versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170069
As glomerulopatias residem entre as principais causas de doença renal terminal.1,2 Como relatado em várias partes do mundo, glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) e nefropatia por IgA são as glomerulopatias primárias mais comuns, e nefrite lúpica a mais comum glomerulopatia secundária.3-6 Contudo, a frequência da nefropatia por IgA varia amplamente, e baixa prevalência de GESF já foi descrita em algumas localidades.7,8
A última pesquisa baseada em biópsia feita sobre a prevalência de glomerulopatia em Salvador, no estado da Bahia, foi publicada em 1975 por Queiroz e colaboradores.9 No estudo, a glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) contabilizou pelo menos 20% de todas as 101 biópsias renais realizadas in num hospital geral de 1970 a 1973. A GNMP foi a mais prevalente glomerulopatia em adultos com síndrome nefrótica e esteve frequentemente associada a esquistossomose hepatoesplênica.9
No presente estudo, estimamos a frequência das glomerulopatias em pacientes submetidos a biópsia renal para o diagnóstico de doenças renais em Salvador entre 2003 e 2015. Demonstramos que o atual padrão de distribuição de glomerulopatias em Salvador não é substancialmente diferente daquele presente nas áreas de maior nível de renda do Brasil e em países desenvolvidos, exibindo baixa frequência de GNMP e predomínio de GESF e nefrite lúpica.
O presente estudo exploratório descritivo incluiu todas as biópsias renais nativas realizadas para o diagnóstico de glomerulopatias em serviços de referência em nefrologia e hospitais públicos do estado da Bahia examinadas no Instituto Gonçalo Moniz - Fiocruz (IGM-FIOCRUZ) entre 2003 e 2015. As biópsias repetidas dos mesmos pacientes foram analisadas como caso único.
Todas as biópsias renais foram submetidas aos seguintes procedimentos: (1) fixação em formalina alcoólica ou solução de Bouin, inclusão em parafina, corte em seções de 2 µm de espessura e coloração com hematoxilina e eosina, ácido periódico de Schiff, ácido periódico de Schiff e prata-metenamina, Azan e picro-sirius, para microscopia óptica convencional - coloração vermelho do Congo foi utilizada em casos suspeitos de amiloidose; (2) inclusão em meio de criopreservação para identificação por imunofluorescência de depósitos imunes anormais contendo IgA, IgG, IgM, cadeias Kappa, cadeias Lambda, C1q, C3 e fibrinogênio; e (3) fixação em 1% glutaraldeído em tampão cacodilato, pós-fixação em tetróxido de ósmio e inclusão em polybed para análise ultra-estrutural quando necessário.
Os seguintes dados foram obtidos dos formulários de requisição de biópsia: idade, sexo, diagnóstico de síndrome renal, concentração de creatinina sérica. Para fins do estudo, síndrome nefrótica foi definida por proteinúria superior a 3,5 g/24 h e associada a presença de edema e hipoalbuminemia ou quando o diagnóstico foi relatado pelo nefrologista assistente. Insuficiência renal foi considerada quando as concentrações de creatinina sérica eram superiores a 1,2 mg/dL para crianças e mulheres ou acima de 1,5 mg/dL para homens ou quando o diagnóstico encontrava-se descrito no formulário de requisição. Crianças foram definidas como pacientes com 16 ou menos anos de idade.
Os diagnósticos de doença renal foram colhidos dos laudos anatomopatológicos e então adaptados segundo a nomenclatura proposta por Churg e colaboradores.10
De forma a avaliar a precisão da distribuição das doenças renais estimada pela revisão dos laudos anatomopatológicos, todas as biópsias realizadas entre 2003 e 2006 foram independentemente revisadas por três patologistas (WLCS, GMMS e MFSS), cegados para o diagnóstico anteriormente atribuído ao caso. Foram excluídos da análise os casos originados de rins transplantados, os casos cujas lâminas não estivessem disponíveis para a revisão histológica, os casos cuja representação de tecido renal cortical fosse insuficiente para microscopia convencional ou imunofluorescência e os casos cujas informações clínicas fossem insuficientes para uma conclusão diagnóstica.
