versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.3 Rio de Janeiro mar. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015213.06472015
Adventos no campo das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) têm se tornado tão frequentes quanto as implicações que deles se originam no âmbito de observação sociológica. Com o advento das conexões por banda larga, observam-se avanços qualitativos da internet “unidirecional” (distributiva) para o terreno da mHealth e do self-tracking como campo de farto material à sociologia da biopolítica1,2. Cremos como matéria sumamente relevante a descrição de novos sentidos produzidos por esses aparatos em suas repercussões subjetivas, sociais e políticas.
Apesar do desenvolvimento econômico das últimas décadas, iniquidades sociais e econômicas no Brasil também se refletem, agora sob novos formatos, no âmbito do acesso às tecnologias de informação e comunicação3. No tocante ao quantitativo de acessos à informação sobre saúde, a base da pirâmide socioeconômica brasileira tem se tornado cada vez mais estreita. A partir de consultas ao Google trends (acesso aberto) observa-se o crescimento exponencial de visitas advindas das regiões mais pobres do país. Entretanto, na dimensão qualitativa, pouco se sabe sobre a apropriação e as práticas em vista desse amplo acesso. Portanto, uma questão aqui colocada se refere à correspondência entre o volume e a natureza da informação buscada e seu efetivo emprego na adesão a novos hábitos de proteção à saúde. Em paralelo à expansão da Internet, observa-se que os cânceres de identificação precoce continuam a ser diagnosticados tardiamente no SUS, em estadiamento avançado4, como à época do escasso acesso às informações5-9. Existe documentação farta na literatura concernente às decisões adiadas no momento de se buscar suporte profissional nesse campo, seja esta produzida em países de posição socioeconômica desfavorecida10-12, seja em países plenamente industrializados13-15.
Em síntese, o que se deseja retratar pode ser resumido na perspectiva de dois panoramas. O primeiro se refere ao potencial oferecido por pontos de observação talvez subestimados pelos observadores da WEB distributiva. Os interessados nas TICs como intermédio para observação de fenômenos sociais, certamente, se interessarão pelo que se descreverá adiante. O segundo ponto, derivado do anterior, se refere a padrões de acessos ao website do Instituto Nacional de Câncer (INCA) que colocam em tela a distância entre os propósitos das campanhas institucionais de prevenção do câncer e seus desdobramentos em termos de apropriação social de informações.
Há poucos estudos sobre padrões de acesso à informação em países socioeconomicamente desfavorecidos com intensa apropriação das novas TIC16. Não obstante, os poucos experimentos mostram achados expressivos, embora ainda careçam de metodologia homogênea em vista do advento recente das tecnologias. Como tantos outros fenômenos sociais, esses padrões se ampliaram e se diversificam seguindo imperativos históricos, políticos e culturais peculiares a cada terreno de observação16. Na perspectiva da sociologia do risco, é razoável admitir que tais necessidades possam expressar perigos aos quais os indivíduos se sentem mais vulneráveis e que suscitam as decisões derivadas17,18. Nesse contexto, os planejadores de campanhas que buscam atender demandas crescentes por esclarecimentos no campo da atenção primária poderiam se valer dos padrões de acesso à web como ilustrativa fonte de referências. Pesquisas nesse campo têm se intensificado19-22, produzindo novos conceitos acerca da origem e do sentido atribuído às percepções coletivas, o que se considera fator essencial ao aprimoramento das estruturas assistenciais. Em teoria, a Internet representaria um valioso recurso ao autocuidado caso se admita a proatividade universal dos sujeitos idealizados aos quais as mensagens são dirigidas. Em tese, prover informação seria promover o empowerment de pacientes, cuidadores e usuários na condição de seus padecimentos crônicos23. Tendo em vista tal proatividade, as estratégias de veiculação de mensagens pelos meios de comunicação têm sido consideradas, pelo mainstream nesse campo, como as vias mais eficientes para divulgação de informações para prevenção de riscos. No entanto, seria relevante levantar alguns questionamentos: prioridades e urgências por informações poderiam ser influenciadas por dificuldades (coletivamente percebidas) ligadas ao acesso e à resolutividade dos sistemas de saúde? A divulgação persistente de avanços tecnológicos no diagnóstico e tratamento poderiam criar demandas que poderiam confundir a interpretação de mensagens institucionais de proteção à saúde? Todos esses elementos, incidindo de variadas formas sobre contextos multifacetados, poderiam gerar padrões de buscas passíveis de estudos pelos formuladores de políticas públicas de assistência?
