versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.11 Rio de Janeiro 2019 Epub 11-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00169319
O debate em torno dos organismos geneticamente modificados (OGMs) é, a despeito do que muitos tentam defender, um “tema quente”. Precursoras, as técnicas de cruzamento nos Estados Unidos, na década de 1940, provocavam muitas polêmicas em torno da formação e da cura de uma patologia vegetal conhecida por galha da coroa. Desde os anos 1980, as plantas geneticamente modificadas, inventadas em laboratórios na Bélgica, dividem opiniões sobre os problemas globais ambientais e alimentares. Hoje, na China, o mundo pós-transgênico conheceu, estupefato, a clonagem de primatas por meio de edições genômicas e transferência nuclear de células somáticas (técnicas referenciadas, respectivamente, por CRISPR e TNCS).
Cruzamento, transgenia e edição genômica contam, em suas particularidades, a história moderna da biotecnologia. No entanto, essa seria uma maneira muito pobre de narrar os eventos. Seria conferir-lhes uma ideia implícita de progresso. Seria pior, pois incorreria naquilo que Chimamanda Ngozi Adichie chama de “o perigo da história única” 1. Evitar esse perigo foi um dos cuidados que envolveu a escrita do livro Entre Controvérsia e Hegemonia: os Transgênicos na Argentina e no Brasil.
Fruto da tese de doutorado da autora, os sete capítulos que agora se apresentam, para além de exporem um vasto panorama da história dos transgênicos no Brasil e na Argentina (1990-2014), fazem eclodir outras dimensões sobre o tema, conferindo-lhe outra versão. Das lutas de contestação dos movimentos sociais (rurais e urbanos), passando pelas cadeias internacionais de commodities, até a geopolítica do capitalismo, o que está em jogo é “a procura de explicações para a construção dos OGMs como um problema político” (p. 50) que exceda o domínio do gene.
O capítulo 1 desenha o problema. É costurado a partir de cinco grandes abordagens: da economia e da ecologia política da alimentação, dos estudos sociais em ciência e tecnologia, dos estudos em democracia e políticas públicas e, por fim, dos estudos sobre movimentos sociais. Faz-se um extenso levantamento de dados sobre as questões que circunscreveram a chegada dos transgênicos na América Latina a partir do ponto de vista comparativo dos grupos de contestação locais. Trata-se do modelo: sistemas similares apresentam resultados distintos.
Por essas razões, os capítulos 2 e 3 e os capítulos 4 e 5 trazem, respectivamente, a sequência cronológica dos eventos na Argentina e no Brasil. Elencam-se a rede de agentes envolvidos, os discursos mobilizados e as ações de contestação contra os transgênicos.
Na Argentina, a mensagem analítica resultante é a seguinte: as interpretações de agentes pontuais no micro (ONGs, campesinos, las mujeres de la plaza de mayo), sobre processos econômicos e políticos, e no macro (luta contra a passagem do modelo agrário para o desenvolvimento liberal exportador de commodities) fazem da luta anti-OGMs uma luta contra o neoimperialismo. Esse apelo, contudo, encontrou dificuldades de se alastrar pela população. Isso ocorreu porque é o setor primário agrário o que mais movimentou a economia daquele país ao longo de sua história recente. Ali, portanto, houve uma desmobilização social em face da bio-hegemonia de um sistema econômico e político historicamente estruturado.
No Brasil, a bio-hegemonia não se instalou, deixando aberta uma controvérsia pública sobre os transgênicos. Isso se deu por três motivos: falta de consenso científico, efervescência do ambientalismo e abertura democrático-institucional. Resulta daí um “dualismo na agricultura” (p. 118). Com efeito, esse dualismo encontrou visibilidade nas formações sociais e institucionais voltadas, de uma parte, ao agronegócio latifundiário exportador (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bancada ruralista, sindicatos patronais) e, de outra parte, à agricultura familiar (Ministério do Desenvolvimento Agrário, Movimento dos Sem Terra, Articulação Nacional para Agroecologia). A dominação dos transgênicos na lavoura, aqui, se deu por meio de guerras públicas declaradas que dividiam o Estado e a população.
Esse panorama gera, logo adiante, um avanço e um entrave.
