versão impressa ISSN 0047-2085
J. bras. psiquiatr. vol.63 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000043
To evaluate the occurrence of depression among physicians working in the Family Health Units (FHU) in Aracaju.
In a sample of 83 physicians it was used the Beck Depression Inventory (BDI) for screening of depressive symptoms and a questionnaire developed by the researchers to collect sociodemographic information. Descriptive statistics and analysis through the chi-square and logistic regression were performed.
The prevalence of depressive symptoms in the sample was 27.7% (95% CI 19.3 to 37.3). It was observed that the variables that were associated with the onset of symptoms (p < 0.05) were: relationship problems, satisfaction with the job and the number of queries in relation to the work hour. After adjustment multiple logistic regression it was observed that those who had relationship problems and the ones who were not satisfied with the job had respectively, a risk of 5.63 and 4.59 times more likely to develop depressive symptoms compared with those who did not.
The prevalence of depressive symptoms in doctors working in Aracaju’s FHU is high and is probably associated with work and relationship problems.
Key words: Depression; physicians; family; family health; sleep initiation and maintenance disorders; prevalence
A World Health Organization (WHO)1 estimou que cerca de 350 milhões de pessoas sofrerão de algum tipo de transtorno mental e comportamental e que menos de 50% dessas pessoas receberão tratamento adequado.
Entre esses transtornos, a Pesquisa Mundial de Saúde, realizada em 2003 com métodos padronizados internacionalmente, revelou que 18,8% dos brasileiros declararam ter recebido um diagnóstico de depressão nos últimos 12 meses, o que demonstra ser um relevante problema de saúde pública2.
Os episódios depressivos podem surgir dentro dos mais variados quadros clínicos, tais como: transtorno de estresse pós-traumático, demência, esquizofrenia, alcoolismo, doenças clínicas em resposta a situações estressantes ou a circunstâncias sociais e econômicas adversas3. Trabalhadores de diferentes qualificações, com destaque para os profissionais de saúde, durante suas atividades têm seus aspectos relacionais e afetivos constantemente requeridos, tornando-os, desse modo, mais propensos a desenvolver quadros de esgotamento físico e mental e de depressão4.
Levine e Bryant5 e Porcu et al.6 relataram que, em geral, os profissionais acometidos por esgotamento profissional são aqueles do serviço público que trabalham na área da saúde, em especial a categoria médica, considerada como altamente vulnerável a desenvolver sintomas depressivos. O contato estreito com portadores de diferentes doenças e prognósticos ruins, a grande carga horária, a imposição do alto nível de cobrança, não só pela sociedade como pelo próprio indivíduo, seriam responsáveis por desencadear crises frequentes, as quais podem levar a episódios depressivos.
Meleiro7 destaca que medo de falhar e frustrações quanto à realização e ao reconhecimento profissional são sentimentos comuns que, se não forem bem administrados, podem trazer consequências ruins à saúde do médico, visto que, diante do erro, o profissional pode ser tomado por sentimento de culpa pelo fracasso e de aparente impotência.
A depressão, além de trazer para o médico problemas psíquicos, traz prejuízo ao trabalho e ao relacionamento pessoal em decorrência da irritabilidade e da apatia que o acompanham. Seu desempenho também pode ser comprometido em virtude de problemas do sono, fadiga ou de baixa concentração no seu trabalho. O médico deprimido pode se retirar do convívio social e apresentar aumento do uso de álcool ou drogas. Em casos mais graves, até mesmo o suicídio é visto como uma possibilidade5,7-10. McQuaid et al.11 enfatizaram que, apesar da grande prevalência e risco, cerca de 50% a 60% dos casos de depressão não são detectados ou não recebem tratamentos adequados e específicos.
Pode-se assim depreender que o conhecimento da prevalência da depressão entre médicos, em nosso meio, poderá contribuir para a proposição de medidas para prevenção, diagnóstico e atitudes terapêuticas. O presente estudo teve por objetivo avaliar a prevalência de depressão entre os médicos que trabalham nas Unidades de Saúde da Família (USF), na cidade de Aracaju.
