versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160073
Cateteres de longa permanência são utilizados em uma parcela significativa de pacientes em programa de hemodiálise (HD), quando não possuem acesso venoso definitivo [(i.e, fístula arteriovenosa (FAV)]. O uso prolongado de cateteres de longa permanência está associado a complicações mecânicas e infecciosas graves.1-3
O achado de uma massa atrial nesses pacientes leva a três principais possibilidades diagnósticas: (a) trombo, (b) vegetação como sinal de endocardite infecciosa, ou (c) tumor cardíaco, sendo o mixoma atrial o mais comum.4 Por serem patologias com tratamentos distintos, um diagnóstico indevido pode resultar em procedimento invasivo desnecessário, retardar o início da terapia adequada e aumentar a morbimortalidade.
Apresentamos um caso clínico que ilustra o desafio diagnóstico perante o achado incidental de massa em átrio direito contígua ao cateter de HD, em Ecodopplercardiograma transtorácico (ETT) solicitado devido a protocolo anual da unidade. Procuramos demonstrar que o seguimento e tratamento adequados são essenciais para um bom desfecho clínico.
K.M.F., 19 anos, sexo feminino, apresentou quadro de vasculite sistêmica, com acomentimento renal e pulmonar. Apesar de tratamento imunossupressor com corticoesteroides e ciclofosfamida, evoluiu com perda definitiva da função renal. Iniciou HD por meio de cateter de curta permanência no Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, Brasil. Em dois meses, foram necessárias quatro trocas de cateteres de curta permanência por disfunção e infecção. Após erradicação da infecção, a paciente foi submetida a implante de cateter de longa permanência (CLP).
Sete meses após o implante do CLP, foi realizado o ETT protocolar de nossa unidade, sendo identificada incidentalmente uma massa em átrio direito (AD) com dimensões de 28 x 16 mm, que poderia corresponder a trombo (Figura 1A). Na ocasião fazia uso de prednisona 10 mg/dia, não apresentava febre ou sintomas sistêmicos e seu estado geral estava preservado. A ausculta cardíaca era normal e não havia fadiga, hepatomegalia, edema periférico, ou sinais de embolia pulmonar. Para confirmação diagnóstica, solicitou-se uma ressonância nuclear magnética (RNM) do coração, que revelou uma formação sólida, arredondada, não móvel, pediculada, em assoalho do AD, próximo à entrada da veia cava inferior, medindo 25 x 24 x 20 mm, sugestiva de mixoma atrial.
Figura 1 A. Ecodopplercardiograma transtorácico (ETT) com massa em átrio direito (AD) com dimensões de 28 x 16 mm, que poderia corresponder a trombo. B. De controle, demonstrando redução significativa das dimensões da massa em AD para 12 x 10 mm.
Até esse momento, diversas hemoculturas não apresentavam crescimento de micro-organismos e a paciente mantinha-se afebril e com estado geral preservado. A paciente foi avaliada pela equipe de cirurgia torácica e considerando o risco cirúrgico para remoção da massa optou-se por iniciar anticoagulação plena com varfarina, como teste terapêutico para o diagnóstico de trombo. O CLP foi mantido devido à dificuldade em obter-se novo acesso vascular para a HD. Após 100 dias de tratamento, o Ecodopplercardiograma transesofágico (ETE) de controle (Figura 1B) demonstrou redução das dimensões da massa em AD para 12 x 10 mm.
A paciente evoluiu assintomática, com proposta de manutenção da anticoagulação por mais 90 dias. O ETE no final do 6º mês de anticoagulação revelou apenas um espessamento de válvula de Eustáquio com dimensões 7 x 8 mm, correspondendo a processo residual de trombo. Nesse período, realizou confecção de FAV e, posteriormente, retirou-se o CLP. A paciente encontra-se assintomática e em bom estado geral. Não apresentou nenhum acidente decorrente do uso de varfarina, que foi mantida por mais 3 meses.
A presença de massa em AD nos levou aos seguintes diagnósticos diferenciais: trombo, endocardite infecciosa ou mixoma atrial. O estado geral satisfatório ao longo de sua evolução, ausência de quadro febril e hemoculturas negativas para bactérias e fungos excluíram endocardite infecciosa. Apesar da RNM sugerir mixoma atrial, relato de ETT pregresso não revelava anormalidades cardíacas, o que tornou a possibilidade de tumor cardíaco mais remota. No entanto, sabe-se que mixomas atriais podem se desenvolver em curto período de tempo dada a sua natureza de estroma de mucopolissacarídeos e células dispersas.5 A inexistência de sintomas constitucionais e a resposta terapêutica à anticoagulação confirmaram o diagnóstico de trombo em AD.
