versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.22 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400040011
The Brazilian Health Ministry establishes that the entrance to primary health care services must occur through the User Embracement with Risk Classification. Product of the National Humanization Policy, the User Embracement advocates for new sensibilities with emphasis on affective and relational dimensions. However, the reorganization of the access by the guidelines of the Risk Classification institutionalizes a rational device in favor of optimizing care offers. Considering the gap between normative prescriptions and individual experiences, an observation was performed in the entrance of a primary care service of Rio de Janeiro with the aim to apprehend the strategies deployed by the social actors involved - users, health professionals and managers. The analysis of the material collected in the field illustrates the User Embracement as a polysemic category constitutes by a tension between two poles: rationality and experience, control and care.
Key words: primary health care; user embracement; humanization of assistance
O Ministério da Saúde brasileiro estabelece que a porta de entrada da atenção básica ocorra pela modalidade de assistência denominada Acolhimento com Classificação de Risco. Conforme a Cartilha de Serviços da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro1, toda unidade primária deve contar com uma sala de recepção de usuários para o Acolhimento.
Fruto da Política Nacional de Humanização, o Acolhimento pretende "reduzir as filas e o tempo de espera, com ampliação do acesso e atendimento acolhedor e resolutivo, baseado em critérios de risco"2. Esta normatização determina a estratificação das demandas, com o objetivo de substituir o formato tradicional de organização do atendimento segundo a ordem de chegada, por uma nova lógica, ancorada no princípio de equidade.
A rotina prescrita estabelece que profissionais de enfermagem sejam alocados em espaço próximo à recepção, para "acolher" em período integral quem busca assistência. A partir de uma "capacidade ampliada de escuta e análise das necessidades de saúde da população"3, o profissional deve avaliar se o usuário precisa de atendimento imediato ou se pode ser agendado retorno, conforme critérios do Protocolo para Classificação de Risco4. A proposta visa produzir uma nova cultura de acesso ao sistema, que possibilite garantia de assistência, independente da ordem de chegada. A validade do princípio de equidade na assistência em saúde reside no atendimento a cada pessoa de acordo com a sua necessidade, evitando "diferenciações injustas"3. O discurso oficial aproxima as noções de equidade e justiça, na defesa da estratificação das necessidades da população:
A fila e a cota de 'consultas do dia' (senhas limitadas), além de submeterem as pessoas à espera em situação desconfortável e sem garantia de acesso, são muitas vezes o contrário do princípio de equidade, na medida em que o critério mais comum de acesso, nesses casos, é a ordem de chegada.3
A Classificação de Risco deve orientar a escolha da intervenção, bem como o tempo em que esta ação precisa ocorrer. Segundo a Cartilha do Acolhimento com Classificação de Risco4, cada quadro clínico possui gradientes de risco, simbolizados em cores. Por exemplo: uma queixa de cefaleia, se acompanhada por rigidez na nuca, o código é vermelho; dor moderada com vômitos é amarelo; dor leve é verde; dor crônica ou recorrente sem piora recente é azul. Os casos vermelhos e amarelos são prioritários e demandam atendimento imediato. Contudo, frente à escassez de recursos na atenção primária, muitos casos são encaminhados para uma unidade de pronto-atendimento ou hospital próximo. Os quadros categorizados como verdes e azuis devem ser atendidos na própria unidade básica. Dentre as situações que contam com demanda para atenção primária, a deliberação em torno da necessidade de consulta imediata com especialista depende da avaliação do profissional do Acolhimento. Ele é a autoridade que pode - e deve - decidir quem necessita de pronto-atendimento e quem pode ter o retorno agendado.
