais de saúde são responsáveis pelo registro dos óbitos ocorridos na cidade, complementados pela retroalimentação do sistema, com os dados de óbitos de residentes, ocorridos em outros locais. A declaração de óbito (DO) por acidentes de trânsito, como uma das causas externas, deve ser emitida pelo Instituto Médico Legal (IML) e registrada no SIM 16.

Em 2010, o BH10 registrou 37.550 envolvidos em acidentes de trânsito (feridos ou não) e o SIM 41.080 registros de todos os óbitos ocorridos em Belo Horizonte, entre 1o de janeiro de 2010 e 31 dezembro de 2011.

As informações dos dois sistemas foram, então, integradas pelo programa Link Plus (Centers for Disease Control and Prevention; http://www.cdc.gov/cancer/npcr/tools/registryplus/lp.htm), utilizando-se como variáveis-chave nome completo das vítimas e idade. O software permite o cruzamento probabilístico de dados, usando-se sistemas fonéticos de codificação. Além do método exato de correspondência, identifica similaridade parcial, aproximada ou duvidosa, evitando que diferenças ortográficas ou de digitação interfiram na identificação dos pares.

O cruzamento inicial identificou 1.072 pares. A seguir, foi feita a verificação manual para a seleção final dos pares verdadeiros, por meio da identificação de vítimas de ocorrência de acidentes de trânsito que faleceram no local ou evoluíram para óbito após o acidente ocorrido no período estudado. Foram utilizadas as seguintes informações na comparação dos pares: nome, data de nascimento ou idade, intervalo entre data do acidente e óbito e causa básica. Resultaram no banco relacionado 311 registros de vítimas fatais de acidentes de trânsito ocorridos no Município de Belo Horizonte em 2010. Cinco registros foram excluídos por incompletude das informações, totalizando 306 para a análise (Figura 1).

Figura 1 Fluxograma do cruzamento dos bancos de dados BH10 e SIM. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010. 

Comparação dos bancos originais com o banco relacionado (BH10-SIM)

Para comparar o banco SIM 2010 com o banco relacionado (n = 306) foram selecionados, no primeiro, os registros dos óbitos por acidentes de trânsito, códigos V01 a V89, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). A codificação foi agrupada em sete categorias denominadas “usuários da via”: pedestre, ocupante de bicicleta, ocupante de motocicleta, ocupante de automóvel, ocupante de veículo pesado, outros e não especificado.

Para comparar o banco relacionado com o BH10, que incluía todos os envolvidos em acidentes com vítimas, foram selecionadas as vítimas registradas como fatais.

Os bancos foram comparados quanto ao sexo, faixa etária e usuários da via.

Variáveis do banco relacionado

As variáveis que compuseram o banco relacionado foram: usuário da via (pedestre ocupante de bicicleta, de motocicleta, de automóvel, de veículo pesado); idade (em anos); faixa etária (≤ 17, 18-29, 30-39, 40-49, 50-59 e ≥ 60 anos); sexo (masculino feminino); cor da pele (branca, parda/preta); escolaridade (≤ 3, 4-7, 8-11 e 12 e mais anos de estudos); estado civil (casado, solteiro/separado, viúvo); e local da ocorrência do óbito (via pública, hospital).

A variável “intervalo”, que correspondia ao período decorrido entre o acidente e o óbito, foi criada e agrupada em três categorias: menos de 24 horas; 1 a 29 dias; 30 dias ou mais.

A variável operacionalmente denominada “local e tempo do óbito” integrou as informações do local de ocorrência do óbito e do intervalo de tempo entre o acidente e o óbito, sendo categorizada em: óbito no local do acidente (em via pública), no hospital em menos de 24 horas, entre 1 e 29 dias e em 30 dias ou mais.

Análise dos dados

A análise foi realizada em etapas. A primeira constou da comparação entre bancos e, a segunda, da análise multivariada do banco relacionado. Utilizou-se, para a primeira etapa, a comparação das proporções das variáveis usuários da via, faixa etária e sexo dos dois bancos originais com o banco relacionado, por meio do teste estatístico χ2 (qui-quadrado).

Para o cálculo das taxas de mortalidade específicas por faixa etária e sexo de residentes em Belo Horizonte, utilizou-se como denominador os dados populacionais do Censo Demográfico de 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; http://www.censo2010.ibge.gov.br/painel/?nivel=mn, acessado em 15/Jan/2013).