Foi realizado um estudo transversal para avaliar a prevalência de depressão em médicos que trabalham nas USF do município de Aracaju. A amostra foi não probabilística por conveniência, sendo convidados a participar todos os médicos atuantes na rede de atenção básica durante o período de coleta. Dos 126 profissionais médicos convidados, 23 se recusaram a participar, sete estavam em período de capacitação fora da unidade e cinco estavam em gozo de férias. A taxa de participação foi de 65,87%. O instrumento utilizado foi o Inventário de Depressão de Beck (IDB), o qual auxilia no rastreamento dos sintomas e na identificação da gravidade da depressão. O IDB foi traduzido e validado para o português por Gorenstein e Andrade12. Esse instrumento constitui-se de 21 questões autoavaliativas, em que cada uma delas possui quatro alternativas que retratam uma manifestação comportamental específica graduada de 0 a 3 de acordo com a intensidade do sintoma. O resultado é obtido pela soma dos valores de cada resposta (máximo 63) e análise do escore: 0 a 9 pontos (ausência ou depressão mínima), 10 a 18 pontos (leve), 19 a 29 pontos (moderada) e ≥ 30 (grave).
Um segundo questionário elaborado pelos pesquisadores foi também utilizado para coletar informações sociodemográficas, que abordavam aspectos da vida pessoal e profissional do médico. Após coleta desses dados, conforme a intensidade dos sintomas depressivos foram identificados três grupos: os que não tinham sintomas, os de sintomas leves e os de sintomas depressivos moderados. Entretanto, para análise de associação e regressão logística, foram agrupados os casos de depressão leve e moderada.
A análise exploratória dos dados consistiu na descrição da população por meio de estatística descritiva e, em seguida, análise bivariada com cálculo de odds ratio (OR) bruta. Posteriormente, foi feita uma análise de múltiplas variáveis por meio de regressão logística. O critério para entrada dos fatores no modelo foi p ≤ 0,25 e, para permanência, aqueles com significância ≤ 0,05. A estratégia de modelagem utilizada foi o Backward Stepwise. Para isso, foi utilizado o programa estatístico GraphPad Prism versão 3.02 (GraphPad Software, San Diego, CA, EUA). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe protocolo n°: CAAE – 0135.0.107.000-10.
A idade dos 83 médicos que responderam ao questionário variou de 24 a 65 anos, com média de 42,0 ± 15,8. Dentre os participantes, 39,8% (33) eram do sexo masculino e 60,2% (50), feminino. A média de idade entre os homens foi de 41,3 ± 9,2 anos e a das mulheres, de 43,0 ± 13,8 anos. Não houve diferença estatística entre a média de idade dos sexos (p = 0,54).
A prevalência de sintomas depressivos entre os médicos foi de 27,7% (IC 95% 19,3-37,3), assim distribuída: 24,1% sintomas leves, 3,6% moderados. A maioria dos médicos não possuía sintomas depressivos e nenhum apresentou sintomas graves (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalência de sintomas depressivos entre médicos que trabalhavam nas unidades de saúde da família da cidade de Aracaju – Sergipe
Em relação à pontuação obtida no IDB, a média foi de 7,1 ± 5,2 pontos, sendo 6,8 ± 5,4 pontos para os homens e de 7,3 ± 5,2 pontos para as mulheres. Dentre as questões mais pontuadas, destacaram-se: irritabilidade (66,3%), fadiga (62,7%) e os distúrbios do sono (43,4%). Enquanto foram menos pontuadas as referentes: ideias suicidas (2,4%), sensação de culpa (10,8%) e a perda de apetite (12,1%).
Os médicos eram predominantemente casados (68,7%), católicos (67,5%) e brancos (55,4%). Em relação aos hábitos, 59,0% afirmaram praticar alguma atividade física, apenas um (1,2%) era tabagista e 18,1% faziam uso de bebidas alcoólicas. Dos médicos que apresentavam sintomas depressivos, 56,5% tinham insônia, enquanto 11,7% não se referiram à presença desse sintoma. A maioria dos médicos (69,9%) possuía mais de um emprego.
Do total de médicos, 39,8% já haviam procurado algum serviço de psiquiatria ou psicologia e 10,8% estavam fazendo uso de antidepressivos. Entre aqueles que apresentaram sintomas depressivos, a taxa de uso de antidepressivos foi de 21,74%. Antecedentes psiquiátricos na família foram relatados por 36,1% dos participantes.
Ao comparar os grupos de médicos com e sem sintomas depressivos, observou-se que as variáveis que tiveram associação com o aparecimento dos sintomas (p < 0,05) foram: problemas de relacionamento, grau de satisfação com o trabalho e adequação do número de consultas em relação à hora de trabalho. Não mostraram associação as seguintes variáveis: sexo, prática de atividades físicas e antecedentes psiquiátricos na família e hora de sono diário (Tabela 2).
