versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.6 Rio de Janeiro nov./dez. 2017 Epub 21-Set-2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170075
A obesidade é uma doença crônica multifatorial definida como acúmulo anormal ou excessivo de gordura, representando um sério risco à saúde. A prevalência de sobrepeso e obesidade está aumentando, sendo 12% da população mundial considerada obesa.1 Segundo estudos brasileiros, 52,5% da população adulta acha-se acima do peso saudável ideal, sendo 17,9% dela considerada obesa. O acúmulo de tecido adiposo, em particular gordura visceral, pode contribuir para mudanças corporais, desencadeando síndrome metabólica. Essa síndrome pode ser definida como um distúrbio complexo, caracterizado por um conjunto de fatores de risco cardiovascular relacionados à deposição de gordura central e resistência à insulina.2
Em geral, a base fisiopatológica para os eventos cardiovasculares é a aterosclerose, caracterizada por um processo inflamatório crônico da parede vascular e elevação dos marcadores inflamatórios séricos circulantes, como a proteína C reativa (PCR). Com relação à dislipidemia, o objetivo primário na prevenção cardiovascular é baixar os níveis de LDL-colesterol (LDL-c), reduzir os níveis de triglicerídeos e elevar os de HDL-colesterol (HDL-c), sendo esse último objetivo considerado potencialmente benéfico para inibir o processo aterotrombótico.3
Para reduzir esses níveis, foram propostos tratamentos dietéticos que requerem mudanças nos hábitos alimentares.4 Nesse contexto, o uso de óleo de cártamo (Carthamus tinctorius) foi proposto para prevenir ou tratar a obesidade. O óleo de cártamo é extraído do açafrão, uma planta da família Asteraceae,5,6 e contém alto teor de ácidos graxos poli-insaturados (75% ácido linoleico) e monoinsaturados.7 Tal composição estimulou estudos posteriores que demonstraram ter a suplementação dietética com óleo de cártamo um efeito positivo no perfil lipídico e desempenhar um papel antiaterogênico.
Devido à falta de estudos sobre o uso do óleo de cártamo na síndrome metabólica, além da existência de resultados conflitantes na literatura, o presente estudo buscou avaliar os efeitos terapêuticos do óleo de cártamo sobre a composição corporal, o perfil lipídico e a glicemia em um modelo experimental de síndrome metabólica.
Os animais foram fornecidos pelo Biotério Central da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, Mato Grosso do Sul. Os procedimentos usados neste estudo foram aprovados pelo Comitê de Ética para o Uso de Animais Experimentais da UFGD (Nº 016/2013), segundo os padrões estabelecidos pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal.8
Uma dieta altamente palatável (AP) foi preparada com base no estudo de Naderali et al.,9 usando 33% de ração moída da marca Labina Purina®, 33% de leite condensado, 27% de água e 7% de sucrose (2,78 calorias/g). A dieta foi mantida sob refrigeração até ser usada, tendo o grupo controle recebido dieta normal (ração comercial da marca Labina Purina®).
O experimento foi dividido em duas etapas. Na primeira, desenvolveu-se um modelo animal de síndrome metabólica e, na segunda, realizou-se intervenção com óleo de cártamo em um modelo da doença similar ao observado em seres humanos. Ratos Wistar machos com 90 dias (adultos) foram usados nas duas etapas.
Na primeira etapa, os animais foram divididos em dois grupos (n = 8): um grupo recebeu dieta normal e água ad libitum, e o outro recebeu uma dieta AP e água ad libitum, por 10 semanas. Na segunda etapa, os animais também foram divididos em dois grupos (n = 5-6), tendo ambos os grupos recebido uma dieta AP e água ad libitum, por 10 semanas. A dieta AP com óleo de soja (APOS) e a dieta AP com óleo de cártamo (APOC) foram administradas por gavagem aos animais. A dose diária administrada foi de 1,0 ml/1000 g de peso do animal.10,11
O óleo de cártamo (Galena®) e o óleo de soja (Liza®) usados neste estudo foram comprados em estabelecimentos comerciais da cidade de Dourados.
Os mesmos parâmetros foram avaliados nas duas etapas. O consumo de alimento e o peso dos animais foram medidos diariamente. Após 10 semanas de tratamento, os animais foram submetidos a jejum de 12 horas, anestesiados com xilazina e cetamina (10 mg/kg: 75 mg/kg) e sacrificados por exsanguinação pela veia cava inferior. As amostras de sangue foram centrifugadas a 3000 rpm por 15 minutos, sendo o soro mantido congelado a -20°C até a análise. Amostras de tecido adiposo de cinco locais foram removidas e pesadas. Os fígados foram submetidos a estudo histológico para a presença de esteatose hepática.