Finalmente, usou-se a regressão de Poisson 17,18 para modelar o comportamento do número médio de ocorrências de óbitos no período de tempo estudado, como uma função de variáveis referentes ao perfil das vítimas e circunstâncias dos acidentes, incluindo local e intervalo de tempo entre o óbito e o acidente.

Baseando-se na análise univariada, variáveis com significância estatística igual ou inferior a 20% foram incluídas no modelo multivariado. A variável cor da pele (p = 0,23) foi incluída pela relevância epidemiológica.

O modelo multivariado final foi composto pela introdução gradual das variáveis previamente selecionadas, partindo da variável “usuário da via”, para identificar o modelo que se mostrasse adequado e parcimonioso. Utilizou-se o teste estatístico Omnibus 19 para verificar a adequação dos modelos e o teste estatístico de Wald para a avaliação da significância das variáveis. Foi estimado o valor esperado do número médio de óbitos como uma função das variáveis explicativas. Os coeficientes do modelo de regressão (eB = exponencial do coeficiente de regressão) traduzem a razão do número médio de óbitos (RM – conhecida na literatura como ratio rate) em cada categoria, quando comparada à categoria de referência, mantidas constantes as demais variáveis. Admitiu-se um nível de significância estatística de 5% e o intervalo de 95% de confiança.

Foram utilizados os softwares R 2.8.1 (The R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria; http://www.r-project.org) e SPSS 17.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) na análise de dados.

O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (pareceres no 158.014/2012 e no 182.177/2012).

Resultados

Dos bancos originais e do banco relacionado

No banco de dados BH10 constavam 247 óbitos provenientes dos BO referentes às mortes ocorridas no perímetro urbano de Belo Horizonte, no ano de 2010. Já no SIM, foram identificados 625 óbitos por acidentes de trânsito. Esses correspondiam aos acidentes ocorridos, no mesmo ano, tanto em Belo Horizonte quanto em outra localidade e cujos óbitos teriam ocorrido no município, de acordo com o protocolo do SIM.

O relacionamento dos bancos de dados (denominado BH10-SIM) resultou em 306 registros, representando os óbitos devidos a acidentes de trânsito que ocorreram no Município de Belo Horizonte, no ano de 2010.

Foi observado um sub-registro de 24%, equivalente a 59 óbitos identificados no banco relacionado e não registrados nos boletins de ocorrência (BH10).

Comparação dos bancos de dados originais com o banco relacionado (BH10-SIM)

A comparação do banco relacionado (BH10-SIM) com o BH10 mostrou diferença significativa na distribuição etária (p = 0,001), sendo que o relacionamento dos bancos revelou um maior percentual de óbitos em indivíduos com 60 anos e mais. Por outro lado, comparando o banco relacionado com o SIM foi observada uma diferente distribuição na categoria usuários da via (p = 0,015), com maior proporção de vítimas fatais ocupantes de motocicleta e pedestres, além de menor proporção de ocupantes de automóvel no banco BH10-SIM (Tabela 1).

Tabela 1 Comparação da distribuição dos óbitos por acidentes de trânsito por faixa etária, sexo e usuários da via, segundo SIM, BH10 e BH10-SIM. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010. 

SIM (n = 625) BH10-SIM (n = 306) BH10 (n = 247)
n % Valor de p * n % Valor de p * n %
Faixa etária (anos)
≤ 17 40 6,40 12 3,92 9 3,64
18-29 170 27,20 99 32,35 82 33,20
30-39 115 18,40 57 18,63 48 19,43
40-49 84 13,44 39 12,75 29 11,74
50-59 87 13,92 35 11,44 25 10,12
≥ 60 129 20,64 64 20,92 38 15,38
Ignorado 0 0,00 0 0,00 16 6,48
BH10-SIM vs. SIM 0,392
BH10-SIM vs. BH10 0,001
Sexo
Masculino 499 79,84 250 81,70 203 82,19
Feminino 126 20,16 56 18,30 43 17,41
Ignorado 0 0,00 0 0,00 1 0,40
BH10-SIM vs. SIM 0,559
BH10-SIM vs. BH10 0,521
Usuários da via
Pedestre 249 39,84 148 48,37 108 43,72
Ocupante de automóvel 143 22,88 45 14,71 50 20,24
Ocupante de bicicleta 19 3,04 9 2,94 3 1,21
Ocupante de motocicleta 156 24,96 96 31,37 76 30,77
Ocupante de veículo pesado 18 2,88 8 2,61 6 2,43
Ocupante de outros veículos ** 8 1,28 0 0,00 1 0,40
Não especificado ** 32 5,12 0 0,00 3 1,21
BH10-SIM vs. SIM 0,015
BH10-SIM vs. BH10 0,291

