versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.2 Rio de Janeiro fev. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018242.01662017
Neste texto, compartilhamos algumas inquietações e provocações produzidas durante nossa participação no 13º Fórum Internacional AWID (Associação para os Direitos das Mulheres e o Desenvolvimento, em sua sigla em inglês), um encontro feminista mundial, realizado entre os dias 8 e 11 de setembro de 2016 na Costa do Sauípe, na Bahia, Brasil. Este Fórum ocorre a cada 3 ou 4 anos, em uma região diferente do mundo, incluindo cidades como Istambul/Turquia, Cidade do Cabo/África do Sul, Bangkok/Tailândia e Guadalajara/México. Dentre os objetivos do Fórum, destacam-se: “1) a celebração das conquistas dos últimos vinte anos alcançadas por diversos movimentos sociais e analisar criticamente os aprendizados que podem ser levados adiante; 2) a avaliação da realidade atual para identificar as oportunidades e ameaças no que tange à promoção dos direitos das mulheres e de outros grupos oprimidos; c) a busca por estratégias para fortalecer a solidariedade e o poder coletivo entre os diversos movimentos; 4) inspiração, energia e renovação da força e do propósito”1. Marcado primeiramente para maio de 2016, o evento foi adiado em função da epidemia de ZIKA.
Considerada inicialmente um problema local (do Nordeste brasileiro), a epidemia rapidamente tornou-se uma questão global2, afetando a vida de inúmeras mulheres e com muitas discussões, especialmente sobre bioética e direitos sexuais e reprodutivos, promovidas pelos movimentos feministas e de mulheres3,4. Finalmente, o Fórum aconteceu em setembro, reunindo cerca de 2.000 participantes oriundas/os de uma ampla diversidade de movimentos, setores e países. Neste encontro, cujo tema foi “Futuros Feministas: construindo poder coletivo em prol da justiça social”, destacou-se especialmente a presença expressiva de grupos tradicionalmente marginalizados e subrepresentados em espaços coletivos de discussão, entre elas: ativistas feministas jovens; mulheres negras e indígenas; trabalhadoras do sexo; mulheres com deficiência; ativistas trans, intersex e ativistas migrantes. Além disso, se nos Fóruns anteriores a presença masculina era tímida, nessa edição pudemos ver um número expressivo de homens, cis e trans, dialogando com diferentes grupos em torno de temas vinculados à justiça social e com espaços específicos voltados para reflexões sobre a participação masculina em temáticas caras ao feminismo e a saúde coletiva no contexto brasileiro, como os direitos sexuais e reprodutivos; a prevenção das violências contra as mulheres e meninas em espaços privados e públicos; a participação social no enfrentamento das desigualdades em saúde, entre as mais importantes. E dentre esses homens, estivemos nós três: ativistas-pesquisadores que, há vários anos, dedicamo-nos ao desenvolvimento de ações coletivas, pesquisas e articulações em rede para trabalho com homens, a partir de forte vinculação aos princípios e horizontes feministas.
Essas iniciativas tem por base alguns pressupostos, entre eles: 1) o reconhecimento de que o projeto feminista de transformação social se inscreve num amplo movimento em prol da reconfiguração simbólica, institucional e de práticas que subordinam as mulheres e os femininos; 2) a defesa de que tal transformação exige também alterações substanciais no modo como homens e masculinidades são produzidas em nossa sociedade, ou seja, é preciso rever as várias formas a partir das quais o machismo e o patriarcado se conformam em nossa vida cotidiana e em nossas instituições, valores e símbolos. Assim, como estratégia para pensarmos limites e possibilidades para a inserção dos homens na luta feminista, propusemos para o Fórum uma sessão específica intitulada “Os feminismos e os homens: transformando práticas, instituições e símbolos”. Esta proposta buscou dialogar com os eixos de discussão do Fórum tais como democracia, violências, respeito às diferenças. Vale destacar que a sessão de abertura contou com a presença de um homem trans, contribuindo também para os debates sobre masculinidades.