Para além da reorganização da oferta de serviços a partir da Classificação de Risco, a concepção do Acolhimento como projeto de (re)humanização no âmbito do sistema público de saúde conjuga um posicionamento ético-político inovador. Pretende substituir a lógica centrada em procedimentos por uma perspectiva que atribui ao usuário uma agência na tomada de decisões. Na construção ideológica do Acolhimento se apresentam conceitos como autonomia e solidariedade, que refletem o movimento pela inclusão dos diferentes atores sociais em uma atuação colaborativa que permita a "construção permanente e solidária de laços de cidadania"2. Em última instância, defende-se o Acolhimento como uma "tecnologia do cuidado"3 capaz de contribuir para a ampliação do vínculo entre sistema, seus representantes e usuários.
Este artigo resulta de pesquisa empreendida na porta de entrada de uma unidade básica de saúde, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Os resultados apresentados partem de duas indagações principais: como os sujeitos percebem e respondem às regras do sistema? Na prática, como o ideário é implementado?
Estudos anteriores5 , 6 retrataram os desencontros entre teoria e prática, discursos normativos e a realidade da assistência pública no Brasil. Neste sentido, este estudo pretende contribuir para a reflexão em torno da categoria Acolhimento, a partir de uma análise micropolítica de emoções, enquanto dispositivo de visibilidade dos sentidos e estratégias mobilizados pelos distintos sujeitos, enredados em jogos simbólicos de identificação e diferenciação, hierarquização e poder.
Foi realizada observação participante na porta de entrada de uma unidade básica de saúde da cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de apreender as lógicas que regem o Acolhimento e os sentidos atribuídos pelos diferentes atores sociais envolvidos. A metodologia qualitativa de pesquisa foi escolhida por possibilitar uma investigação aprofundada sobre as interações desenroladas neste cenário, isto é, das situações sociais nas quais cada sujeito revela-se, ao mesmo tempo, produto e produtor.
A unidade básica de saúde escolhida como campo de investigação foi inaugurada em 1947. Sua área de cobertura abrange mais de 50 mil pessoas, residentes na região central da cidade do Rio de Janeiro. A estrutura do prédio é antiga e demanda reformas. No momento da investigação, as demandas prioritárias consistiam em uma sala para curativos e um laboratório para análises clínicas.
A população da área de cobertura da unidade pertence majoritariamente a camadas populares, com baixo nível de escolaridade e reduzido poder de acesso a bens. São pessoas que se aglomeram diariamente em longas filas, na disputa por vaga para atendimento imediato. No período da observação, a média nas filas era de 40 pessoas por turno.
Uma pesquisa realizada por residentes de saúde coletiva na porta de entrada da unidade revelou que, de dezembro de 2011 a fevereiro de 2012, 3.132 pessoas foram "acolhidas". Deste total, mais de 65% eram do sexo feminino. Outro dado refere-se aos motivos da procura por assistência: 594 pessoas com queixas de problemas de pele; 471 consultas de "rotina"; 440 relatos de dor; 359 por hipertensão e/ou diabetes; e 280 com "sinais vagos". Nenhum caso foi avaliado como urgência, simbolizada pela cor vermelha na Classificação de Risco. Apenas 6 foram classificados como amarelos, 460 verdes e 2.667 azuis. Ainda, 2.176 pessoas conseguiram vaga para atendimento imediato com profissionais de diversas especialidades, como clínica médica, dermatologia, ginecologia e obstetrícia, pediatria e pneumologia. Do restante, 200 tiveram sua consulta agendada para outro dia, 415 foram encaminhadas para sua unidade de referência, 27 para unidade de pronto-atendimento e 17 para o hospital. Estes dados convergem com os achados da observação empreendida.
A entrada no campo ocorreu com o objetivo de investigar os caminhos percorridos pelos sujeitos até a chegada ao sistema de saúde. No entanto, as observações iniciais, conduzidas na porta de entrada da unidade e em reuniões de profissionais da equipe de assistência, revelaram a centralidade do tema Acolhimento, o que acarretou a redefinição do objeto de estudo. A partir desta decisão, foram empreendidas cerca de 60 horas de observação participante, de janeiro a agosto de 2012.