Para a avaliação da glicemia, os animais foram submetidos a jejum de 16 horas, sendo o sangue coletado da artéria da cauda, e usando-se um glicosímetro (Testline Striptsl25), segundo Formagio et al.11
A determinação de colesterol total, HDL-c e triglicerídeos séricos baseou-se no método enzimático colorimétrico, usando-se kit comercial (Labtest®), segundo as instruções do fabricante. Os resultados foram obtidos com um espectrofotômetro (Aaker/Bel - SF325NM - S05®). A concentração de LDL-c foi obtida com uma fórmula, segundo as instruções do fabricante do kit para quantificação de HDL-c, usando-se a equação de Friedewald, onde: VLDL-c = Triglicerídeos / 5 e LDL-c = Colesterol total - (HDL-c + VLDL-c).
Logo após ser extraído, o fígado foi imerso em solução salina para remover o excesso de sangue, sendo em seguida secado com papel e pesado.
As amostras de tecido adiposo de cinco sítios (epididimal, retroperitoneal, perirrenal, mesentérico e omental) foram removidas e pesadas, com determinação subsequente da gordura do animal (porcentagem de tecido adiposo em cada sítio em relação ao peso corporal).
Após a eutanásia, o fígado foi removido para estudo histológico, sendo fixado em solução de formaldeído a 10% até inclusão em parafina. Foram então realizados cortes de 7 µm de espessura no micrótomo, com posterior montagem em lâminas de vidro. Cada lâmina tinha quatro cortes extraídos do bloco de parafina. As lâminas foram coradas com hematoxilina e eosina, sendo analisadas em microscópio acoplado a câmara digital com aumento de 200x para classificação quanto à presença de esteatose, segundo Abbas et al.12 e Mello e Alves.13
Os resultados foram expressos como média ± erro-padrão da média (EPM), sendo analisados com o programa Prisma 5.0 (GraphPad Software, EUA). O teste t de Student foi usado para avaliar se as médias dos grupos eram estatisticamente significativas, sendo p < 0,05 considerado estatisticamente significativo.
Os resultados da primeira etapa do estudo, em que se tentou desenvolver um modelo animal de síndrome metabólica, podem ser vistos na Tabela 1. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos com relação à ingestão de água (dados não relatados).
Tabela 1 Ingestão dietética total, composição corporal, peso do fígado e parâmetros bioquímicos em ratos recebendo uma dieta normal e uma dieta altamente palatável
Controle | Altamente palatável | |
---|---|---|
Ingestão dietética (calorias/grupo/semana) | 2606 ± 33,32 | 3084 ± 66,56 *** |
Adiposidade visceral (%) | 4,5 ± 0,3 | 6,401 ± 0,3 *** |
Peso do fígado (g) | 11,3 ± 0,4 | 12,8 ± 0,4 ** |
Colesterol total (mg/dl) | 82,8 ± 13,2 | 86,2 ± 7,1 |
Triglicerídeos (mg/dl) | 96,6 ± 13,1 | 150,2 ± 19,0 * |
Glicemia de jejum (mg/dl) | 73,7 ± 1,4 | 85,6 ± 2,2 *** |
Valores expressos em média ± erro-padrão da média (EPM). Test t de Student.
*p < 0,05;
**p < 0,01;
***p < 0,001; n = 8-9.
Na segunda etapa, os animais receberam uma dieta AP (que induz síndrome metabólica) suplementada com óleo de soja (APOS) ou óleo de cártamo (APOC). A ingestão de alimentos e água dos animais foi medida. Entretanto, não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos quanto àqueles parâmetros (dados não relatados).
Observaram-se mudanças significativas no perfil lipídico dos animais, tendo o grupo APOC apresentado mais alta concentração de colesterol total e LDL-c do que o grupo controle (APOS) (Figuras 1A e 1B, p = 0,03 e p = 0,001, respectivamente). Por outro lado, os níveis de HDL-c e triglicerídeos não diferiram estatisticamente entre os grupos (Figures 1C e 1D).