Consideramos que os atuais desafios dos feminismos e dos movimentos de mulheres não são relacionados apenas às próprias mulheres. É a partir deste entendimento que inserimos as ações e reflexões com/sobre os homens e as masculinidades, como por exemplo, a articulação das mulheres negras, com a qual temos dialogado e compartilhado pautas de reivindicação no campo da saúde, quando trazemos à baila o genocídio da população jovem, sobretudo de homens, negros e pobres. Nossas intervenções foram orientadas a partir de narrativas sobre uma trajetória de trabalhos coletivos que já completam quase 20 anos, durante os quais colecionamos aprendizagens e vivenciamos impasses, do ponto de vista político, ético e conceitual.
Essa trajetória se inaugura no Brasil e em outros países da América Latina, especialmente a partir da década de 19905, quando alguns homens e mulheres, organizações da sociedade civil e grupos de pesquisa decidem atuar diretamente com populações masculinas, enfrentando o desafio de trabalhar com homens, a partir de uma perspectiva feminista e/ou de gênero. Para falar dessa trajetória, a melhor forma que encontramos foi a de compartilhar inquietações, considerando especialmente o atual momento político brasileiro (com reverberações e dinâmicas semelhantes em outros países da região), o qual nos impulsiona a falar sobre “masculinidades em tempos de golpe machistas e patriarcais”, na medida em que, por um lado, durante o processo que resultou no afastamento da presidenta Dilma Roussef, houve recorrentes referências a argumentos sexistas, com vistas à desqualificação moral da mesma, jogo que teve início ainda na campanha eleitoral de 2014 e se estendeu após o seu afastamento da Presidência. Por outro lado, tal tendência se confirma na composição de um ministério formado exclusivamente por homens e uma clara rejeição à agenda feminista pelo atual governo assumido pelo ex-vice-presidente Michel Temer e sua equipe.
Assim, enfatizamos que a realização deste evento acontecia em um triste momento da história política brasileira, que certamente tem produzido impactos sobre a vida de mulheres e homens concretos, mas também nas formas simbólicas e culturais a partir das quais produzimos feminilidades e masculinidades, nos fazendo re-encontrar com desafios que talvez nos pareciam já superados. Vivemos tempos difíceis em que retrocessos ameaçam a jovem democracia brasileira e produzem repercussões indeléveis ao campo de estudos e intervenções feministas no Brasil e em outros países. Afinal, situações críticas desta natureza têm ocorrido em vários outros países, como abordado na sessão de abertura, mediada por Sonia Correa, cocoordenadora do Observatório de Sexualidade e Políticas da ABIA (SPW). Preocupa-nos sobremaneira os impactos desse cenário no campo de estudos e intervenções políticas sobre homens e masculinidades, que tomam o feminismo como marco teórico e ético-político.
Assim buscamos, a partir da fala de cada um, trazer elementos para o debate sobre o trabalho com homens a partir de leituras feministas, ancoradas nas nossas ações como ativistas e pesquisadores, e em estreito diálogo com as políticas públicas. Procuramos ainda, por meio de recortes específicos de nossa atuação, fornecer aos/às participantes, uma visão ampla sobre impasses, mas também possibilidades que o contexto contemporâneo nos apresenta. Em linhas gerais, enfatizamos que a transformação das relações de gênero para promoção da justiça social, com igualdade e democracia, configura-se, entre outros caminhos possíveis, pela educação em sexualidade, desde que reconheça a necessidade de reflexões sobre processos de naturalização acerca dos lugares sociais de homens e mulheres e o respeito às diferenças.
Infelizmente, temos assistido, em diferentes países, o desenvolvimento de um projeto de desmonte do percurso percorrido, desde os fins dos anos de 1990, no que se refere à educação em sexualidade, assumida no contexto brasileiro pela colaboração entre os setores de saúde e educação, além da forte presença de organizações da sociedade civil. Na contramão dos direitos humanos, debates, de base fundamentalista, que desconsideram a consistência teórico-epistemológica do campo dos estudos de gênero, insistem em falácias como “ideologia de gênero” e vêm tomando corpo em diferentes países da América Latina. A adoção dessa terminologia por parte de setores conversadores, sobretudo de cunho religioso cristão, revela um espaço de tensões e disputas no qual está em jogo o respeito social sobre as diversidades de gênero e de orientação sexual e o ideal de igualdade entre homens e mulheres.