Os dados foram expressos em números absolutos e percentagens, e foram resumidos na forma de médias ± desvios padrões ou medianas e primeiros e terceiros quartis. As informações sobre a prevalência das doenças nefrológicas foram apresentadas em detalhe suficiente para possibilitar comparações com outras casuísticas publicadas na literatura.
De forma a aprimorar o entendimento da distribuição etária da doença, os dados foram apresentados como linhas de tendência calculadas pela melhor equações de ajuste não linear. Comparações entre grupos foram realizadas com o teste do qui-quadrado. Os resultados foram considerados estatisticamente significativos quando p < 0,05. Os dados foram analisados com os programas Prism 5.01 (Graph Pad, San Diego, CA, EUA) e StataIC11 (StataCorp LP, College Stsation, TX, EUA).
Entre 2003 e 2015, um total de 1.669 biópsias renais foram examinadas no IGM-Fiocruz. Contudo, 206 biópsias eram de rins transplantados, 166 tinham parênquima renal sub-representado (principalmente devido a ausência de glomérulos para estudos por imunofluorescência), 35 eram de pacientes com diagnóstico inconclusivo e oito foram recebidas para revisão. Assim, 353 casos foram excluídos do estudo. Entre os 1.346 casos restantes, 35 eram repetições de biópsias de um mesmo paciente e foram analisadas como caso único. Portanto, o estudo foi realizado com as 1.312 biópsias restantes.
As principais características clínicas e demográficas dos pacientes são exibidas na Tabela 1. A idade variou de um a 88 anos de idade, com uma idade mediana de 27 [17-40; primeiro e terceiro quartis, respectivamente] anos. Trezentos pacientes (24%) eram crianças e 971 (76%) eram adultos. A proporção de mulheres e homens foi semelhante entre crianças e adultos. Características étnicas foram descritas para apenas 286 pacientes, com predomínio da cor parda.
Tabela 1 Características gerais dos pacientes submetidos a biópsia renal de 2003 a 2016 em hospitais de referência em Salvador – BA
Parâmetro | Crianças (< 16 ANOS) | Adultos (> 16 ANOS) | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N | (%) | N | (%) | N | (%) | |
N | 300 | (24%) | 971 | (76%) | 1.312 | (100%) |
Idade (1.271) | ||||||
Média ± DP | 10 | ± 4 | 35 | ± 14 | 30 | ± 16 |
Mediana [1º. - 3º. quartis] | 11 | [14 - 7] | 44 | [44 - 24] | 27 | [17-40] |
Intervalo | 1 | 1 - 16 | 17 | -88 | 1 | - 88 |
Sexo M:F (1.311) | ||||||
Feminino | 155 | (52%) | 446 | (46%) | 621 | (47%) |
Masculino | 145 | (48%) | 524 | (54%) | 690 | (53%) |
Grupo étnico (286): | ||||||
Negro | 9 | (16%) | 57 | (25%) | 67 | (23%) |
Pardo | 23 | (40%) | 106 | (47%) | 130 | (45%) |
Branco | 26 | (45%) | 62 | (28%) | 89 | (31%) |
Principal apresentação clínica (1.235): | ||||||
Síndrome nefrótica | 150 | (53%) | 400 | (44%) | 565 | (46%) |
Lúpus eritematoso sistêmico | 24 | (8%) | 212 | (23%) | 245 | (20%) |
Síndrome nefrítica | 32 | (11%) | 27 | (3%) | 60 | (5%) |
Proteinúria indefinida | 13 | (5%) | 46 | (5%) | 59 | (5%) |
Insuficiência renal aguda | 14 | (5%) | 42 | (5%) | 58 | (5%) |
