versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 19-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3787
O oncocitoma renal é um tumor de origem tubular renal, que representa entre 3-7% de todos os tumores renais sólidos.1 É uma neoplasia renal raramente relatada, constituída por uma população pura de oncócitos, que geralmente se comporta como uma entidade benigna. Os homens são mais acometidos e a idade média da apresentação ocorre entre a sexta e sétima décadas.2 O diagnóstico pré-operatório é frequentemente difícil, pois a lesão pode mimetizar o carcinoma de células renais tanto clínica como radiologicamente. Pacientes transplantados em regimes imunossupressores de longa duração têm prevalência destacadamente elevada de neoplasias tais como câncer de pele, distúrbios linfoproliferativos e carcinomas renais.3 No presente artigo, apresentamos um caso de oncocitoma renal em paciente transplantado renal com hematúria microscópica assintomática. A imaginologia diagnóstica incluiu ultrassonografia convencional, tomografia computadorizada e ultrassonografia com contraste. O objetivo do presente relato de caso foi destacar as características do realce do oncocitoma na US com contraste. Além disso, o caso ilustra a dificuldade de se chegar a um diagnóstico pré-operatório preciso, apesar do uso de modernos equipamentos de imagem.
Em 2012, um homem de 56 anos de idade recebeu um transplante renal de doador falecido com duas incompatibilidades de antígeno leucocitário humano (HLA), em virtude de insuficiência renal crônica relacionada a hipertensão arterial. O receptor era um ex-tabagista em hemodiálise há quatro anos. Não havia registros de transfusões de sangue ou transplante renal prévio. O tempo de isquemia fria foi de 17 horas. O regime imunossupressor de indução foi feito com Basiliximab. A imunossupressão de manutenção foi realizada com tacrolimus 0,1 mg/kg/dia, micofenolato e prednisona. Imediatamente após o transplante o paciente apresentou função tardia do enxerto e precisou de hemodiálise por uma semana, conseguindo mais tarde atingir uma função renal estável. O paciente atualmente tem creatinina sérica de 1,4 mg/dl, o que se traduz em uma taxa de filtração glomerular estimada de 55 mL/min/1,73m2. Quatro anos após o transplante renal, já em acompanhamento clínico ambulatorial, o paciente apresentou hematúria microscópica assintomática não glomerular confirmada pela ausência de dismorfismo eritrocitário na microscopia de contraste de fase da urina. O exame físico foi normal. A creatinina sérica estava em 1,7 mg/dL. Uma ultrassonografia revelou uma massa sólida no rim nativo esquerdo. Usando um transdutor convexo de 3,5 MHz (Aplio 400, Toshiba, Tóquio, Japão), foi realizada US com contraste com Sonovue® (Bracco Int; Milão, Itália) aplicado por injeção em bolus de 2,4 mL com uma cânula endovenosa 20-G, seguido de lavagem com 10 mL de soro fisiológico. O exame foi realizado usando imagens harmônicas com con traste e com baixo índice mecânico de 0,1. O exame foi documentado por meio de armazenamento digital das imagens com mais de 60 s no formato DICOM. As imagens mostraram uma massa hipervascular em relação ao restante do parênquima do rim nativo com realce heterogêneo e sinal de pseudocápsula (Figura 1). Análise quantitativa com curva tempo-intensidade foi realizada para calcular a quantidade de realce por contraste na massa e no restante do parênquima do rim nativo. Assim, na fase arterial a massa foi considerada hipervascular quando comparada ao parênquima remanescente (Figura 2).
Figura 1 Imagem de US com contraste mostrando massa hipervascular em relação ao parênquima remanescente do rim nativo com realce heterogêneo e sinal de pseudocápsula (setas).
Figura 2 (US com contraste) - Análise quantitativa com curva de tempo-intensidade. Na fase arterial, a massa foi considerada hipervascular em comparação ao parênquima remanescente.
Uma imagem de tomografia computadorizada confirmou a presença de um nódulo renal unilateral isodenso no polo superior (Figura 3).
Figura 3 Oncocitoma renal - tomografia computadorizada exibindo imagem da morfologia típica de uma lesão unilateral sólida e homogênea com isodensidade em comparação ao parênquima renal normal adjacente.
O paciente sofreu remoção total do rim esquerdo. O tumor de 2,5 cm de diâmetro era marrom avermelhado com bordas bem circunscritas que mimetizavam uma cápsula. Também foram encontrados vários nódulos de 2,5 cm, 0,7 cm e 0,5 cm de diâmetro, corroborando o diagnóstico de oncocitoma multicêntrico. Os achados microscópicos incluíram numerosas células tubulares com citoplasma granular abundante e núcleos grandes (Figura 4).
Figura 4 Esquerda - O tumor de 2,5 cm de diâmetro era marrom avermelhado, mais claro que o córtex, com bordas bem circunscritas que mimetizam uma cápsula e sem cicatriz central. Além disso, havia vários nódulos acinzentados pequenos e coalescentes espalhados por toda a massa. Direita - os achados microscópicos mostraram numerosas células tubulares com citoplasma granular abundante e núcleos grandes.
