versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 10-Dez-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0156
A doença renal crônica (DRC) é reconhecida como fator de risco independente de doença cardiovascular, que é a principal causa de morte nessa população. Os distúrbios do metabolismo mineral e ósseo da DRC (DMO-DRC) integram uma síndrome definida por alterações do cálcio (Ca), do fósforo (P), da vitamina D e do paratormônio (PTH), além de anormalidades ósseas e calcificação extraesquelética. São frequentes nos pacientes portadores de DRC, e também constituem uma importante causa de mortalidade e morbidade.1
O tabagismo, um fator de risco cardiovascular clássico, está associado com aterosclerose, inflamação, maior progressão da DRC2 e aumento de mortalidade cardiovascular em pacientes com DRC.3
Dados da literatura mostram que o tabagismo está associado com maior risco de calcificação coronariana e com maiores níveis de P na população geral.4 Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi analisar a relação entre o tabagismo e fatores de risco tradicionais e associados ao DMO-DRC.
Estudo transversal conduzido em pacientes acompanhados ao serviço de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo FMUSP, no período de agosto de 2016 a janeiro de 2017. Foram incluídos 3 grupos de pacientes: 1) Grupo controle, constituído por pacientes com hipertensão arterial, não tabagistas e sem DRC; 2) Pacientes com DRC estágio III a IV (tabagistas e não tabagistas); 3) Pacientes com DRC em diálise (tabagistas e não tabagistas).
Foram incluídos pacientes com idade entre 18 e 70 anos, em acompanhamento regular no ambulatório. Pacientes em diálise estavam estáveis no programa havia pelo menos 6 meses. Foram excluídos pacientes com diabetes mellitus, neoplasias, lúpus, sorologia positiva para o vírus HIV, assim como os pacientes em uso de imunossupressores e corticosteroides. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Nove de Julho em 4 de junho de 2016 (1.613.780).
Foram avaliados idade, sexo, presença de comorbidades como hipertensão e história de doença coronariana e cerebrovascular, medicações usadas regularmente e resultados dos exames laboratoriais. As dosagens de Klotho (IBL, Japão, sensibilidade 6,15 pg/mL) foram realizadas utilizando ensaio comercial imunoenzimáticos (enzyme-linked immunosorbent assay - ELISA), e as de FGF-23 com ensaio de quimioluminescência (Diasorin, Itália, sensibilidade 5,0 pg/mL).
Os dados contínuos foram expressos em média e desvio-padrão ou mediana e percentis (25-75), de acordo com distribuição paramétrica ou não paramétrica, respectivamente. Dados categóricos foram expressos em valores e percentagem. A comparação entre os três grupos foi realizada através de ANOVA com pós-teste de Tukey ou Kruskal-Wallis com pós-teste de Dunns para variáveis com distribuição paramétrica ou não paramétrica, respectivamente. A comparação entre tabagistas e não tabagistas foi realizada através de teste de t não pareado ou Mann-Whitney, de forma apropriada. A análise de covariância (ANCOVA) foi realizada com P sérico como variável dependente, TFGe e idade como covariáveis, tabagismo e sexo como fatores fixos. A correlação entre variáveis foi feita através de coeficiente de Spearman. Um valor de p < 0,05 foi considerado significativo. A análise estatística foi feita com o uso de SPSS 20.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA).
Foram incluídos ao todo 92 indivíduos, sendo 15 no grupo controle, 37 no grupo DRC tratamento conservador e 40 no grupo DRC diálise (Tabela 1). O grupo controle era constituído principalmente por pacientes do sexo feminino, que não praticavam atividade física regularmente. Os pacientes do grupo com DRC em diálise eram mais jovens. Diferenças nos valores de Ca, P, PTH, creatinina e hemoglobina são explicados pela melhor função renal no grupo controle. Níveis de ácido úrico eram menores no grupo controle quando comparados aos de pacientes com DRC em tratamento conservador. Níveis de FGF-23 eram maiores nos pacientes com DRC e principalmente naqueles em diálise quando comparados aos de pacientes do grupo controle. Encontramos correlação entre níveis de FGF-23 e idade (r = -0,258, p = 0,014), ferritina (r = 0,313, p = 0,011), fósforo (r = 0,527, p = 0,0001) e PTH (r = 0,578, p = 0,0001).