BH10: Sistema de Informação da Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte S/A; BH10-SIM: cruzamento dos bancos BH10 e SIM; SIM: Sistema de Informações sobre Mortalidade.

* Teste estatístico χ2;

** Excluídos da análise.

Quanto ao sexo, o BH10-SIM apresentou semelhante distribuição dos óbitos entre homens e mulheres, tanto na comparação com o BH10 quanto com o SIM (p > 0,05).

Taxas de mortalidade por causa específica, idade e sexo

Dos 306 óbitos ocorridos em Belo Horizonte, 238 (78%) eram de residentes no município, resultando em taxa de mortalidade por acidente de trânsito no perímetro urbano de 10,02/100.000 habitantes; mais elevada entre os homens (17,06) em relação às mulheres (3,80). Maior risco de morrer por acidentes de trânsito, por cem mil habitantes, foi identificado entre os idosos (18,36) e os jovens de 18 a 29 anos (15,03) no município.

Análise das características das vítimas fatais

Cerca de 82% eram do sexo masculino, mais da metade adultos jovens, 60% pardos/pretos e 68% solteiros ou separados. Quase metade (47%) das vítimas fatais apresentava menos de oito anos de estudos. Os idosos representaram 21% das vítimas (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição dos óbitos e resultados da regressão de Poisson univariada, segundo as variáveis demográficas, usuários da via, local e tempo entre o acidente de trânsito e o óbito. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010. 

Variáveis n (306) % B Valor de p RM IC95%
Usuários da via
Pedestre 149 48,69 0,102 0,419 1,110 0,865-1,416
Ocupante de motocicleta 95 31,05 0,519 0,004 1,680 1,180-2,391
Ocupante de automóvel 45 14,71 0,09 0,501 1,090 0,843-1,420
Ocupante de bicicleta 9 2,94 -0,134 0,249 0,880 0,697-1,098
Veículos pesados 8 2,61 - 1,000 -
Sexo
Masculino 250 81,7 0,252 0,003 1,287 1,091-1,517
Feminino 56 18,3 - 1,000 -
Faixa etária (anos)
≥ 60 64 20,92 0,267 < 0,001 1,306 1,137-1,500
50-59 35 11,44 0,26 0,008 1,296 1,071-1,569
40-49 39 12,75 0,198 0,065 1,219 0,988-1,504
30-39 57 18,63 0,236 0,003 1,267 1,083-1,482
18-29 99 32,35 0,606 < 0,001 1,833 1,415-2,376
≤ 17 12 3,92 - 1,000 -
Raça/Cor
Preta/Parda 178 58,17 0,118 0,235 1,126 0,925-1,370
Branca 128 41,83 - 1,000 -
Escolaridade (anos de estudos)
≤ 3 54 17,65 0,038 0,695 1,038 0,860-1,253
4-7 89 29,08 0,163 0,117 1,177 0,960-1,441
8-11 124 40,52 0,297 0,02 1,345 1,047-1,727
≥ 12 39 12,75 - 1,000 -
Estado civil
Viúvo 17 5,56 0,079 0,63 1,082 0,785-1,489
Solteiro/Separado 208 67,97 0,213 0,02 1,238 1,034-1,481
Casado 81 26,47 0,000 1,000 -
Local
Via pública 125 40,85 0,202 0,084 1,224 0,973-1,538
Hospital 181 59,15 - 1,000 -
Intervalo *
< 24 horas 204 66,67 0,291 0,003 1,337 1,107-1,615
1-29 dias 81 26,47 0,167 0,085 1,182 0,977-1,429
30 dias ou mais 21 6,86 - 1,000 -
Local e tempo do óbito **
Via Pública 125 40,85 0,359 0,004 1,432 1,122-1,825
Hospital (< 24 horas) 79 25,82 0,192 0,055 1,211 0,995-1,474
Hospital (1-29 dias) 81 26,47 0,167 0,085 1,182 0,977-1,429
Hospital (30 dias ou mais) 21 6,86 - 1,000 -

IC95%: intervalo de 95% de confiança; RM: razão de médias.