Neste período, a unidade encontrava-se em processo de implementação das regras do Acolhimento com Classificação de Risco, segundo determinações da Secretaria Municipal de Saúde. A investigação incluiu a frequência em reuniões semanais de profissionais do serviço, voltadas ao debate acerca das determinações do Acolhimento; participação em interações informais entre profissionais e gestores; e acompanhamento de 210 acolhimentos. Os dados observados foram registrados em um diário de campo.
O exame das narrativas produzidas no Acolhimento permitiu acesso às experiências, a partir de uma dialética entre o polo do evento e o da significação, entre sentido e referência, entre a singularidade e subjetividade da experiência, e a objetividade e intersubjetividade da linguagem, das instituições e de estratégias legitimadas socialmente7.
O Acolhimento iniciava diariamente às 7h30 e às 12h30. Antes do início de cada turno, as pessoas se organizavam em filas para aguardar atendimento. A separação das filas era estabelecida pelos próprios usuários, segundo especialidades médicas. Quando o Acolhimento era aberto, um segurança permanecia do lado de fora da sala, controlando o acesso.
O Acolhimento ocorria em uma pequena sala no térreo, próxima à entrada lateral da unidade. Na porta havia uma placa com a inscrição "Acolhimento" e, abaixo, papéis com instruções, nos quais constava a palavra "Triagem". Havia também um papel com a frase: "A prioridade não é exclusivamente por ordem de chegada". No mural fora da sala, um cartaz informava: "Você sabia... que a triagem é chamada de Acolhimento?".
Na sala, em frente à porta, havia duas mesas, uma para cada profissional, com uma cadeira para o usuário. Os profissionais ficavam sentados, com visão para a porta. Cada mesa tinha uma gaveta na qual os profissionais deixavam as senhas disponíveis para atendimento naquele turno. Cada senha era identificada com uma cor correspondente à especialidade clínica, o nome do médico e um número, associado à ordem de chamada para a consulta. Sobre cada mesa ficavam duas folhas com a Classificação de Risco no Acolhimento e informações sobre as cores referentes aos sintomas e diagnósticos, além de duas pastas com os endereços correspondentes à área de cobertura de unidades básicas próximas.
Segundo a regra de regionalização da Secretaria Municipal de Saúde1, cada unidade de saúde deve atender apenas usuários de sua área de cobertura, determinada por endereços residenciais. Com a recente inauguração de uma Clínica da Família na região, esta pasta era recorrentemente consultada, pois muitos usuários matriculados na unidade foram realocados para lá.
A chamada para atendimento ocorria segundo a especialidade. Cada profissional atendia uma pessoa por vez. Esta primeira etapa era denominada Triagem pela equipe, o que revela a prevalência do modelo tradicional de organização do atendimento pela ordem de chegada. Após o esvaziamento das filas e o término da distribuição das senhas, um profissional de enfermagem permanecia no chamado Acolhimento. Segundo uma enfermeira: "agora que acabaram os números (referindo-se às senhas para consulta imediata), tenho que ver qual é o problema de cada um".
Após algum tempo de observação constatou-se que não era possível diferenciar o atendimento na Triagem e no Acolhimento. Cada usuário, autorizado pelo segurança a entrar na sala, sentava-se diante do profissional, que indagava sua(s) queixa(s). Depois do relato, o profissional buscava esclarecer o pertencimento à área de cobertura da unidade. Em caso negativo, o usuário era encaminhado para o serviço de referência. Este tipo de encaminhamento era frequente e, por vezes, causava reações de revolta dos usuários, que referiam sentir-se "indignados pela falta de atendimento" [diário de campo].
Para as pessoas pertencentes à área de cobertura da unidade, as senhas eram majoritariamente distribuídas pela ordem de chegada. A principal diferença consistia na existência ou não de vagas disponíveis para consulta imediata. Quando as senhas terminavam, iniciava-se o que era nomeado pela equipe como Acolhimento, quando o profissional despendia mais tempo para avaliar o caso. Ele decidia por: agendar a consulta; solicitar retorno em outra data para tentativa de nova vaga; ou conceder senha extra para atendimento imediato. A concessão de senhas extras gerava conflitos entre as equipes, pois alguns médicos se recusavam a atender a um número superior a 16 pessoas por turno (limite estabelecido pela Secretaria Municipal de Saúde, por período de 4 horas de trabalho).
