versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.4 São Paulo out. 2019 Epub 04-Nov-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190211
Os achados típicos de índices de deformação miocárdica (IDM) em muitas doenças cardíacas, o baixo custo do exame ecocardiográfico, a ampla disponibilidade, a vasta implementação dessa ferramenta para a prática clínica e seu valor prognóstico têm permitido a detecção da disfunção miocárdica mais precocemente do que a medição tradicional da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE).1 Além disso, há padrões típicos de IDM nas diferentes formas de hipertrofia: valores reduzidos do IDM septal na cardiomiopatia hipertrófica (CH) ou onde a hipertrofia for mais acentuada, ou redução segmentar nos portadores da mutação em estágio pré-clínico da doença, antes do desenvolvimento da hipertrofia;2 preservação apical na amiloidose;3 deformação miocárdica em padrão listrado na cardiomiopatia de armazenamento de glicogênio (PRKAG2);4 e redução do strain longitudinal subepicárdico na doença de Anderson-Fabry.5 Na hipertensão com hipertrofia concêntrica e excêntrica, os padrões do IDM estão relacionados a diferentes padrões geométricos,6 embora frequentemente eles se encontrem preservados nos atletas.4
Em relação à confiabilidade do IDM em máquinas e fornececedores diferentes, foi demonstrada uma maior precisão desses índices quando comparados com as medições por ecocardiografia convencional, além de se mostrarem confiáveis para a prática ecocardiográfica diária.7
Em estudo publicado sobre o mesmo tema deste periódico, os autores avaliaram o strain longitudinal global do VE em 45 pacientes, divididos em 2 grupos: pacientes com CMH e pacientes com CMH e HAS, e demonstraram que o strain diminuiu no último grupo em relação ao primeiro.8 São evidentes as diferenças entre os dois grupos no tocante à idade, ao índice de massa corporal (IMC) e à pressão arterial. Além disso, vários estudos já demonstraram que o strain longitudinal global pode ser afetado por essas variáveis, como foi demonstrado em um estudo com 266 pacientes saudáveis (39,2 ± 17,5 anos, 137 mulheres) submetidos à avaliação ecocardiográfica transtorácica. Adionalmente, foi observada uma progressiva redução do strain longitudinal global, conforme o aumento da idade em décadas.9 A síndrome metabólica também pode desempenhar um papel importante na deformação miocárdica, como demonstrado em um estudo com 384 pacientes agrupados conforme o IMC (peso normal < 25 kg/m2, sobrepeso 25-29 kg/m2, e obesidade ≥ 30 kg/m2), quando comparados com o grupo controle saudável. Independentemente da presença ou não de diabetes, o sobrepeso e a obesidade prejudicam a fração de ejeção do VE e o strain longitudinal global.10 Curiosamente, Russell et al.,11 foram os primeiros a descreverem um novo método não invasivo para avaliar o trabalho miocárdico utilizando uma curva de pressão/deformação por ecocardiografia.11 Em um modelo experimental em cães, foi demonstrada redução significativa do strain do VE após a constrição da aorta. Em contrapartida, a área da curva de pressão/deformação do VE não mudou, o que significa que o trabalho miocárdico não parece ser afetado pelo aumento da pós-carga, mas o strain longitudinal global pode ser alterado transitoriamente pelo padrão hemodinâmico.12 Consequentemente, nós poderíamos ser mais cautelosos ao estratificarmos a mesma cardiomiopatia usando simplesmente o strain longitudinal global, sem levar em conta a importância da pós-carga. Além disso, um estudo anterior, que comparou 80 pacientes hipertensos, 80 pacientes com CMH e 80 controles, mostrou que o strain longitudinal foi menor nos pacientes com CMH, e também que o melhor parâmetro para diferenciar ambas as doenças foi a razão entre o IDM das camadas do endocárdio e epicárdio. Entretanto, esse parâmetro não foi analisado nesse estudo.13
A obstrução do trato de saída do VE, definida por gradiente máximo maior ou igual a 30 mmHg em repouso ou ao teste provocativo, está presente em aproximadamente dois terços dos pacientes com cardiomiopatia hipertrófica.14 Essa obstrução dinâmica leva ao aumento de pós-carga no ventrículo esquerdo, o que pode prejudicar o próprio strain longitudinal global, como mencionado anteriormente. Contudo, os autores desse estudo não mencionaram essa característica que certamente afeta a deformação miocárdica. A espessura do miocárdio e, principalmente, a presença de fibrose afeta negativamente o prognóstico dos pacientes. Ambos os parâmetros não foram descritos nesse estudo, mas sabe-se que eles estão relacionados com a redução do strain longitudinal global do VE.15 Quando o trabalho miocárdico foi analisado nos indivíduos com cardiomiopatia hipertrófica, uma variável chamada “trabalho construtivo global” foi o único preditor de fibrose do VE em análise multivariada (OR 1,01; IC 95%: 0,99 - 1,08, p = 0,04).16 Um valor de corte de 1,623 mmHg% (AUC 0,80; IC 95%: 0,66-0,93, p < 0,000) foi capaz de prever a fibrose miocárdica com boa sensibilidade e razoável especificidade (82% e 67%, respectivamente).
Em suma, o IDM é uma ferramenta importante para ajudar a distinguir a CMH de outras cardiomiopatias, além de apresentar valor para impacto de estratificação de risco. Todavia, é extremamente recomendado levar em consideração o padrão hemodinâmico sempre que os dados do IDM forem analisados. Além disso, a presença de sobreposição de cardiomiopatia hipertrófica e hipertensão representa um desafio diagnóstico. O trabalho miocárdico pode desempenhar um papel na solução desse problema.