versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.44 no.5 São Paulo set./out. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562017000000325
A aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA) é caracterizada por uma reação de hipersensibilidade pulmonar ao fungo do gênero Aspergillus. Acomete principalmente pacientes asmáticos atópicos imunocompetentes ou aqueles com fibrose cística.1 O A. fumigatus é o agente etiológico mais comum envolvido nessa enfermidade. A prevalência da ABPA em asmáticos varia de 1,0% a 3,5%, sendo que, em asmáticos corticodependentes, essa aumenta para 7-28%. No nosso serviço, essa prevalência é de 19%.2
O omalizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado, aprovado no Brasil para o tratamento da asma de difícil controle de etiologia alérgica e de urticária crônica espontânea refratária. Também está sendo utilizado “fora de bula” em outras doenças, nas quais a IgE tem relevante papel fisiopatológico, como ABPA e anafilaxia.
O omalizumabe na ABPA parece ser capaz de reduzir o número de exacerbações e hospitalizações, assim como a necessidade de uso de corticoide sistêmico (CS) e inalatório, levando à melhora da qualidade de vida.3,4 No entanto, ainda existem poucos estudos sobre o uso desse anticorpo monoclonal em pacientes asmáticos com ABPA, sem fibrose cística.3,5,6 As controvérsias quanto ao papel do omalizumabe em pacientes com ABPA motivaram-nos a descrever o presente caso.
Mulher com 53 anos de idade, asmática desde a infância, foi admitida no Serviço de Imunologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1994. Estava em tratamento com budesonida 800 µg/dia e formoterol 24 µg/dia, sem controle dos sintomas. Fazia cursos frequentes de CS e antibioticoterapia devido a exacerbações e infecções bacterianas respiratórias, respectivamente.
Os exames laboratoriais evidenciavam IgE total = 780 UI/ml (valor de referência: < 100); eosinofilia periférica de 5% (305 células/mm3; valor de referência: 100-300) e precipitinas para A. fumigatus positivas. O teste de puntura evidenciou pápula de 4 mm para A. fumigatus, com controles positivo e negativo de 8 mm e 2 mm, respectivamente. O teste intradérmico para A. fumigatus foi de 8 mm.
A radiografia de tórax evidenciou infiltrados bibasais em “linha de trem”. A TCAR de tórax sem contraste mostrava hiperinsuflação pulmonar difusa, espessamento peribrônquico e pleural, sem sinais de bronquiectasia. A espirometria evidenciava padrão ventilatório obstrutivo moderado com redução da CVF, prova broncodilatadora positiva, mas sem normalização da CVF.
Em 1996, a paciente apresentava asma de difícil controle com teste cutâneo positivo para A. fumigatus, IgE total elevada, precipitinas positivas para A. fumigatus e ausência de bronquiectasia, sendo diagnosticada com asma alérgica associada a ABPA sorológica.
Durante 18 anos, fazia uso contínuo de CS (média, 40 mg/dia). As tentativas de redução do CS para dose ≤ 20 mg/dia foram frustras. Evoluiu, durante o período, com intercorrências infecciosas, hipertensão arterial, osteoporose e síndrome de Cushing.
Aproximadamente 17 anos após ter sido diagnosticada com ABPA, os exames mostravam IgE total de 450 UI/ml e 5% de eosinófilos (245 células/mm3). A espirometria revelou distúrbio ventilatório obstrutivo puro em grau muito acentuado (VEF1 = 24% do previsto; CVF = 53% do previsto; e relação VEF1/CVF = 45%), com prova broncodilatadora negativa. A medida de volumes estáticos mostrava aprisionamento aéreo significativo, que se mantinha após a broncodilatação. A TCAR de tórax sem contraste revelou aumento do diâmetro anteroposterior e áreas de aprisionamento aéreo esparsas; espessamento pleural e opacidades reticulares periféricas nos lobos superiores; assim como brônquios ectasiados de paredes espessadas difusamente, associados a nódulos centrolobulares, e preenchimento bronquiolar com padrão em árvore de brotamento, além de opacidades nos lobos inferiores, sugerindo impactação mucoide e ABPA com presença de bronquiectasias (Figura 1).
Figura 1 TCAR de tórax evidenciando aumento do diâmetro anteroposterior, áreas de aprisionamento aéreo esparsas, espessamento pleural e opacidades reticulares periféricas nos lobos superiores. Brônquios ectasiados de paredes espessadas difusamente, associados a nódulos centrolobulares e preenchimento bronquiolar com padrão em árvore de brotamento, além de opacidades nos lobos inferiores, sugerindo impactação mucoide e aspergilose broncopulmonar alérgica com presença de bronquiectasias.