No capítulo 6, a análise comparativa é efetivamente empreendida. No caso argentino, a bio-hegemonia se construiu como resultado de uma série de alianças políticas das elites com o Estado, junto ao consentimento velado da população, sem difusão midiática. No caso brasileiro, as mobilizações forçaram legislações que impediam cultivos transgênicos. Além disso, órgãos estatais defenderam direitos humanos e conexões rurais e urbanas que acolheram outro modelo agrário. Essas e outras diferenças ganham um contorno explicativo potente em nível histórico-estrutural: “as bases dos movimentos sociais e a profissionalização das ONGs eram diferentes em cada país” (p. 189), e “a diferença reside no uso de estratégias que abriram o caminho para que os pontos de vista dos movimentos sociais alcançassem a esfera pública” (p. 192) de modo mais rápido e mais extenso no Brasil.
Essa interpretação se resume no conceito de “estruturas de oportunidades de ação”. A bio-hegemonia, preponderante na Argentina, ainda que contestada, representa a dificuldade de abertura dessas estruturas. A instauração da controvérsia pública, no Brasil, é a abertura destas, mesmo sem muito sucesso final.
A questão inicialmente formulada ensejou uma narrativa sobre “como a integração desse modelo agrário [de exportação de produtos de base] nas cadeias globais de commodities afeta as campanhas dos movimentos sociais contra os cultivos transgênicos” (p. 207). É o que faz a passagem ao capítulo 7.
Nas conclusões, a autora elenca cinco fatores que explicam a mobilização e a desmobilização social das contestações contra os transgênicos no Brasil e na Argentina: as condições de proteção contra a criminalização dos movimentos, a interdependência entre os três poderes, a pluralidade dos meios de comunicação, a proteção ao clientelismo e a estrutura das oportunidades políticas. Em maior ou menor grau, esses fatores fizeram com que, nas terras vizinhas, se instaurasse uma rede de alianças bio-hegemônica, ao passo que, no território nacional, a controvérsia pública resultou em uma guerra rural, com maiores perdas do que ganhos para os movimentos anti-OGMs. A ideia derradeira? “Para a mobilização social a tarefa principal é conectar as resistências territoriais e as lutas urbanas” (p. 232).
O resultado do livro é, com efeito, a abertura do acontecimento. Trata-se da exposição de outra história sobre os transgênicos, narrada desde o ponto de vista dos oprimidos 2.
Ainda assim, como todo acontecimento, a instauração da genética como saber e práxis que reorientou a agricultura na América Latina é sempre ambígua. Ela guarda sua efetuação e sua contra-efetuação 3. Sugiro que, para dar maior potência a essa narrativa no interior dessa ambiguidade, uma virada decolonial se faz imprescindível.
Brasil e Argentina são Estados modernos, filhos de um longo processo de colonização. O ponto de maior relevância do livro é, sem dúvida, manter acesa a memória das lutas sociais que sempre estiveram presentes nesses países, apesar de todos os fatores que permitiram seu “maior ou menor sucesso”. E é precisamente essa a mudança de perspectiva decolonial na qual as ciências sociais devem se engajar, já que medir as relações sociais e sua história em termos de sucesso é muito perigoso.
No que concerne ao engajamento político, não é à toa que as reeleições no Brasil e na Argentina tiveram como estratégia, por parte dos próprios movimentos, difundir o medo da perda das suas poucas conquistas ao longo das últimas décadas. Nesse caso, o que é possível fazer/escrever após as últimas eleições nesses países, desde o ponto de vista da necessidade de reinvenção da crítica?
No que concerne à produção sociológica, com frequência, incorremos em tomar os “oprimidos” como derrotados. Todo esforço analítico que incorpore essa perspectiva flerta com a ideia de que as minorias não enxergaram a extensão da realidade, de que elas erraram a escala de atuação. Existe algo que excede a efetivação de uma mudança estrutural na agricultura e na alimentação e que se encontra, precisamente, naquilo que campesinos, indígenas, quilombolas, mulheres, dentre outros fazem para além dessa disputa: eles continuam existindo, reinventando seus modos de existência (contraefetuação) 4. Assumir uma narrativa a partir desse ponto de vista não é mostrar como os grupos de contestação social minoritários enfrentam aquilo que os ameaça, mas, ao enfrentar aquilo que os ameaça, como eles reinventam outro mundo de possíveis.