Tabela 1 Comparação de dados demográficos, clínicos e laboratoriais entre os 3 grupos de pacientes
Controle | DRC tratamento conservador | DRC em diálise | |||
---|---|---|---|---|---|
N = 15 | Não tabagista | Tabagista | Não tabagista | Tabagista | |
N = 20 | N = 17 | N = 21 | N = 19 | ||
Idade (anos) | 56 ± 11 | 53 ± 13 | 53 ± 12 | 40 ± 13 | 50 ± 14 a |
Sexo masculino, % | 13* | 45 | 41 | 52 | 68 |
Atividade física, % | 0* | 60 | 12 | 24 | 16 |
História de AVE, % | 0 | 0 | 0 | 4.8 | 0 |
História de ICO, % | 6.7 | 20 | 5.9 a | 9.5 | 15.8 |
Creatinina (mg/dl) | 0.8 (0.7- 0.9)* | 2.1 (1.7- 2.9) | 1.8 (1.4-3.55) | 11.5 (9.4-14.45) | 9.3 (8.3-11.3) |
P (mg/dl) | 3.6 ± 0.5* | 3.6 ± 0.6 | 3.9 ± 0.5 a | 4.8 ± 1.6 | 4.3 ± 1.3 |
Ca Total (mg/dl) | 9.4 ± 0.3* | 9.3 ± 1.1 | 9.1 ± 0.4 | 8.8 ± 0.8 | 8.8 ± 0.9 |
PTH (pg/ml) | 53 (38-79)* | 58 (45-95) | 60 (34-101) | 350 (82-765) | 230 (151-358) |
25 Vit-D (ng/dl) | 21.8 ± 7.1 | 28.4 ± 9.8 | 30.9 ± 12.4 | 36.1 ± 15.3 | 26.8 ± 11.5 a |
FA (U/l) | 74 (61-86) | 96 (68-112) | 84 (68-94) | 95 (63-129) | 81 (64-132) |
Ácido úrico (mg/dl) | 5.0 (3.8-6.6)* | 7.0 (6.2-8.1) | 6.5 (5.6-8.1) | 6.3 (5.6-8.0) | 5.7 (4.8-6.4) |
Hemoglobina (g/dl) | 13.6 ± 1.1* | 12.7 ± 1.4 | 12.7 ± 2.3 | 10.9 ± 1.5 | 10.9 ±1.6 |
Albumina (g/dl) | - | 4.3 (3.9-4.5) | 4.05 (3.5-4.7) | 3.8 (3.4-4.1) | 3.9 (3.6-4.2) |
Ferritina (ng/ml) | - | 157.1 (113.2-213.5) | 132.2 (87-197) | 333.9 (116-610) | 345 (145-636) |
TFGe (mL/min/1,73m 2) | 89 (77-104)* | 28 (21-43) | 38 (17-50) | - | - |
FGF-23 (pg/ml) | 76.7 (58.7-90.7)* | 92.5 (69.3-287.6) | 141.2 (104.9-222.2) | 5208 (284-18257) | 474.5 (116-5800) |
AVE: acidente vascular encefálico; ICO: insuficiência coronariana; P: fósforo; Ca Total: cálcio total; PTH: Paratormônio; 25 Vit D: 25 Hidroxivitamina D; FA: Fosfatase alcalina; Sat: saturação; TFGe: Taxa de filtração glomerular estimada; FGF-23: Fator de crescimento do fibroblasto 23.
*p < 0,05 vs. DRC a: p < 0,05 vs. Não tabagista no mesmo grupo.
Em relação às medicações em uso, pacientes do grupo controle recebiam menos suplementação de vitamina D, enquanto pacientes com DRC em tratamento conservador mais comumente utilizavam furosemida, e pacientes em diálise recebiam mais calcitriol, sais de cálcio, sevelamer e eritropoetina humana (EPO).
Comparando tabagistas e não tabagistas (Tabela 1), observamos que tabagistas em diálise eram mais jovens e com menores níveis de vitamina D. Níveis de FGF-23 e Klotho não foram diferentes entre tabagistas e não tabagistas. Pacientes tabagistas do grupo com DRC em tratamento conservador exibiram maior P sérico do que não tabagistas (Tabela 1). Os níveis de P permaneceram mais altos nesses pacientes (p = 0,026) mesmo após ajuste para TFGe (p = 0,079), sexo (p = 0,145) e idade (p = 0,986), em modelo com R2 ajustado de 0,140, como demonstrado na Figura 1.
Comparando pacientes com DRC tabagistas e não tabagistas, observamos que o tabagismo se associa com maiores níveis de P naqueles em tratamento conservador. O P mais alto nos tabagistas foi independente do sexo, do FGF-23 e da função renal. Nenhum outro marcador do DMO-DRC se diferenciou entre tabagistas e não tabagistas.