* Período de tempo decorrido entre o acidente de trabalho e o óbito;

** Variável criada com base nas variáveis local e intervalo.

Pedestres (49%) e ocupantes de motocicleta (31%) totalizaram 80% dos óbitos, sinalizando a vulnerabilidade destes grupos. Ocupantes de automóvel corresponderam a 15% e óbitos de ocupantes de veículos pesados e de bicicleta corresponderam a menos de 3% cada grupo (Tabela 2).

A análise conjunta do local e tempo entre o acidente e a morte revelou 125 (41%) óbitos na via pública e 79 (26%) que faleceram no hospital com menos de um dia de internação, somando 204 (67%) óbitos dentro das primeiras 24 horas. Dentre as 181 vítimas que foram encaminhadas aos hospitais e posteriormente faleceram, a gravidade da lesão foi evidenciada pelo percentual elevado de óbitos dentro de 24 horas (44%). Somente 7% dos óbitos ocorreram 30 dias ou mais após o acidente de trânsito.

Nas três principais categorias de “usuários da via”, observou-se que entre os 45 ocupantes de automóvel, 82% morreram nas primeiras 24 horas, sendo 60% no próprio local do acidente, ou seja, na via pública. Dos 95 óbitos de ocupantes de motocicletas, 74% ocorreram nas primeiras 24 horas após o acidentes de trânsito, e quase a metade (48%) ocorreu em via pública. Apesar de 60% dos pedestres terem falecido nas primeiras 24 horas, nesse grupo, cerca de um terço dos óbitos ocorreu entre um e 29 dias (31%). Mais da metade (53%) dos ocupantes de bicicletas e de veículos pesados faleceram durante a internação hospitalar (Figura 2).

Figura 2 Distribuição percentual dos óbitos por usuário da via e local e tempo entre o acidente e o óbito (2a), usuário da via e faixa etária (2b), faixa etária e local e tempo (2c), local e tempo e usuário da via (2d). Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 2010. 

Em relação aos 125 óbitos ocorridos em via pública, pedestres e ocupantes de motocicleta apresentaram porcentuais semelhantes, 36 e 37%, respectivamente. No entanto, no hospital, independentemente do período pós-acidentes de trânsito, pedestre foi sempre o grupo predominante (Figura 2).

A distribuição etária diferiu quanto à variável “usuários da via”, local e o intervalo entre o acidente de trânsito e óbito. Dentre os pedestres, observou-se que 40% eram indivíduos de 60 anos e mais. Por outro lado, entre os ocupantes de motocicletas (59%) ou de automóvel (49%) e nos demais grupos (41%) predominaram os jovens de 18 a 29 anos (Figura 2).

Na faixa etária de 18 a 29 anos, quase a metade das mortes (48,5%) ocorreu na via pública, totalizando 72 (73%) óbitos nas primeiras 24 horas. Por outro lado, menores de 18 anos e idosos (60 anos e mais), apresentaram porcentuais menores de mortes no local do acidente (inferiores a 20%). Entretanto, somente 8% dos menores de 18 anos faleceram nas 24 horas de internação hospitalar, enquanto para os idosos, este percentual alcançou 38% (Figura 2).

O perfil das vítimas mostrou diferenças na estratificação dos óbitos segundo a variável “usuário da via”. Entre os óbitos de pedestres, 72% eram homens, com idade média e mediana de 54 anos (DP = 22,3), 61% pardos/pretos, 46% casados ou viúvos, 68% com baixa escolaridade (< 8 anos) (dados não apresentados).

Os ocupantes de motocicleta eram homens (97%), com idade média de 28,9 anos (DP = 9,3) e mediana de 26 anos, pardos/pretos (54%), solteiros ou separados (78%) e escolaridade entre 8 e 11 anos (60%). Homens (76%) permaneceram como as principais vítimas fatais entre os ocupantes de automóvel, com idade média de 33,2 anos (DP = 12,9) e mediana de 29 anos, pardos/pretos (58%) e solteiros ou separados (80%), sendo o grupo com maior percentual de escolaridade acima de 11 anos (29%) (dados não apresentados).