Hipertensão arterial sistêmica | 1 | (0.3) | 48 | (5%) | 51 | (4%) |
Hematúria indefinida | 21 | (8%) | 25 | (3%) | 47 | (4%) |
Doença renal crônica | 3 | (1%) | 42 | (5%) | 25 | (2%) |
Doenças nefrológicas: | 300 | (100%) | 971 | (100%) | 1,271 | (100%) |
Glomerulopatias primárias | 258 | (86%) | 649 | (67%) | 907 | (71%) |
Glomerulopatias secundárias | 34 | (11%) | 273 | (28%) | 307 | (24%) |
Doenças não-glomerulares | 8 | (3%) | 49 | (5%) | 57 | (4%) |
Principais diagnósticos histológicos: | ||||||
Glomeruloesclerose segmentar e focal | 97 | (32%) | 222 | (23%) | 319 | (25%) |
Lúpus eritematoso sistêmico | 31 | (10%) | 249 | (26%) | 280 | (22%) |
Glomerulonefrite membranosa | 6 | (2%) | 106 | (11%) | 112 | (9%) |
Glomerulonefrite difusa proliferativa | 39 | (13%) | 31 | (3%) | 70 | (6%) |
Doença por lesão mínima | 39 | (13%) | 38 | (4%) | 77 | (6%) |
Glomerulonefrite membranoproliferativa | 7 | (2%) | 69 | (7%) | 76 | (6%) |
Nefropatia por IgA | 8 | (3%) | 50 | (5%) | 58 | (5%) |
Alterações glomerulares mínimas | 13 | (4%) | 25 | (3%) | 38 | (3%) |
Glomerulonefrite segmentar e focal | 6 | (2%) | 23 | (2%) | 29 | (2%) |
Glomerulonefrite esclerosante | 4 | (1%) | 25 | (3%) | 29 | (2%) |
Glomerulonefrite crescêntica | 5 | (2%) | 17 | (2%) | 22 | (2%) |
Síndrome de Alport | 11 | (4%) | 4 | (0.4%) | 15 | (1%) |
Glomerulonefrite mesangial proliferativa | 6 | (2%) | 9 | (0.9%) | 15 | (1%) |
Amiloidose | 0 | (0) | 15 | (2%) | 15 | (1%) |
Outros | 38 | (13%) | 104 | (11%) | 135 | (11%) |
A principal apresentação clínica relatada foi síndrome nefrótica (46%), seguida de sinais de lúpus eritematoso sistêmico (23%) em adultos e síndrome nefrítica (11%) em crianças.
GESF (32%), glomerulonefrite proliferativa difusa (13%) e doença por lesão mínima (13%) foram os diagnósticos mais prevalentes em crianças e nefrite lúpica (26%); GESF (23%) e glomerulonefrite membranosa (11%) foram os padrões de lesão renal mais frequentes em adultos. GNMP foi identificada em 6% dos pacientes, 2% das crianças e 7% dos adultos. A prevalência de nefrite lúpica chegou a 36% nas mulheres adultas e a 6% nos homens (dados não exibidos).
A frequência relativa de nefrite lúpica foi mais elevada em indivíduos de pele negra (16/67) do que em indivíduos pardos (11/130) (teste exato de Fisher, p < 0,0042). Nenhuma outra diferença foi observada na prevalência das principais glomerulopatias entre os pacientes de diferentes grupos étnicos.
A revisão histológica dos casos diagnosticados entre 2003 e 2006 foi limitada a 154 biópsias renais. A prevalência das doenças renais obtida via análise histológica independente e o diagnóstico por consenso proposto por três patologistas foram semelhantes às informações obtidas dos laudos de biópsia (Tabela 2). Apesar da glomerulonefrite proliferativa mesangial ter uma prevalência estimada em 3% com base nos dados colhidos dos laudos de biópsia e não ter sido relatada na revisão histológica, a diferença não foi estatisticamente significativa.