Encontramos correlações entre níveis séricos de FGF-23 com a idade, fósforo, PTH e ferritina. À medida que os indivíduos envelhecem, cai o FGF-23. Por outro lado, e como já descrito anteriormente por outros autores, os níveis de FGF-23 aumentam com a progressão da DRC.5 Da mesma maneira, houve associação positiva entre FGF-23 com P e PTH, de acordo com Lavi-Moshayoff e cols., que demonstrou que o PTH aumenta a transcrição do gene do FGF-23.6 A relação entre FGF-23 e ferritina foi inversa à relatada na literatura.7 Porém, estudos experimentais mostraram que tanto a deficiência de ferro como a administração de alguns compostos de ferro podem estimular a síntese de FGF-23.8
Observamos que o fósforo sérico foi maior no grupo de pacientes tabagistas em tratamento conservador. Lembrando que o fósforo sérico já foi identificado como um fator de risco independente para mortalidade por etiologia cardiovascular entre indivíduos renais crônicos,3 é curioso observar que tabagistas que apresentam maior risco cardiovascular também têm fósforo sérico mais alto, mesmo que dentro da faixa de referência. Uma possibilidade seria que o fumo inibisse a expressão renal de Klotho (e, portanto, seu nível sérico), diminuindo a ação do FGF-23. Assim, embora com valores semelhantes de FGF-23, fumantes teriam menor ação fosfatúrica desse hormônio e, portanto, maiores níveis séricos de fósforo. Porém, não encontramos diferenças nos níveis séricos de Klotho entre os dois grupos. O conceito atual é de que na DRC ocorra importante supressão da transcrição de Klotho no tecido renal. Utilizando a técnica de Western-Blot, Kuro-o e cols. demonstraram diminuição da concentração urinária de Klotho à medida que a DRC progride.9 Porém, é importante ressaltar que avaliamos a concentração sérica de Klotho por meio da técnica de ELISA. Atualmente, ainda há controvérsia se os níveis séricos de Klotho aumentam ou diminuem com a progressão da DRC, e se os ensaios de ELISA são fidedignos.10 Tampouco encontramos impacto do tabagismo nos níveis de FGF-23, contrariamente ao que foi descrito anteriormente.11 Esse resultado poderia ser explicado pelo uso de diferentes ensaios, uma vez que dosamos a molécula intacta e esses autores avaliaram a fração C-terminal do FGF-23. Esse fragmento da molécula do FGF-23, anteriormente identificado como inativo, parece ter papel importante nas situações de deficiência de ferro e inflamação.8 Porém, o papel do FGF-23 C-terminal nessas condições é pouco conhecido. De forma interessante, estudos epidemiológicos já mostraram uma associação negativa entre tabagismo e Doença de Parkinson,12 de modo que pacientes tabagistas apresentavam P sérico mais alto e tinham menor risco da doença. Níveis mais altos de P também foram observados em homens e mulheres diabéticos, mesmo após ajuste para idade e outros fatores de risco cardiovasculares.13 Os autores sugeriram que indivíduos tabagistas talvez tenham maior reabsorção óssea e/ou menor mineralização óssea, levando a um maior P sérico, o que foi demonstrado previamente.14 Até onde conseguimos observar, não foi encontrado nenhum dado na população com DRC. Entretanto, em pacientes com hiperparatireoidismo primário, já foi demonstrado que o tabagismo está associado a maiores níveis de P e menores níveis de PTH.15
Para os pacientes em diálise, não houve diferenças em relação ao fósforo sérico entre tabagistas e não tabagistas. Provavelmente, nesse grupo de pacientes, a diálise, PTH e o uso de quelantes devem ser os principais determinantes do fósforo sérico.
Em resumo, o tabagismo, além de conferir por si só um aumento do risco cardiovascular na população de pacientes com DRC, está associado a maiores níveis de P nos pacientes em tratamento conservador, o que confere um risco adicional de mortalidade. As razões para esse achado ainda permanecem não esclarecidas, mas parecem ser independentes de função renal, sexo, idade e FGF-23.
Reconhecemos as limitações deste estudo, tendo em vista o tamanho relativamente pequeno da amostra e o desenho transversal, que não nos permite estabelecer relações de causa e efeito. Porém, trata-se de um estudo exploratório de uma hipótese, e novos estudos são necessários para explorar a relação entre P e tabagismo e elucidar o mecanismo envolvido nessa associação.