Das 56 mulheres que evoluíram para o óbito, 75% eram pedestres e apenas três eram ocupantes de motocicleta. Mais de 60% delas morreram nas primeiras 24 horas, sendo que 32% no próprio local do acidente. Entre os homens, 43% eram pedestres, 37% ocupantes de motocicleta e 41% morreram na via pública (dados não apresentados).

A análise univariada da regressão de Poisson (Tabela 2) indica que o valor esperado do número médio de óbitos foi: (a) entre ocupantes de motocicleta, 68% maior que o valor esperado para ocupantes de veículos pesados; (b) entre homens, 29% maior em relação às mulheres; e (c) nas faixas etárias de 18 a 29 e 60 ou mais anos, 83,3% e 30,6% maiores, respectivamente, quando comparados aos menores de 18 anos. Em relação ao estado civil, para solteiros ou separados o número médio esperado de óbitos foi 23,8% maior que o esperado para os casados. Cor da pele e escolaridade não mostraram diferenças significativas (p > 0,05) em relação às respectivas categorias de referência.

Observou-se um aumento de 43% (RM: 1.43; IC95%: 1,12-1,83) no número médio esperado de mortes no local do acidente em relação ao hospital e de 34% (RM: 1,34; IC95%: 1,11-1,62) dentro das 24 horas, quando comparado ao intervalo de 30 dias ou mais entre o acidente e o óbito.

No modelo multivariado final (Tabela 3) observou-se um maior número médio esperado de óbitos entre os ocupantes de motocicleta (RM: 1,81; IC95%: 1,29- 2,55) e pedestres (RM: 1,32; IC95%: 1,02-1,71) em relação aos ocupantes de veículos pesados, após ajuste por sexo, estado civil, faixa etária e “local e tempo do óbito”. Mantendo-se as demais variáveis constantes, o número médio esperado de mortes foi 24% maior entre homens do que entre as mulheres (RM: 1,24; IC95%: 1,079-1,44); 27% maior entre solteiros ou separados do que entre os casados (RM: 1,27; IC95%: 1,07-1,53); 75% e 60% mais elevados entre jovens de 18 a 29 anos e idosos, respectivamente (RM: 1,75; IC95%: 1,33-2,29 para o primeiro e RM: 1,60; IC95%: 1,24-2,06, para o segundo), quando comparados aos menores de 18 anos.

Tabela 3 Modelo multivariado final da regressão de Poisson. 

Variáveis B Valor de p * RM IC95%
Intercepto -0,909 < 0,001 0,403 0,248-0,654
Usuários da via
Pedestre 0,278 0,035 1,321 1,020-1,711
Ocupante de motocicleta 0,594 0,001 1,812 1,286-2,552
Ocupante de automóvel 0,118 0,359 1,125 0,875-1,448
Ocupante de bicicleta -0,113 0,396 0,893 0,687-1,160
Veículos pesados - 1,000
Sexo
Masculino 0,214 0,005 1,238 1,065-1,439
Feminino - 1,000
Faixa etária (anos)
≥ 60 0,468 0,000 1,597 1,240-2,057
50-59 0,326 0,016 1,385 1,062-1,805
40-49 0,312 0,047 1,366 1,004-1,858
30-39 0,218 0,060 1,243 0,991-1,560
18-29 0,557 0,000 1,746 1,331-2,291
≤ 17 - 1,000
Estado civil
Viúvo 0,202 0,262 1,224 0,860-1,743
Solteiro/Separado 0,245 0,008 1,277 1,065-1,532
Casado - 1,000
Local e tempo do óbito **
Via pública 0,331 0,003 1,392 1,115-1,737
Hospital (< 24 horas) 0,093 0,348 1,097 0,904-1,331
Hospital (1-29 dias) 0,178 0,510 1,195 0,999-1,430
Hospital (30 dias ou mais) - 1,000

IC95%: intervalo de 95% de confiança; RM: razão de médias.

* Teste de Wald;

** Variável criada com base nas variáveis local e intervalo.

O valor esperado do número médio de óbitos em via pública foi 39% (RM: 1,39; IC95%:1,12-1,74) maior em relação ao óbito hospitalar em 30 dias ou mais. O modelo final mostrou-se estatisticamente significativo pelo teste estatístico Omnibus (p = 0,022).