Figura 1 Concentração de colesterol total (A), LDL-colesterol (B), HDL-colesterol (C) e triglicerídeos (D) de ratos recebendo uma dieta altamente palatável (AP) por 10 semanas, suplementada com óleo de soja (APOS) ou óleo de cártamo (APOC), n = 5-6. Valores expressos em média ± erro-padrão da média (EPM). Test t de Student. * p < 0,05; ** p < 0,01.
O grupo APOC apresentou níveis mais baixos de glicemia de jejum em comparação ao grupo controle, mas tal diferença não foi estatisticamente significativa (Figura 2).
Figura 2 Glicemia de jejum de ratos alimentados com uma dieta altamente palatável (AP) durante 10 semanas, suplementado com óleo de soja (APSO) ou óleo de cártamo (APOC). N = 5-6. Valores expressos em média ± erro padrão de média (SEM). Teste t de Student.
Segundo nossos resultados, não houve diferença estatisticamente significativa quanto ao peso do fígado e ao ganho de peso entre o grupo controle e o grupo APOC (Figuras 3 e 4A, respectivamente). Entretanto, o grupo APOC apresentou valores mais altos de tecido adiposo total, e adiposidade epididimal e visceral, mas sem significado estatístico (Figuras 4B, 4C e 4D, respectivamente).
Figura 3 Peso do fígado de ratos recebendo uma dieta altamente palatável (AP) por 10 semanas, suplementada com óleo de soja (APOS) ou óleo de cártamo (APOC), n = 5-6. Valores expressos em média ± erro-padrão da média (EPM). Test t de Student.
Figura 4 Ganho de peso corporal (A), peso do tecido adiposo total (B), tecido adiposo epididimal (C) e adiposidade visceral (D) de ratos recebendo uma dieta altamente palatável (AP) por 10 semanas, suplementada com óleo de soja (APOS) ou óleo de cártamo (APOC), n = 5-6. Valores expressos em média ± erro-padrão da média (EPM). Test t de Student.
Com relação à análise histológica do fígado, os grupos APOS e APOC apresentaram leve esteatose microvesicular e moderada esteatose micro- e macrovesicular, respectivamente (Figura 5).
Figura 5 Cortes histológicos de fígado corados com Hematoxilina e Eosina (H&E) de ratos recebendo uma dieta altamente palatável (AP) por 10 semanas, suplementada com óleo de soja (APOS) ou óleo de cártamo (APOC), n = 5-6. Grupo APOS: leve esteatose microvesicular; grupo HPSA: moderada esteatose micro- e macrovesicular.
Vários modelos experimentais foram propostos para o estudo de obesidade e seus distúrbios metabólicos, a maioria deles com base em modificações genéticas.14,15 O modelo animal que mais se aproxima da etiologia da obesidade humana envolve alta ingestão de gordura dietética.16 Entretanto, a extrapolação de muitos desses modelos animais para obesidade humana é limitada pela dificuldade em se reproduzir os distúrbios que caracterizam a síndrome metabólica, como obesidade central e alterações no metabolismo dos lipídeos e da glicose. Além disso, requerem longos períodos de tempo para a indução de obesidade.17,18 O modelo usado neste estudo é, portanto, o mais adequado para a pesquisa de intervenções de síndrome metabólica, por efetivamente imitar o distúrbio observado em seres humanos, necessitando de tempo de indução relativamente menor comparado ao de outros estudos,19,20 reduzindo os custos da pesquisa.
Tais achados (obesidade visceral, hiperglicemia e hipertrigliceridemia) são consistentes com o diagnóstico de síndrome metabólica, que também inclui esteatose hepática. Vários estudos indicam existir uma associação entre obesidade e distúrbios metabólicos, em particular a ingestão de dietas hipercalóricas e ricas em carboidratos, também demonstrado no nosso estudo.16-21
Segundo os resultados obtidos na segunda etapa deste estudo, não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos com relação a ganho de peso. Tal achado é similar ao do estudo de Fernandes et al.,22 que não obtiveram significativa diferença no ganho de peso dos animais nos grupos recebendo uma dieta suplementada com 1% de ácido linoleico conjugado (CLA) em comparação ao dos grupos que não receberam o referido suplemento. Tal achado é ainda corroborado pelo estudo de Bhattacharya et al.,23 em que camundongos BALB/C alimentados com uma dieta rica em gordura suplementada com 0,4% de CLA não apresentaram alteração no peso corporal.