Em dezembro de 2012, apesar do tratamento, a paciente permanecia no estágio IV (corticodependente) de ABPA. Devido à refratariedade ao tratamento usual, foi associado omalizumabe 300 mg a cada 15 dias. Após o início dessa medicação, a paciente evoluiu com controle da asma e remissão da ABPA (isto é, para estágio II da doença), além da suspensão do CS.
No momento da escrita da presente carta, a paciente está em uso de 300 mg de omalizumabe a cada 15 dias associado a budesonida 800 µg/dia, formoterol 24 µg/dia e beclometasona 500 µg/dia. As idas à emergência cessaram. Houve melhora significativa da qualidade de vida. No entanto, ainda mantém quadros recorrentes de rinossinusite crônica agudizada.
Observou-se melhora da função pulmonar (VEF1 e CVF) comparando-se os dados antes (2012) e depois (2014) do uso de omalizumabe (Tabela 1). Porém, a melhora da função pulmonar é infrequente na literatura. Pérez-de-Llano et al.5 acompanharam 18 pacientes adultos com ABPA (16 asmáticos e 2 com fibrose cística) por uma média de 16 semanas e demonstraram melhora nos sintomas diários de asma e no VEF1 e redução do uso de CS. Tillie-Leblond et al.6 avaliaram 16 pacientes com asma e ABPA por 12 meses e mostraram redução no número de exacerbações e na dose de CS, sem alterações significativas na função respiratória.
Tabela 1 Parâmetros espirométricos.
Ano | 1994 | 2012 | 2014 | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pré-BD | Pós-BD | % Var | Pré-BD | Pós-BD | % Var | Pré-BD | Pós-BD | % Var | |||||||
Parâmetros | n | %P | n | %P | n | %P | n | %P | n | %P | n | %P | |||
CVF, l | 1,64 | 44,0 | 2,07 | 56,0 | 26,0 | 1,40 | 53,4 | 1,40 | 53,4 | 0,0 | 1,87 | 72,6 | 1,92 | 74,3 | 2,4 |
VEF1, l | 0,73 | 23,0 | 1,08 | 34,0 | 47,0 | 0,53 | 24,0 | 0,60 | 27,3 | 13,6 | 0,77 | 35,6 | 0,80 | 37,0 | 4,0 |
VEF1/CVF | 0,45 | 53,0 | 0,52 | 61,0 | 16,0 | 0,37 | 45,0 | 0,40 | 48,3 | 7,5 | 0,41 | 49,1 | 0,42 | 49,8 | 1,6 |
FEF25-75%, l/min | 0,34 | 9,0 | 0,55 | 15,0 | 62,0 | 0,19 | 7,5 | 0,24 | 9,6 | 29,0 | 0,23 | 9,5 | 0,27 | 11,2 | 18,7 |
BD: prova broncodilatadora; n: em valor absoluto; %P: em % do previsto; e Var: variação.
Os níveis de IgE total e de eosinofilia periférica pré-medicação eram de 511 UI/ml e 7% (266 células/mm3), respectivamente, sendo que um ano após o início do omalizumabe, reduziram para 477 UI/ml e 2% (108 células/mm3).
Os níveis de IgE total apresentaram queda após o início do omalizumabe. Esse dado contradiz a literatura, já que se espera que a IgE total permaneça elevada durante todo o tratamento devido à formação de imunocomplexos e depuração mais prolongada desses. Entretanto, a ABPA é uma doença com fases de remissão e de exacerbação, o que poderia justificar a variação dos níveis de IgE total.
Os eosinófilos também diminuíram. Eles poderiam inclusive estar subestimados no período pré-tratamento com omalizumabe, pois a paciente fazia uso de CS prolongado, o que torna a sua redução após o início da medicação ainda mais significativa.
A evolução clínica e laboratorial da paciente reforça os benefícios do omalizumabe na ABPA. Ele teve efeito poupador de corticoide e proporcionou melhora dos sintomas e do controle da asma, permitindo inclusive a suspensão do CS. Outros estudos também reforçam os efeitos positivos do omalizumabe como terapia aditiva em pacientes com ABPA refratários ao tratamento convencional.3,5-7
Sendo assim, o omalizumabe pode ser considerado como uma terapia adicional no tratamento de casos de ABPA refratária. Entretanto, novos estudos e com maior casuística são necessários para determinar o real papel dessa medicação nesse perfil de pacientes, assim como a sua dose efetiva e o seu tempo de tratamento.