Por ter sido identificada forte associação entre faixa etária e grupo de usuário da via (p < 0,01), testou-se a inclusão do fator interação no modelo. Entretanto, o modelo com o termo de interação não foi estatisticamente significativo (teste Omnibus, p = 0,266).

Discussão

O estudo mostra a relevância dos acidentes de trânsito como problema de saúde pública, chamando a atenção para a gravidade da ocorrência em homens jovens, solteiros ou separados, ocupantes de motocicletas e idosos, enquanto pedestres, caracterizando-os como de alta vulnerabilidade. A análise descortina a violência no trânsito traduzida pela maior ocorrência dos óbitos no local do evento e nas primeiras 24 horas, sugerindo que este tipo de violência representa, juntamente com os homicídios, grande ameaça à vida dos brasileiros 6. Os achados referentes ao predomínio de idosos (40%) entre os pedestres e de jovens nas demais categorias de usuários são descritos por outros estudos 3,8 e reforçam a ideia de que o uso do espaço urbano nas cidades brasileiras, caracterizadas por grandes aglomerações populacionais, vem gerando desigualdades injustas no trânsito, privilegiando os automóveis e o transporte individual, em detrimento da mobilidade do pedestre e de usuários de transporte coletivo, representados principalmente por indivíduos de classes sociais menos favorecidas, demandando ações que possam intervir na redução das iniquidades sociais 20.

Ao se privilegiar, por concepção estrutural, as demandas por fluidez nos deslocamentos por automóveis, em detrimento da segurança do sistema como um todo 21,22, geram-se iniquidades, aqui evidenciadas pelos dois grupos etários de maior vulnerabilidade. Por um lado, os homens jovens, de 18 a 29 anos e a sua relação com o uso de motocicleta como meio de transporte ou de trabalho 3,15,23,24. Por outro, os idosos, cujo número médio de óbitos foi 60% maior em relação aos menores de 18 anos, em geral decorrentes de atropelamento, estabelecem precária relação com um espaço urbano que, por sua vez, não privilegia sua limitada capacidade funcional, especialmente da marcha e visual. Essa difícil relação é traduzida nos tempos semafóricos que levam à grande tempo de espera e são insuficientes para uma travessia segura. Soma-se o menor entendimento da sinalização e da lógica do fluxo de veículos, em especial nos cruzamentos, atribuídos, em grande parte, à baixa escolaridade observada nesse grupo 3,8.

O menor número de mortes de ocupantes de bicicleta, cuja vulnerabilidade foi apontada em estudos descritivos 3,25, pode ser explicado por este não ser considerado ainda como meio de transporte local usual, provavelmente, além de questões culturais, devido ao relevo montanhoso da cidade.

Entre mulheres vítimas fatais de acidentes, o maior número de pedestres (75%) ou ocupantes de automóvel (20%) também confirmam dados da literatura 3.

A gravidade dos acidentes na área urbana foi evidenciada pela relativa elevada ocorrência dos óbitos no local do acidente (39%) ou nas primeiras 24 horas (67%), em relação às mortes em 30 dias ou mais, resultado também consonante com outros estudos 1,15. Além disso, o elevado percentual de mortes de ocupantes de automóvel na via, que não estão entre os usuários da via mais vulneráveis, aponta para a gravidade dos acidentes de trânsito e reforça a importância de intervenções nos limites de velocidade urbana.

Esses achados ampliam as discussões relativas à melhoria das assistências pré-hospitalar e hospitalar, essencial para a redução da letalidade dos acidentes de trânsito, tendo a medicina de urgência estabelecido o tempo de 60 minutos até o atendimento como um importante fator prognóstico das lesões 21.

Apesar de o estudo não ter identificado associação entre o número de óbitos e a cor da pele e a escolaridade (p > 0,05), o encontro de cerca de 60% de indivíduos pardos/pretos entre as vítimas, percentual superior ao encontrado na população local e a baixa escolaridade, presente em 47% dos mortos, sugere o envolvimento de fatores sociais, possíveis marcadores de posição social e econômica das vítimas, com raízes nos determinantes sociais da saúde 26,27. Esses resultados corroboram aqueles do Inquérito VIVA, que encontrou percentual similar para as capitais do país 28.