Durante reunião dos profissionais de saúde da unidade acerca da necessidade de implementação efetiva do Acolhimento, o diretor afirmou:
Aqui cada um faz o que quer, então, você precisa ganhar a pessoa na ideia; não adianta impor, pois não há como ter controle; é necessário convencer os profissionais a seguir a nova proposta. [diário de campo]
O documento oficial do Ministério da Saúde destaca que "há acolhimentos e acolhimentos"3, apontando múltiplas perspectivas e intencionalidades por parte de seus agentes. A investigação revelou que cada profissional desempenhava as diretrizes do Acolhimento segundo o seu entendimento, o que acarretava diferentes reações dos usuários.
A proposição do Acolhimento resulta da Política Nacional de Humanização2. Trata-se de um projeto de (re)humanização das relações no sistema público de saúde, voltado à afirmação da democratização do direito à saúde. O foco incide sobre a pessoa, enquanto sujeito de direitos e, especialmente, na saúde como direito legítimo de todo cidadão brasileiro. A ênfase recai sobre a primazia da experiência individual dos envolvidos na assistência em saúde, com vistas ao estabelecimento de "vínculos solidários"4.
Contudo, a reestruturação do acesso à assistência centrada nas regras da Classificação de Risco evidencia a preeminência de uma racionalidade tecnocientífica ancorada no ideal universalista. Neste contexto, a legitimidade do usuário como agente de seu processo saúde/doença/cuidado permanece subordinada a diretrizes institucionais. O formato tradicional de atendimento segundo a ordem de chegada é substituído pela lógica queixa-procedimento. Neste horizonte, aparentemente objetivo, a falta de consenso conduz a interpretações dos critérios de acesso, revelando distintos modos de gestão do trabalho por parte dos agentes de saúde. Por outro lado, os "sujeitos" do Acolhimento compartilham e negociam estratégias de mobilização para enfrentar os gargalos do sistema.
As interações observadas no Acolhimento indicam a emergência de estratégias singulares, na contramão de uma proposta de uniformização das práticas. Se, por um lado, os gestores determinam que a oferta de vagas para atendimento imediato deve se restringir a quem "realmente precisa" [fala de um gestor], segundo os critérios de Classificação de Risco; por outro, na prática, uma enfermeira revelou que "a verdade é que a gente dá número (senha para atendimento) para todo mundo".
Diante do longo tempo de espera nas filas e da imposição da regra da regionalização, por vezes os usuários expressavam indignação. Na fala de uma enfermeira: "é muito difícil o paciente aceitar que não será atendido aqui; além de que os profissionais não conseguem mandá-lo embora, pois ficam com pena".
O sentimento de pena expresso pelos profissionais de saúde constitui indício de sua superioridade hierárquica. Segundo Miller8, a pena é um sentimento que desqualifica o outro. Por outro lado, a imposição das regras da regionalização e da Classificação de Risco foi, muitas vezes, interpretada pelos usuários como "falta de acolhimento" e indiferença dos profissionais, no que concerne ao seu sofrimento. Herzfeld9 destaca que a indiferença pode se revelar em dispositivos burocráticos que, frequentemente, coexistem com ideais igualitários.
Em um cenário em que diferenças se refletem em desigualdades, demandas por justiça ganham força, legitimadas pela retórica dos direitos. No contexto observado, a denúncia contra o sistema se apresentou como recurso, com vistas à reparação do sentimento de banalização do sofrimento pelo outro. Duas estratégias foram recorrentes. A primeira consistiu em denúncia para a polícia com a intenção de fazer valer a lei, que obriga o cumprimento dos deveres do Estado para com os direitos dos cidadãos. Como segunda estratégia, ameaças de denúncia pública para meios de comunicação de massa. Em certa ocasião, um profissional do Acolhimento estimulou um usuário a denunciar a falta de assistência em programa aberto de televisão: "só assim, quem sabe, as coisas mudam".