Diferentes resultados, no entanto, foram obtidos por DeLany et al.19 e Park e Pariza.21 Segundo esses autores, mudanças na composição corporal após suplementação com CLA podem estar relacionadas à reduzida proliferação e diferenciação de pré-adipócitos, elevação do gasto de energia e mudanças na concentração de leptina, uma proteína sintetizada e secretada por adipócitos, envolvida na homeostase energética. Diferentemente do sugerido por esses autores, no nosso estudo, o grupo suplementado com óleo de cártamo apresentou maior adiposidade visceral, embora tal diferença não tenha significado estatístico. Na literatura, portanto, há relatos conflitantes com relação às mudanças na composição corporal associadas ao uso de cártamo ou seu principal componente, CLA.
A análise do perfil lipídico dos animais mostrou que o grupo APOC tinha uma maior concentração de colesterol total e LDL-c em comparação ao grupo controle (APOS). Resultados similares foram obtidos por Fernandes et al.,22 que demonstraram elevação dos níveis de colesterol após suplementação com 1% de CLA. Tal fato pode ser explicado por mudanças no metabolismo lipídico hepático causadas por CLA, que podem afetar a interconversão metabólica de ácido graxos no fígado, resultando em composição modificada de ácido graxos, alterando as lipoproteínas.24
Ainda em relação ao colesterol, no já mencionado estudo de Fernandes et al.22 com animais suplementados com CLA distribuídos em grupos 'ativos' e 'sedentários', houve melhora nos níveis de HDL-c no grupo 'sedentários' suplementados com CLA. No nosso estudo, entretanto, assim como no de Marques et al.,25 que usaram óleo de cártamo em lugar do CLA, não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos com relação a HDL-c e triglicerídeos séricos.
Ao analisar a glicemia de jejum, o grupo APOC mostrou valores mais altos em comparação ao grupo controle, embora sem significado estatístico. Marques et al.25 relataram que suplementação exclusiva com 2% de CLA afetou o metabolismo da glicose em camundongos, que apresentaram grave hiperglicemia em comparação ao grupo controle. A não observação dessa diferença em nosso estudo, pode dever-se ao fato de termos usado óleo de cártamo em lugar de CLA isolado.
O estudo de Tanaka et al.26 indica que a suplementação com CLA induz resistência à insulina em animais e seres humanos. Entretanto, outros estudos, como o de Parra et al.,27 apresentaram resultados controversos. Aqueles autores demonstraram que a mistura de isômeros CLA não aumentou a resistência à insulina em ratos recebendo suplementação oral.
Logo, não há consenso quanto à relação entre ingestão de CLA e sensibilidade à insulina. Estudos adicionais são necessários para esclarecer tais alterações metabólicas.
Além disso, não houve diferença nos grupos quanto ao peso relativo do fígado. O estudo de Gaiva et al.28 com ratos recebendo dieta rica em ácidos graxos poli-insaturados relatou aumento do peso hepático. Pode-se sugerir que, no nosso estudo, não houve diferença estatisticamente significativa no peso do fígado entre os grupos, pois o óleo de soja e o óleo de cártamo são fontes de ácido graxos poli-insaturados, exercendo a mesma ação no fígado.
Entretanto, a análise dos cortes histológicos do fígado mostrou que a suplementação com óleo de cártamo interfere com a esteatose hepática, sendo a presença de esteatose micro- e macrovesicular perceptível naquele grupo. Segundo Reddy,29 a síntese de ácido graxo é estimulada para promover o armazenamento de substrato energético em tecido adiposo, um processo que afeta o metabolismo lipídico, em especial homeostase oxidativa e síntese lipídica, resultando em obesidade, resistência à insulina, dislipidemia e esteatose hepática.
Nossos resultados mostram que animais recebendo uma dieta AP constituem um modelo efetivo para o estudo experimental da síndrome metabólica, devido às suas semelhanças com a etiologia da síndrome observada em seres humanos. Ademais, tal modelo não requer o uso de animais geneticamente modificados, tem menor tempo de indução e relativamente baixo custo.
Concluindo, a ação do óleo de cártamo na prevenção de efeitos adversos na composição corporal, perfil lipídico e glicemia não foi confirmada nas condições do presente estudo. Ao contrário, a suplementação com óleo de cártamo resultou em elevação do colesterol sérico total e de sua fração mais aterogênica, LDL-c, assim como em esteatose hepática, indicando que o uso de óleo de cártamo possa ter efeitos deletérios no perfil lipídico e na saúde.