O ambiente urbano de países com desigualdades sociais, decorrente do crescimento desordenado e da falta de controle da atividade econômica, cuja gestão vem sendo retardada pelas pressões da globalização 26,29, condiciona e estimula o uso de motocicletas como meio de transporte e de trabalho. Essa tendência crescente é observada em vários países 1,30 e no Brasil 27,28,31, onde as vendas de motocicletas foram multiplicadas por doze enquanto que as de automóveis aumentaram quatro vezes, entre 1992 e 2007. A aquisição desses veículos tem sido maior entre os grupos de menor renda, influenciada pelas condições de financiamento, estimulada pelo Governo Federal 22 e pela criação de novos postos de trabalho terceirizados, como motoboys e mototaxistas 32. Enquanto a rapidez, como um ideário nas práticas sociais e econômicas, é alcançada no trânsito com a utilização da motocicleta, a exposição e vulnerabilidade de seu ocupante se avolumam, e o risco é assumido com naturalidade, face ao perfil desse grupo, caracterizado por homens jovens 23,24. Fatores contextuais que perpassam uma ineficiente legislação de trânsito ao não proibir o condutor de motocicletas a passagem entre veículos de filas adjacentes 33 e a insuficiente intervenção das autoridades públicas neste fenômeno, representado pelo aumento exponencial do número de motocicletas nas vias públicas, só amplificam o problema 34.

Do ponto de vista metodológico, a estratégia de combinar bancos de dados em acidentes de trânsito, baseou-se na experiência de outros autores em pesquisas de mortalidade 15 ou de morbidade 14. A estratégia confirmou a complementaridade das duas fontes de dados utilizadas ao compará-las com o banco final relacionado (BH10-SIM). Ficou demonstrado que o uso exclusivo de informações do banco de mortalidade (SIM) não contempla adequadamente nem a identificação dos usuários da via envolvidos, nem o intervalo de tempo entre o acidente e o óbito, essenciais para o conhecimento do perfil destes óbitos. Além disso, não permite a discriminação dos acidentes de trânsito ocorridos no perímetro urbano ou em rodovias, ou mesmo em outros municípios, pelo fato do SIM registrar, quase sempre, somente o local da morte, e não do acidente.

Por outro lado, as variáveis demográficas do BO, limitadas à idade e sexo, dificultam ou até impossibilitam a adequada caracterização das vítimas. As informações dos registros policiais tendem a subestimar os óbitos 3, por incluir quase exclusivamente os ocorridos na via, e assim gerar um perfil diferente daquele obtido no banco relacionado com o SIM.

O sub-registro de 24% foi superior ao estimado em um estudo espanhol, que encontrou até 6,6% e destacou a importância da utilização de registros de saúde para óbitos ocorridos após 24 horas do acidente 15. A identificação de 7% de registros de óbitos por acidentes de trânsito em 30 dias ou mais, no presente trabalho, sugere que o limite proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 2 pode estar subestimando estes indicadores.

As taxas de mortalidade por acidentes de trânsito delimitados ao perímetro urbano da cidade para seus residentes, também pode levar à subestimação desse indicador, dificultando ou mesmo impossibilitando a comparabilidade com os dados da literatura, pois, a maioria dos estudos, não analisa somente as mortes por acidentes ocorridos no município, abordando os óbitos dos residentes, independentemente de onde o acidente tenha ocorrido. O risco de morrer na cidade por acidentes de trânsito mostrou diferenças entre sexo e faixa etária, sendo muito superior nos homens, nas faixas etárias extremas – jovens e idosos – achados consistentes com as análises realizadas para o total de óbitos ocorridos.

O estudo apresenta pontos fortes tanto no que diz respeito à integração de diferentes fontes de dados para qualificar as informações como no que se refere à identificação de perfis de usuários vulneráveis, entretanto, apresenta algumas fragilidades.

Viéses de informação constituem limitações usuais, quando são utilizados registros secundários, que originalmente não são coletados com o objetivo de pesquisa. As informações do SIM nem sempre trazem dados relevantes sobre a circunstância dos óbitos, e os dados dos boletins de ocorrência, preenchidos pelos policiais no momento do acidente, podem omitir informações cruciais para o entendimento do acidente.