Vianna10 assinala que o acionamento de determinadas estratégias argumentativas é fundamental para a produção da credibilidade dos atores sociais, comprometidos com o "fazer direito" que pleiteiam. Esse "fazer direito" pode assumir a forma de denúncia, reivindicação, protesto ou projeto. Tais medidas revelam, ainda, a perspectiva de um horizonte "justo", que pode e deve ser atingido, "uma espécie de ilusão que orienta continuamente as possibilidades dos atores em meio a um vasto mundo de indignidades, incorreções e desigualdades de toda ordem".
No Acolhimento, muitas vezes os usuários mobilizavam um discurso de vitimização como estratégia de barganha pelo pronto-atendimento. Para Rezende e Coelho11, a representação como vítima aumenta as chances de suscitar o sentimento de compaixão. Na contemporaneidade, as lágrimas são associadas à imagem de autenticidade, que aproxima os conceitos de interioridade e verdade12. Cabe destacar que diante do choro de usuários não houve profissional que recusasse assistência imediata, especialmente ao se tratar de atendimento de crianças.
Sarti13 refere que a figura da vítima é socialmente construída como modo de conferir reconhecimento ao sofrimento do outro e legitimidade às suas reivindicações. Há uma associação entre a categoria da vítima e a de direitos, organizada segundo a dialética sofrimento/reparação e cuidado, que impulsiona a implementação de políticas em prol da reparação de danos. Nesse contexto, a perspectiva da dignidade humana é prioritária enquanto valor ordenador da retórica dos direitos humanos. Na segunda metade do século XX há um deslocamento do papel do Estado como promotor de direitos, que repercute no modelo de indivíduo a ser protegido do Estado, e não por ele14. Assim, cresce o montante de processos legais contra instituições e profissionais de saúde, além de movimentos da sociedade civil, em prol dos direitos dos doentes15.
No contexto investigado, as denúncias eram referentes à organização do sistema de saúde e ao poder de seus representantes. A gramática da vítima aproxima as noções de igualdade e justiça, na contramão de uma ideologia humanitária sustentada no princípio da equidade. Acionado pelos usuários, o regime da justiça expõe uma dimensão política-hierárquica refletida na busca pelo respeito à dignidade humana. Neste sentido, evidencia-se uma tensão entre uma vertente individualizante, centrada na impessoalidade, nas leis e normatizações, e a singularidade.
Os profissionais de saúde muitas vezes expressaram sentimento de impotência, entre pressões de gestores e usuários. Em certa ocasião, um profissional declarou:
Não vejo sentido nisso. Não vejo como isso vai mudar a saúde da população. Não entendo porque penalizar a pessoa, tendo número. Existe a vaga, o cara (es)tá aqui; para ele marcar, tem que vir até aqui, e nós não atendemos só porque tem essa rotina. É injusto! Pra não dizer que é uma sacanagem! [diário de campo]
Segundo Durão16, há dois tipos de impotência: resignada, associada a uma formação burocrática; e indignada, a partir da qual são acionados recursos que, por vezes, burlam determinações superiores. Diante da pressão dos usuários, os profissionais mobilizavam duas estratégias. A primeira consistia em "dar um jeitinho" de "encaixar" para consulta no mesmo turno, com senhas extras ou sensibilizando a equipe de enfermagem, para alcançar a permissão do especialista. O "jeitinho" consistia em manobras para burlar as regras formais de gerenciamento da oferta de serviços, vinculadas ao sentimento de indignação. No cenário do Acolhimento, esta indignação implicava em certa aliança com as "vítimas".