Nesse sentido, a proposta de censura à educação em sexualidade nas escolas (camuflada na expressão “escola sem partido”), as críticas ao uso de materiais educativos relacionados ao enfrentamento da homofobia (pejorativamente nomeado de “kit gay”), a perseguição ao termo “gênero” nos planos de educação pública exemplificam apenas algumas das iniciativas que têm ocupado os noticiários, as disputas políticas e as campanhas eleitorais recentes em todo o país6. Nesse pensamento fundamentalista, a possível igualdade entre homens e mulheres passa a significar um perigo para a manutenção do status quo vigente baseado na assimetria e hierarquia de gênero. Reconhecer o desmonte da educação em sexualidade no contexto atual brasileiro significa apontar para a necessidade urgente de marcar uma posição de luta a favor da laicidade, da equidade e da igualdade entre homens e mulheres, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero.
Do mesmo modo, precisamos alertar para resistências ao reconhecimento das mulheres em espaços de representação política, crescente nos últimos anos, bem como uma teia complexa que associa o campo da política a antigas tradições patriarcais. No Brasil, ao assumir-se a possibilidade de uma mulher no mais alto cargo de representação política nacional, presenciamos resistências de diversas ordens, desde a recusa ao uso do termo “presidenta”, aos adesivos de carros que ilustram estupro à presidenta, atribuição de “Leviana” à Dilma, em campanha eleitoral; grito de “Dilma, vá tomar no cu!” em evento de abertura da Copa do Mundo, piadas fálicas a partir de deslizes da presidenta em discurso público e o fatídico episódio “Bela, recatada e do lar” (alusão de material supostamente jornalístico sobre a mulher do atual presidente). Trechos dos discursos de alguns deputados federais favoráveis à abertura de processo de impeachment da presidenta (em 17/04/2016) publicados no portal da Câmara dos Deputados ilustram antigas tradições na conformação da política formal: “Pela minha família! Meus filhos, Estevão, Amanda, pela minha esposa, pelos meus pais […]”; “por minha família, pelas pessoas de bem”; “pela minha neta que tá fazendo aniversário”; “pelo meus filhos Bruno e Felipe”; “por minha filha Manoela que vai nascer”. “Pela Sandra, pela Érica, pelo Vítor, pelo Jorge, e por meu neto que está chegando”; “Pela honra do meu pai que já ocupou essa cadeira por duas vezes”.
A despeito de nossa posição sobre o governo em questão e sobre a legitimidade do golpe disfarçado de impeachment, cujos efeitos já são sentidos, os enunciados que acompanharam a votação da câmara dos deputados (a maioria homens) em relação ao encaminhamento do processo de impedimento da presidenta Dilma Roussef (primeira mulher eleita democraticamente no Brasil) e a conformação dos ministérios pelo governo golpista (exclusivamente composto por homens, brancos, ricos e supostamente heterossexuais) deixaram claro que muito ainda temos que aprender e muito ainda há por mudar no campo das relações de gênero, tanto do ponto de vista simbólico, como nas diversas formas de socialização e institucionalização do poder, que favorecem a supremacia da masculinidade hegemônica7.
Os discursos dos parlamentares e o conjunto de medidas adotadas com vistas a retroceder em importantes avanços no campo dos direitos das mulheres e da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis), em geral, produzem figurações8 que ilustram formas contundentes a partir das quais o sistema sexo-gênero opera na conformação das relações de poder masculino, seja em espaços de intimidade, seja na esfera considerada pública seja nas fronteiras ilusórias entre ambas. Esse processo produz modos diversos de opressão sobre/nos sujeitos e sobre/nas instituições, a partir da produção de verdades e modos perversos de subjetivação (e de exclusão).