Tabela 2 Variáveis sociodemográficas, aspectos pessoais e prevalência de sintomas depressivos em médicos que trabalham nas Unidades de Saúde da Família da cidade de Aracaju, 2012
Variável | Depressão |
p | |
---|---|---|---|
Presente (n = 23) % (n) | Ausente (n = 60) % (n) | ||
Sexo | |||
Feminino | 73,9 (17) | 55,0 (33) | 0,120 |
Masculino | 26,1 (6) | 45,0 (27) | |
Prática de atividade física | |||
Não | 52,2 (12) | 36,7 (22) | 0,199 |
Sim | 47,8 (11) | 63,3 (38) | |
Antecedentes psiquiátricos na família | |||
Sim | 47,8 (11) | 31,7 (19) | 0,170 |
Não | 52,2 (12) | 68,3 (41) | |
Problemas de relacionamento | |||
Sim | 56,5 (13) | 18,3 (11) | 0,001 |
Não | 43,5 (10) | 81,7 (49) | |
Satisfação com o trabalho | |||
Insatisfeito | 43,5 (10) | 10,0 (6) | 0,0001 |
Satisfeito | 56,5 (13) | 90,0 (54) | |
Adequação do número de consultas em relação a horas de trabalho | |||
Inadequado | 60,9 (14) | 36,7 (21) | 0,044 |
Adequado | 39,1 (9) | 63,4 (39) | |
Tempo que dorme diariamente | |||
< 6 horas | 43,5 (10) | 18,3 (11) | 0,058 |
≥ 6 horas | 56,5 (13) | 81,7 (49) |
Procedeu-se inicialmente uma regressão logística simples expressa em razão de chances em que foram considerados como variável desfecho a depressão e como fatores relacionados isoladamente: problemas de relacionamento e satisfação em relação ao trabalho. Após ajuste de regressão logística múltipla, foi observado que os médicos que tinham problemas de relacionamento e os insatisfeitos com o trabalho apresentaram, respectivamente, 5,63 e 4,59 vezes mais sintomas depressivos quando comparados àqueles que não possuíam esses sintomas (Tabela 3).
Tabela 3 Variáveis associadas à depressão expressas em razão de chances e seus respectivos intervalos de confiança por meio de regressão logística simples (não ajustada) e múltipla (ajustada)
Variável | OR Bruta (IC 95%) | OR Ajustada (IC 95%) | p |
---|---|---|---|
Problemas de relacionamento | |||
Sim | 5,79 (2,02 – 16,6) | 5,63 (1,88 – 19,90) | 0,002 |
Não | 1 | 1 | |
Satisfação com o trabalho | |||
Insatisfeito | 4,76 (1,28 – 17,78) | 4,59 (1,15 – 18,35) | 0,031 |
Satisfeito | 1 | 1 |
No presente estudo, a prevalência encontrada de sintomas depressivos entre os médicos que trabalhavam nas USF da cidade de Aracaju foi de 27,7%. Esse achado é semelhante ao de outros estudos13-15 em que os autores também utilizaram o IDB como instrumento de rastreamento. Barbosa et al.16 encontraram uma prevalência de 20% de sintomas depressivos entre médicos da assistência hospitalar utilizando o mesmo ponto de corte deste estudo; enquanto isso, Capitão e Almeida17, utilizando um ponto de corte superior, encontraram uma prevalência de 14% entre médicos que atendiam em ambulatórios da cidade de São Paulo.
A ocorrência de sintomas depressivos ocorreu em maior proporção entre as mulheres (73,9%) em relação aos homens (26,1%), porém não foi estatisticamente significante. Esses achados estão de acordo aos descritos por diversos autores8,14,18,19. Para Baptista et al.20 e Justo e Calil21, não são apenas as questões fisiológicas, mas também aquelas psicossociais relacionadas à realidade vivida pelas mulheres na sociedade atual que justificariam a maior prevalência de depressão entre as mulheres.
A presença de um companheiro gera um suporte social que parece ser agente altamente protetor18,22, já que a pessoa com sintomas depressivos tende a isolar-se, criando como consequência dificuldades no relacionamento com outras pessoas. Em nosso estudo, foi identificada maior porcentagem de sintomas depressivos entre os médicos que possuíam algum tipo de problema de relacionamento. A dificuldade em se relacionar gerada pelo sofrimento emocional do médico, além de interferir na vida pessoal, pode atingir a relação com o paciente e, consequentemente, sua eficiência no trabalho.
Apesar da realidade pertinente ao exercício da profissão médica, como descrita por Frasquilho23,24, que vai desde a relação médico-paciente à satisfação com a profissão e relação com ambiente de trabalho, no presente estudo foi encontrada uma associação entre a situação do ambiente de trabalho e os sintomas depressivos. Em estudo realizado no Reino Unido, Weinberg e Creed25 também encontraram associação entre o estresse e a ocorrência de problemas psiquiátricos entre profissionais da saúde de um hospital de base.