Segundo Barbosa17, o "jeitinho" consiste em elemento central no processo de constituição da identidade nacional brasileira. Trata-se de um estilo de sociabilidade, que exprime a dificuldade em lidar com leis e regras universais. Assim, o "jeitinho" constituiria uma estratégia de ação social centrada no apelo à simpatia e à generosidade do interlocutor.
A segunda estratégia aproxima-se da noção de "impotência resignada"16 e conduz ao cumprimento formal das regras da Classificação de Risco. Em certa ocasião, uma enfermeira do Acolhimento afirmou: "As pessoas nem sentam para escutar o paciente, ouvir o que ele quer", referindo-se à determinação do fluxo do usuário no serviço, exclusivamente a partir do Protocolo de Classificação de Risco. A Classificação de Risco revela-se um dispositivo que institucionaliza uma racionalidade burocrática ao determinar critérios objetivos para avaliação e categorização de aspectos subjetivos, como dor e sofrimento. A pretensa objetividade científica destitui da palavra sua dignidade ética, suprimindo o reconhecimento do outro em sua singularidade, reduzindo seu estatuto à busca de informações para composição do caso clínico18. Neste contexto, a assimetria nos níveis de conhecimento transforma-se em instrumento de poder, contribuindo para a manutenção da autoridade do sistema de saúde e de seus representantes.
Mais do que uma categoria polissêmica, cujos significados são negociados e refletem a posição de cada ator social na dinâmica do sistema, o Acolhimento revelou-se palco de um "drama social"19, decorrente da tensão entre normas universalizantes e um sistema hierarquizado de relações sociais. Não se trata aqui de argumentar em prol de uma ou de outra polaridade, mas de compreender como esta modalidade de assistência em saúde se estrutura sobre uma dupla dimensão, que pode ser nomeada como: racionalidade/experiência20, competência/cuidado21, saber/sentir22.
O Acolhimento, enquanto projeto de democratização das estruturas de poder e de humanização da assistência à saúde, centrado na primazia da experiência e da sensibilidade, assume o cuidado como uma competência estabelecida e prescrita a priori. Por outro lado, a Classificação de Risco contribui para garantir a preeminência de uma lógica racionalista, que se institucionaliza a partir do saber e da técnica biomédicos. Logo, é possível refletir sobre a "tensão estruturante"22 que se estabelece entre Acolhimento e Classificação de Risco.
Este artigo resulta de pesquisa empreendida em uma unidade básica de saúde, com o objetivo de investigar os sentidos atribuídos ao Acolhimento pelos diferentes atores sociais, na intercessão entre um discurso centrado na autonomia e a dimensão tutelar dos indivíduos pelo Estado - entre singularidade e impessoalidade, sensibilidade e racionalidade, cuidado e controle.
Como estratégia humanitária em saúde, o Acolhimento possui um qualificativo positivo, como retórica que investe no valor associado à marca da humanização. Trata-se de garantir, ou pretender garantir, qualidade aos que o "utilizam". Contudo, a análise revelou que as variações na interação e no cuidado aos "usuários" do Acolhimento não concernem somente ao comprometimento com as normatizações, mas à disposição de cada profissional.
Para além de sua configuração enquanto dispositivo de reforço do vínculo entre usuários e sistema de saúde, e de garantia de um padrão ético de cuidado, as regras do Acolhimento com Classificação de Risco despontam como artifícios cujo objetivo final consistiria em camuflar uma oferta insuficiente de serviços. Neste contexto, a pretensa autonomia do usuário como sujeito de direitos permaneceria subordinada a diretrizes institucionais, à burocracia e, sobretudo, a uma lógica racionalista, que assegura a autoridade do sistema e o poder de seus representantes.
Por fim, cabe notar que na porta da frente da unidade prevalece uma prática solidária que permite o estabelecimento de alianças entre usuários e profissionais de saúde em prol da garantia do cuidado com a saúde da população. Em suma, o que prevalece é a lógica da relacionalidade.