Tabela 2 Comparação entre prevalência de glomerulopatias estimadas por revisão de laudos de biópsia ou por revisão de lâminas histológicas dos pacientes
Parâmetro | Laudo de biópsia | Revisão histológica | ||
---|---|---|---|---|
N | (%) | N | (%) | |
Glomeruloesclerose segmentar e focal | 85 | (35%) | 54 | (37%) |
Lúpus eritematoso sistêmico | 29 | (12%) | 21 | (14%) |
Glomerulonefrite membranosa | 18 | (7%) | 13 | (9%) |
Glomerulonefrite difusa proliferativa | 23 | (9%) | 11 | (8%) |
Glomerulonefrite membranoproliferativa | 13 | (5%) | 11 | (8%) |
Doença por lesão mínima | 12 | (5%) | 8 | (6%) |
Nefropatia por IgA | 10 | (4%) | 8 | (6%) |
Glomerulonefrite esclerosante | 8 | (3%) | 5 | (4%) |
Glomerulonefrite segmentar e focal | 7 | (3%) | 1 | (0.7) |
Glomerulonefrite mesangial proliferativa | 7 | (3%) | 0 | (0%)* |
Alterações glomerulares mínimas | 6 | (2%) | 2 | (1%) |
Glomerulonefrite crescêntica | 3 | (1%) | 2 | (1%) |
Síndrome de Alport | 3 | (1%) | 2 | (1%) |
Outros | 21 | (9%) | 6 | (4%) |
Total | 245 | (100%) | 144 | (100%) |
*p = 0.05. Teste do Qui-quadrado.
A distribuição etária das principais glomerulopatias encontra-se descrita na Figura 1. GESF foi a mais prevalente glomerulopatia na primeira e segunda décadas de vida, mas foi ultrapassada pela nefrite lúpica entre a terceira e quinta décadas e pela glomerulonefrite membranosa na sétima década de vida.
A prevalência da nefrite lúpica se elevou da primeira para a quarta década e caiu da quinta até a sétima década. A prevalência de glomerulonefrite membranosa aumentou progressivamente da primeira até a oitava década e se tornou a mais comum glomerulopatia entre a sétima e oitava décadas de vida. A prevalência de GNMP aumentou da primeira até a quinta década e se tornou a terceira mais prevalente glomerulopatia na oitava década de vida.
A prevalência de GESF sofreu queda (p < 0,05) e as de nefrite lúpica (p = 0,0001) e glomerulonefrite membranosa (p < 0,005) se elevaram durante o período do estudo. A queda na prevalência de GESF foi ainda mais intensa quando apenas a população adulta foi considerada (p = 0,0001). A prevalência de glomerulonefrite proliferativa difusa caiu em adultos (p < 0.05). A distribuição de outras glomerulopatias não se alterou substancialmente durante o período (Tabela 3).
Tabela 3 Prevalência de glomerulopatias estimada por biópsia em três períodos consecutivos de 2003 a 2015
Glomerulopatias | Período | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Lopatias | 2003-2006 | 2007-2010 | 2011-2015 | ||||||
Criança | Adulto | Total | Criança | Adulto | Total | Criança | Adulto | Total | |
N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | N (%) | |
N | 97(100) | 141(100) | 245(100) | 92(100) | 323(100) | 431(100) | 111(100) | 507(100) | 636(100) |
GESF | 37(38) | 46(33) | 85(35) | 27(29) | 83(26) | 114(26) | 33(30) | 93(18)c | 129(20)a |
LES | 6(6) | 23(16) | 30(12) | 14(15) | 90(28) | 107(25) | 11(10) | 136(27) | 151(24)c |
GNM | 2(2) | 14(10) | 18(7) | 0(0) | 26(8) | 27(6) | 4(4) | 66(13) | 70(11)b |
GNPD | 13(13) | 10(7) | 23(9) | 12(13) | 8(2) | 20(5) | 14(13) | 13(3)a | 27(4) |
DLM | 8(8) | 3(2) | 12(5) | 18(20) | 15(5) | 34(8) | 13(12) | 20(3) | 34(5) |
GNMP | 1(1) | 12(9) | 13(5) | 1(1) | 21(7) | 23(5) | 5(5) | 36(7) | 44(7) |
NIGA | 1(1) | 10(7) | 11(4) | 3(3) | 13(4) | 16(4) | 4(4) | 27(5) | 32(5) |
ap < 0.05,
bp < 0.005,
cp = 0.0001. Qui-quadrado para tendências.