O enaltecimento da “família tradicional” nos discursos dos nossos “representantes” não é por acaso. Com a exaltação a este inteligível, normal ou “modelo base” de família (na medida em que as outras, quando reconhecidas, são nomeadas de “modelos alternativos”), esses deputados não apenas afrontam o decoro parlamentar (em seu sentido mais amplo) e o zelo pelo bem e pela ordem pública (que jamais poderia ser orientada por interesse e honrarias pessoais ou extensíveis a seus familiares), mas também produzem, como efeito, a (re)afirmação de um modo de viver a sexualidade (exclusivamente para a reprodução) e de um modelo econômico de arranjo familiar voltado à reprodução, material e simbólica,marcadamente machista e patriarcal, de base opressora e escravocrata, em que o patriarca configura-se como figura central.
No jogo infame entre políticas privadas e práticas públicas (que rompe com a arbitrária e útil separação entre público e privado), há um claro descompasso entre o acúmulo de produções teóricas e políticas sobre feminismo, gênero e sexualidade e as tacanhas manobras no exercício/manutenção de práticas tradicionais de exercício de poder.
Além disso, vale ressaltar que a linha que costura essa trama, discursiva e material, que ordena jogos de poder, configura-se a partir de postulados heteropatriarcais, que reafirmam a posição e a função masculina de dominação9. Ainda que, como destaca Parry Scott10, o patriarca seja uma figura múltipla e mutável, ora, “a encarnação da opressão das mulheres e das classes trabalhadoras”, ora “o símbolo da unificação nacional pela sua contribuição à formação da pátria”, os enunciados na sessão da Câmara dos Deputados enaltecem a caricatura de um modelo patriarcal de família e de ordenamento de gênero que nos parecia (pelo menos na dimensão do desejo) muito distante, no tempo e no espaço.
Era, pelo menos assim que pensávamos, há quase 20 anos, quando do lançamento do livro “Homens e masculinidades: outras palavras”11. O cenário era outro. Como fruto de um trabalho coletivo que teve início em 1995, impulsionado pelas estimulantes discussões na Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo de 1994 e na Conferência Internacional da Mulher, em Beijing, ocorrida em 1995, aquele grupo tinha algo em comum. Todos/as reconheciam o percurso histórico e a importância do legado feminista e do movimento por direitos sexuais para o modo como as experiências masculinas, as ressignificações simbólicas sociais sobre masculinidade: […] Ao procurarem definir, de modo amplo, nos âmbitos público e privado, seu espaço na política, na economia e nas questões relativas à sexualidade, mulheres e homossexuais organizaram-se para contestar a discriminação que sofriam, propondo outras mentalidades, outros comportamentos, outras perspectivas, “outras palavras” para as relações entre os sexos, questionando sobretudo a masculinidade hegemônica: branca, heterossexual e dominante. Naquele momento, otimistas, pensávamos os efeitos de deslocamento produzidos pelo feminismo sobre os homens e sobre a ordem simbólica da masculinidade.
Tais deslocamentos provinham, sobretudo, das conquistas dos movimentos de mulheres e LGBT, que reivindicava, de modo mais (ou menos direto) uma ressignificação simbólica da masculinidade. Hoje, os desafios certamente são outros, marcados por um cenário menos otimista e mais preocupante. Hoje, precisamos trabalhar a partir de cartografias de controvérsias, como nos convida a teoria ator-rede12, pois, se por um lado, homens e masculinidades são diversos – para além do sexo e da sexualidade (tomados muitas vezes como binários) e homens também são “afetados” por modelos machistas e patriarcais (já que as principais causas de morte dos homens são externas, como os episódios de violência e acidentes de trânsito); por outro, lugares de poder e violência são protagonizados por homens (homens são os que mais matam) e modos de exploração econômicas e políticas são em grande maioria orquestradas por homens e baseadas em modelos patriarcais e machista de relação.
Em linhas gerais, nossa experiência no Fórum AWID, reforça nossas convicções de que mudanças estruturais partem do envolvimento dos homens (década de 1980), mas é preciso ir além e que modos de organização da masculinidade não estão apenas em corpos de homens, mas se reproduzem em instituições e símbolos. Enfim, no jogo dessas controvérsias que nos desafiam, esperamos que as reflexões produzidas neste encontro possam nos ajudar a produzir ferramentas teóricas criativas para entender o cenário político atual e para seguir projetando “outras palavras”, de modo continuar alimentando nossa utopia por um mundo melhor, com justiça social e equidade de gênero.