O relacionamento de registros, apesar de indubitavelmente qualificar as informações, pode predispor a erros nas várias etapas do processo, desde a entrada dos dados da identificação, passando pela fase de confrontação das informações dos diferentes sistemas, o que configura uma atividade árdua, monótona e demorada. Entretanto, a cuidadosa revisão manual dos pares verdadeiros e a procura minuciosa de inconsistências, certamente minimizaram a ocorrência de eventuais equívocos.

A qualificação dos dados possibilitou uma estimativa mais realística dos acidentes de trânsito fatais, com a adição de 24% de óbitos e melhor caracterização das vítimas. A impossibilidade de calcular as taxas de mortalidade por acidentes ocorridos em Belo Horizonte, pela dificuldade de se estimar a população exposta ao risco, pode ser outra limitação do estudo. Contudo, a regressão de Poisson possibilitou a estimativa do número médio de óbitos por acidentes de trânsito como uma função das variáveis explicativas disponíveis.

Este trabalho enfatiza a relevância da morte prematura de uma população economicamente ativa, importante força de trabalho e provedora de suas famílias, com perda irreparável para a sociedade e prejuízo para a nação. Sinaliza ainda que a reversão do cenário de violência no trânsito exige ações intersetoriais integradas e sustentadas, e que a identificação de fatores do ambiente que influenciaram nas lesões por acidentes de trânsito deve ser usada no planejamento do ambiente urbano, por meio da interseção da saúde pública com outras disciplinas, promovendo a realização de intervenções preventivas e protetivas.

Os resultados reforçam também a necessidade de estudos que monitorem medidas educacionais, incluindo o comportamento no trânsito, o uso de álcool e drogas pelos condutores dos veículos e pelas vítimas, incluindo os pedestres, além de análises detalhadas das vias onde ocorrem o maior número de atropelamentos e outros acidentes fatais. Contribuíram também para fomentar as discussões de intervenções mais específicas, bem como políticas de mobilidade com adequação do espaço urbano, priorizando os grupos vulneráveis, melhorias no transporte coletivo, efetivo controle da velocidade com ações de fiscalização rigorosas e contínuas, além de estratégias que garantam a assistência pré-hospitalar e hospitalar oportuna e qualificada.

Considerando que as lesões por acidentes de trânsito decorrem da interação entre pessoas, veículos e ambiente, o planejamento da saúde e o urbano devem se organizar, no sentido de responder às contemporâneas necessidades da população na área de mobilidade e transporte, assegurando a qualidade de vida e a proteção, em especial dos grupos vulneráveis: pedestres, usuários de transporte não motorizados e motociclistas.

Um trânsito sem violência é a expressão de cidadania, traduzida pela responsabilidade social de cada um dos envolvidos – usuários, indústrias automobilísticas, empresas de transporte, em especial as organizadoras do transporte urbano e o poder público, na construção de ambientes seguros.

A identificação multidisciplinar de fatores que influenciam lesões por acidentes de trânsito, realizada por profissionais das áreas de planejamento urbano, controle de trânsito e saúde, deve subsidiar a definição de intervenções protetivas, que visam a evitar lesões, incapacidades e mortes, contribuindo na criação de um ambiente mais seguro.

As mudanças nos veículos e nas vias estão entre as estratégias mais bem-sucedidas na redução das lesões por acidentes de trânsito e foram responsáveis pela melhora nos índices de morte no decorrer do século XX. Estratégias simultâneas de construção de ambiente protetivo a lesões por acidentes de trânsito, modificações na segurança veicular, fiscalização e intervenções educativas para alterações comportamentais enfatizam a responsabilidade coletiva e a individual, indispensáveis para a redução das lesões por acidentes de trânsito.

A representação simbólica dos veículos automotores na sociedade contemporânea é vinculada à posição social mais elevada e ao poder, incluindo percepções de prestígio, liberdade e prazer. Assim, torna-se desafiador alcançar a mobilização da população em torno de posturas seguras e solidárias no cumprimento da lei e responsabilidade no trânsito, reforçando a ideia de que os acidentes de trânsito não devem ser considerados acidentes ou fatalidades e sim eventos passíveis de prevenção e controle, por meio de ações efetivas que coíbam a vitimização de cidadãos no exercício do direito elementar de ir e vir.

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