No presente estudo, descrevemos a prevalência de doenças nefrológicas diagnosticadas por biópsia em Salvador. Também demonstramos as mudanças na distribuição das glomerulopatias associadas à idade dos pacientes e às mudanças temporais na distribuição dessas patologias nas biópsias realizadas durante um período de 12 anos.
Apenas as biópsias com diagnóstico confirmado via imunofluorescência e microscopia eletrônica (quando necessário) foram incluídas. Além disso, a prevalência de doenças nefrológicas, da forma como foi estimada nos laudos anatomopatológicos, foi comparada à prevalência obtida a partir da revisão histológica de uma amostra das biópsias executadas durante o período abordado pelo estudo.
Esta é a primeira pesquisa sobre a prevalência de glomerulopatias comprovadas por biópsia feita em Salvador, desde o estudo conduzido por Queiroz e colaboradores et al.9 (1975). O estudo publicado por Queiroz e colaboradores incluiu 47 biópsias de indivíduos adultos com síndrome nefrótica identificados a partir de 101 biópsias realizadas num período de três anos. GNMP foi o padrão mais comum de lesão glomerular, presente em 43% dos pacientes com síndrome nefrótica (representando pelo menos 20% das 101 biópsias). GESF esteve presente em 19% das lesões dos pacientes adultos com síndrome nefrótica. No presente estudo, GESF foi a principal lesão glomerular observada e foi detectada em 25% das biópsias, enquanto GNMP esteve presente em apenas 6% dos casos.
Apesar das estimativas baseadas em biópsias estarem sujeitas a viés de seleção por conta dos critérios clínicos utilizados para a indicação de biópsia, a diferença entre nosso estudo e o de Queiroz e colaboradores9 pode refletir uma real mudança no padrão de distribuição das glomerulopatias pelos seguintes motivos:
GNMP é um padrão não-específico de doença renal frequentemente associado a grandes deposições subendoteliais e mesangiais de imunocomplexos e/ou complementos.11 Esse padrão de lesão é encontrado em pacientes com doenças infecciosas e autoimunes.12,13 A maioria dos casos de GNMP apresentados por Queiroz et al.9 e colaboradores (1975) estava associada à forma hepatoesplênica da esquistossomose. A esquistossomose hepatoesplênica combina shunt de sangue portal para a circulação sistêmica e altos níveis circulantes de antígenos gerados pelo Schistosoma mansoni. Desde fins da década de 1970, o tratamento quimioterápico contra a infecção por S. mansoni drasticamente reduziu o número de pacientes com a forma hepatoesplênica da doença.14 Coinfecção por bactérias e vírus podem contribuir para a continuidade da circulação de imunocomplexos. Com efeito, um declínio paralelo no número de casos de GNMP e esquistossomose hepatoesplênica foi relatado por Correia e colaboradores,15 e esta forma clínica da esquistossomose é hoje incomum entre pacientes submetidos a biópsia renal em Salvador.16 Além disso, as melhorias no saneamento básico e na prevenção contra infecções virais observadas no Brasil no mesmo período podem também ter contribuído para a queda da prevalência de GNMP ocorrida em Salvador e observada no presente estudo.17,18
O padrão de distribuição das doenças renais com o predomínio de GESF e nefrite lúpica exibido no presente trabalho foi semelhante, em vários aspectos, aos resultados relatados em outras regiões do país e em várias nações.5,19,20
A elevada prevalência de síndrome nefrótica seguida pelo lúpus eritematoso sistêmico como principais manifestações clínicas dos pacientes concordaram com a distribuição observada das doenças renais. A prevalência de doença renal estimada com base nos laudos de biópsia foi confirmada pela revisão histológica das biópsias realizadas entre 2003 e 2006.