Após a nefrectomia, o paciente foi acompanhado por seis meses e apresentou função renal normal sem hematúria microscópica.
Uma vez que começamos a realizar o US com contraste em nossas instalações como pesquisa clínica, o comitê de ética aprovou o estudo de acordo com os requisitos legais locais. Foi obtido consentimento informado do paciente sobre uso de contraste e para a publicação do presente relato de caso.
A prevalência de hematúria na população de pacientes transplantados renais é de 12%.4
Em uma casuística, a etiologia mais prevalente para hematúria foi doença urológica maligna.5
Os carcinomas de células renais representam 5-6% de todos os casos de câncer.3 Enquanto a incidência geral de malignidade após transplante renal é 3-5 vezes maior do que na população geral, o risco de desenvolvimento de carcinoma de células renais é 15-100 vezes maior.6 A exposição mais prolongada a medicamentos imunossupressores é considerada como um possível fator de risco para câncer após transplante.6
Oncocitomas são os mais comuns tumores sólidos benignos do parênquima renal.7 Eles representam uma entidade distinta, relatada pela primeira vez por Zippel em 1942.8 Apenas em 1976 o oncocitoma renal foi reconsiderado por Klein e Valensi.9 Os autores publicaram um estudo retrospectivo a respeito de uma casuística de pacientes com oncocitoma, destacando o curso benigno da doença. A patologia representa 3-7% dos tumores renais2 e ocorre entre os 40 e 80 anos de idade, predominantemente em indivíduos do sexo masculino, e conta com alta prevalência entre tabagistas.9 Normalmente essas lesões são achados acidentais em exames realizados por outros motivos, mas hematúria é a mais queixa comum entre pacientes sintomáticos. Uma vez que esses tumores são frequentemente assintomáticos, deve-se realizar ultrassonografia renal uma vez por ano para abordar a questão.10
Macroscopicamente, esses tumores são localizados corticalmente, de tonalidade marrom clara ou ocre, homogêneos, bem circunscritos e normalmente apresentam uma cicatriz central.1 O presente caso, embora bastante parecido com a apresentação mais comum, não apresentava cicatriz central. A cicatriz central representa uma área avascular que se desenvolve à medida que o tumor cresce. O oncocitoma é composto unicamente por oncócitos.10 Acredita-se que a origem dessas células resida nas células intercaladas da porção cortical do túbulo coletor.1
Radiograficamente, os oncocitomas renais aparecem como massas sólidas vascularizadas na angiografia. Os achados incluem padrão em roda de carroça e nefrograma homogêneo.10 Não obstante, os carcinomas de células renais também podem ter essas características. Na tomografia, os oncocitomas são tipicamente hipervasculares, homogêneos e apresentam cicatriz central característica.
A ultrassonografia com contraste é uma técnica bem estabelecida na avaliação de lesões focais do fígado e outros órgãos com grandes vantagens na visualização e a caracterização de estruturas anatômicas e lesões em relação à ultrassonografia convencional. O uso de US com contraste em tumores renais possibilita a identificação de diferentes padrões de realce e áreas de perfusão. A US com contraste vem sendo defendida como a técnica de imaginologia preferencial para a avaliação de pacientes com insuficiência renal por conta da ausência de nefrotoxicidade.11 Alega-se que o método contribui para o diagnóstico diferencial de histotipos de tumores renais.12 Contudo, uma vez que o padrão hipervascular observado no presente caso é também relatado no carcinoma de células renais (CCR), a diferenciação entre oncocitoma e CCR, por US com contraste, é muitas vezes difícil por conta da coincidência de características de imagem.13 Além disso, a pseudocápsula que envolve a massa vista no US com contraste não é um sinal patognomônico do oncocitoma, uma vez que foi também observado no carcinoma de células renais.13 Portanto, a US com contraste, assim como a tomografia computadorizada, não é capaz de diferenciar o oncocitoma do CCR.14 O presente caso destaca as dificuldades de se chegar a um diagnóstico pré-operatório apesar do uso de técnicas modernas de imaginologia.
Pelo que sabemos, esse é o primeiro caso de oncocitoma renal em paciente transplantado renal assintomático com hematúria microscópica em que uma massa hipervascular com realce heterogêneo e pseudocápsula foi mostrada por meio da US com contraste, sugerindo doença maligna. Apenas quatro casos de receptores de transplante renal com oncocitomas em rins nativos foram relatados na literatura.15
Para concluir, um caso de hematúria assintomática devido a oncocitoma renal em rim nativo foi observado em um paciente de transplante renal. O acompanhamento do paciente não suscitou achados dignos de nota seis meses após a cirurgia. A US com contraste deve ser vista como uma ferramenta importante na avaliação da morfologia e do padrão de vascularização de lesões focais sem risco de nefrotoxicidade. No entanto, ainda não é possível diferenciar tumores benignos de tumores malignos.