O sentimento de tristeza que acomete indivíduos depressivos pode muitas vezes levá-lo ao uso de álcool e drogas14,19,26. Os médicos avaliados no presente estudo em geral possuíam hábitos saudáveis: praticamente não fumavam e poucos faziam uso de álcool. Além disso, mais da metade afirmou realizar algum tipo de atividade física, atitude que, para Barbanti27, tem efeito na melhora da qualidade de vida de pacientes depressivos.
A presença dos distúrbios do sono não é exclusiva, mas pode ocorrer frequentemente na maioria dos transtornos psiquiátricos28, incluindo depressão. Para Buysse et al.29, a privação do sono é considerada um fator de risco para o desenvolvimento de sintomas depressivos e também um dos sintomas frequentes entre os que já sofrem do quadro de depressão. Por outro lado, Chellappa30 relata que a sonolência excessiva diurna, por exemplo, é uma queixa associada ao transtorno depressivo que requer uma adequada avaliação clínica independente de ter sido iniciada antes, durante ou após o quadro depressivo propriamente dito ou como efeito residual da depressão prévia ou esquema terapêutico adotado.
A literatura tem demonstrado que o tratamento dos distúrbios do sono implica a melhoria dos sintomas depressivos, assim como o uso de antidepressivos surte efeito no tratamento da insônia29-31. Essa forte correlação entre os sintomas depressivos e a insônia é apontada em estudos como os de Buysse et al.29, Chellappa e Araújo32 e Santos33, o que também foi confirmado no presente estudo.
Devemos destacar a influência da jornada de trabalho do médico sobre o sono. A fadiga aguda ou crônica produzida por muitas horas de trabalho do médico, seja em regime ambulatorial ou de plantões, levando muitas vezes a permanecer no trabalho quase sem dormir por mais de 36 horas, associada à privação ou à redução significativa das horas de sono, são fatores que influenciam no seu desempenho. Essas jornadas prolongadas de trabalho mostram queda no desempenho dos médicos, com dificuldade para manter um desempenho ideal para as tarefas a serem realizadas, além de frequentes queixas de alterações de estados do humor, com implicações significativas na vida profissional e pessoal34.
Meleiro7 e Levine e Bryant5 destacaram que a ocorrência de depressão em graus moderado e grave é de grande importância clínica, visto que os pacientes correm maior risco, inclusive de suicídio. No presente estudo, não foram encontrados médicos com sintomas graves de depressão.
Dentre aqueles que apresentaram sintomas depressivos, 21,74% faziam uso de antidepressivos. Essa ocorrência pode sugerir que possivelmente poucos casos de depressão tenham sido de fato diagnosticados, além de ser responsável pela diminuição do escore do IDB. A detecção precoce dos sintomas depressivos, assim como em qualquer outra doença, é fundamental para um tratamento eficiente e evitar consequências mais graves. Devemos chamar atenção para o fato de que o uso de medicamentos antidepressivos nos grupos com e sem sintomas depressivos pode ter influenciado nos escores do IDB. É importante também salientar que o IDB é um instrumento de rastreamento de sintomas depressivos, não devendo ser considerado um meio diagnóstico.
O fato de haver grande prevalência de sintomas depressivos entre médicos que trabalham em um ambiente teoricamente menos estressante em comparação a outros grupos como residentes, intensivistas e plantonistas chama a atenção para a discussão de quais motivos estariam levando ao desenvolvimento de sintomas depressivos. O presente estudo abre a possibilidade para o estabelecimento de estratégias que visem identificar as causas e minimizar as consequências do transtorno depressivo, bem como a realização de outros tipos de estudos para o enfrentamento adequado de um problema muito presente entre os profissionais médicos.
Como limitações do estudo, podemos citar o número reduzido de participantes, que ocorreu devido à quantidade de médicos atuando na rede de atendimento básico à saúde, bem como sua adesão na pesquisa. Outra limitação é o fato de não podermos estabelecer relação de causa e consequência entre os fatores analisados e a depressão, visto que, por se tratar de um estudo transversal, obtivemos apenas uma visão momentânea da população estudada.
A prevalência de sintomas depressivos em médicos que trabalham nas Unidades de Saúde da Família de Aracaju é alta. Fatores como problemas de relacionamento e satisfação com o trabalho parecem estar associados à presença desses sintomas, bem como forte associação entre insônia e depressão.