A nefrite lúpica foi a doença nefrológica secundária mais comum em adultos e crianças. Elevada frequência de nefrite lúpica foi descrita na maioria dos estudos fundamentados em biópsia5,21.
Com efeito, apesar da GESF ter sido a doença nefrológica mais comum, uma tendência de queda em sua prevalência e de elevação da nefrite lúpica foram observadas no período estudado. A glomerulonefrite membranosa apresentou um leve aumento de prevalência entre 2010 e 2016. Ainda que essas mudanças de prevalência possam ter sido influenciadas pela proporção de crianças submetidas a biópsia entre 2006 (41%) e 2016 (18%), as mesmas persistem quando apenas a população adulta foi considerada.
Uma possível explicação para essa mudança pode incluir a maior conscientização em torno de outras doenças renais e a prevenção de manifestações que levam a GESF, tais como infecções virais.22 Assim, a consideração conjunta do presente artigo e do estudo de Queiroz et al.9 e colaboradores (1975) demonstrou duas importantes mudanças na distribuição das doenças nefrológicas em Salvador: de GNMP para GESF (de 1975 a 2006) e de GESF para nefrite lúpica (de 2006 a 2015) como a doença mais prevalente.
A prevalência de nefropatia por IgA foi baixa, sendo detectada em 5% das patologias relatadas com comprovação por biópsia no presente estudo e em 8% das glomerulopatias primárias em adultos. Nossa prevalência foi semelhante à relatada em outros países latino-americanos, na Arábia Saudita e no subcontinente da Índia.19,23-25 Entretanto, ela foi muito mais baixa do que a prevalência observada em outras regiões do Brasil e em outros países.6,20,21,26
Uma prevalência tão baixa de nefropatia por IgA pode ser explicada pela composição étnica da população de Salvador.21 Estima-se que os afrodescendentes representem 73,1% da população do estado da Bahia.27 Contudo, não houve diferença na frequência de NIgA entre os grupos étnicos incluídos no presente estudo, apesar dessa característica ter sido relatada em apenas 286 dos 1.312 pacientes. Não obstante, hematúria e síndrome nefrítica, manifestações comuns de NIgA, foram observadas em apenas 9% dos pacientes do estudo.
Não sabemos se essa é a real frequência de apresentação de doença renal em Salvador ou se este é um reflexo dos critérios utilizados para a recomendação de biópsia pelos nefrologistas assistentes em atuação na cidade. A frequência relatada de hematúria foi elevada nos estudos que mostram altas prevalências de nefropatia por IgA.4,5,26,28 Assim, mais estudos são necessários para definir se a baixa frequência de nefropatia por IgA observada no presente estudo se deve a uma real baixa prevalência da doença ou aos critérios utilizados pelos médicos para indicar biópsia renal.
A distribuição etária das glomerulopatias varia entre os estudos publicados em diferentes países.24,25,29 Contudo, alguns aspectos são semelhantes na maioria dos estudos, tais como a queda na prevalência de doença por lesão mínima e glomerulonefrite proliferativa difusa e o aumento na prevalência de glomerulonefrite membranosa e amiloidose com a idade. Nosso estudo também concordou com outros que demonstram ocorrência predominante de nefrite lúpica e nefropatia por IgA da segunda à quinta década de vida.24,25 Além disso, demonstramos uma elevada prevalência de GESF em todas as idades, com ligeira queda entre a terceira e quinta décadas de vida.
Em conclusão, os dados apresentados no presente estudo demonstram que o padrão de distribuição das glomerulopatias comprovadas por biópsia se alterou em Salvador desde 1973, tornando-se semelhante ao observado em muitos países de maior renda.