O trombo em AD tem uma incidência baixa, mas aumenta na população de pacientes em uso de cateter venoso central,1,2,6,7 nesse caso, cateter para HD, implantado em veia jugular interna direita. As complicações ligadas ao trombo AD mais prevalentes são embolia pulmonar, êmbolo séptico, endocardite, arritmia, complicações cardíacas mecânicas e, até mesmo, embolização sistêmica se houver forame oval patente.8,9
Os possíveis mecanismos fisiopatológicos para a formação do trombo AD associado ao cateter HD incluem a ativação da cascata de coagulação pelo trauma mecânico da ponta do cateter na parede do átrio, exacerbado pelas alterações hemodinâmicas, que leva à estagnação do fluxo sanguíneo no AD ao redor do cateter.10,11 É descrito na literatura que a localização da ponta do CLP dentro do AD, localização preconizada pelas diretrizes do National Kidney Foundation: Dialysis Outcomes Quality Initiative, associa-se fortemente à formação do trombo.7,12,13
O ETT ou ETE são os métodos diagnóstico iniciais utilizados para o diagnóstico de massa em AD, e têm utilidade para seguimento terapêutico. A especificidade e a sensibilidade da ecocardiografia no diagnóstico de trombos intracavitários são 86% e 95%, respectivamente.14,15 Porém, a RNM é o método preferido para o diagnóstico diferencial de massa em AD, devido à sua elevada especificidade (100%) na detecção de tumores cardíacos.16
Nesse caso, houve conflito em relação ao diagnóstico sugerido (ETT, sugerindo trombo, e RNM, mixoma), o que obrigou a equipe assistente a tomar uma decisão com base clínica. Esse fato reforça que, mesmo diante de um exame com alta especificidade, pode existir influência do leitor na interpretação do exame.
As opções de tratamento consistem em anticoagulação ou trombolítico associada ou não à remoção do cateter. Note-se que a anticoagulação em pacientes com doença renal pode ser problemática. Elliott et al.17 constataram que a anticoagulação com varfarina nos pacientes em programa de HD está associada ao risco significante de sangramento. Além disso, o uso de antagonistas da vitamina K, como a varfarina, está associado ao desenvolvimento de calcificação vascular por inibição de proteínas dependentes da vitamina K, como a proteína matrix-Gla.18
Nos casos com suspeita de infecção ou anormalidade cardíaca concomitante, está indicada a trombolectomia cirúrgica.19 Cabe ressaltar que estudo prévio observou que indivíduos com doença autoimune e uso recente de drogas imunossupressoras têm um risco cirúrgico elevado, evoluindo com maior número de complicações pós-cirúrgicas, como infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca, pneumonia, sepse, deiscência da ferida operatória, especialmente aqueles que fizeram uso, no período pré-cirúrgico, de doses elevadas de prednisona oral.20 Tal informação reforçou a opção por tratamento clínico nesse caso.
Em uma metanálise com 71 pacientes, avaliou-se os fatores prognósticos de mortalidade e opções terapêuticas para trombo induzido por cateter em pacientes da HD. Constatou-se que os fatores relacionados a pior desfecho foram idade, tempo de diálise e permanência do cateter após diagnóstico. Os autores propõem um algoritmo de manejo clínico, em que a remoção ou troca do cateter por fio guia e a anticoagulação plena foram considerados tratamento de primeira linha. Nesse estudo, os autores recomendaram a remoção do cateter após o início da anticoagulação e a manutenção do tratamento com anticoagulante por 6 meses ou até a resolução completa do quadro. Nos casos que apresentam suspeita de infecção ou anormalidade cardíaca associada ou contraindicação ao uso de anticoagulante foi recomendada a abordagem cirúrgica como melhor opção terapêutica.3
Em outra revisão sistemática com 177 pacientes diagnosticados com trombo em coração direito (átrio ou ventrículo), observou-se que a taxa de mortalidade nos pacientes que receberam terapia anticoagulante, embolectomia cirúrgica e trombólise foi, respectivamente, de 28,6%, 23,8% e 11,3%. E nos pacientes que não receberam nenhum tratamento a mortalidade foi de 100%. Os autores sugerem que a terapia trombolítica associou-se a menor taxa de mortalidade comparada aos demais tratamentos.9
O diagnóstico de massa em AD pode ser um desafio. Entretanto, a evolução clínica pode nortear a conduta clínica ou cirúrgica, como demonstrado nesse relato de caso. Não há, até o momento, consenso na literatura sobre qual é o melhor momento para remoção do CLP e tratamento do trombo associado ao cateter. As recomendações descritas na literatura sugerem que a abordagem deva ser individualizada, que estejam disponíveis informações a partir de estudos clínicos, prospectivos e randomizados.