Alguns trabalhos recentemente publicados reafirmam aspectos centrais ao que aqui se interroga. Há descrições de diferenças entre padrões de uso que se referem a status socioeconômico, gênero, capital social e etnia24. Descreve-se nos segmentos socioeconomicamente desfavorecidos (mas não exclusivamente, a depender do tema) um relativo desinteresse por informações de prevenção (assim como observamos em estudos anteriores). Visitas a websites de centros especializados na busca por conteúdos ligados às tecnologias médicas são mais frequentes16 e os padrões de acesso e consumo de informações são coerentes com a saúde autorreferida25. Em síntese, a percepção ampliada de vulnerabilidades se vincula às buscas que adquirem formatos de autodiagnósticos, na perspectiva de inúmeros riscos potenciais pressentidos. Buscas reativas (peculiares aos mais vulneráveis) se acumulam à frente das proativas, peculiares a sujeitos idealizados como consumidores racionais de dados sobre prevenção de doenças23. Em outros termos, o autocuidado se resume ao uso preemptivo de informações26, a serviço do imediato e urgente sob a perspectiva de uma condição vulnerável.
A partir da observação dos log files (visitas ao site), é possível estimar padrões de buscas (queries) e oscilações de interesse com nível de detalhamento suficiente à caracterização dos assuntos mais relevantes ao momento27. Isso já é corriqueiramente empregado no E-business – as tecnologias de tracking de navegação deslocaram o centro de negócios da cadeia produtiva para o processo de consumo de informações sobre produtos. O escrutínio de indicadores de browsing nesse campo tem sido, classicamente, objeto de estudo dos saberes ligados ao marketing de vendas. No presente caso, ao contrário das estimativas baseadas em buscadores genéricos (como o Google ou o Bing!), o estudo de queries a partir de websites institucionais – fontes consagradas de comunicação secundária – disponibiliza acesso ao discurso institucional puro, sem o bias comercial ou as controvérsias técnicas peculiares à comunicação primária (entre pares)28 e à comunicação informal interleigos. É possível estimar por softwares (Log analyzers que analisam registros de acessos, identificando padrões de interesse a partir de agregados de visitas individuais) o foco/nível de interesse das buscas mais focadas e persistentes em assuntos que apontam, como no E-business, ao sentido de uma percepção na direção de opções. Em trabalhos anteriores estimamos os números médios mensais das sessões (visitor sessions), Razões de Retorno (número de acessos/número de usuários no mês), páginas e arquivos mais acessados, além do tempo de permanência médio em cada página em busca de pontos de observação que esbocem contornos do mercado simbólico nesse campo. Embora não haja forma de, efetivamente, quantificar o interesse social que desvenda o sentido das práticas, acreditamos que existem vestígios interessantes que conferem consistência aos padrões de queries como referências coletivas que não devem ser ignoradas. Representariam marcas de inscrição dos círculos de atenção social produzido pelo capital simbólico acumulado na dinâmica das trocas coletivas – tema cuja discussão aprofundada não caberia nos espaços aqui reservados.
Como exemplo, descrevemos no site do INCA27 traços dos círculos de atenção ligados a peças ficcionais e fatos de expressiva divulgação nas mídias, como o acesso às páginas sobre o câncer de próstata após a morte do governador do estado de São Paulo (Figura 1). O diagnóstico de leucemia de uma personagem de novela (“Laços de família”, 2001) também aumentou expressivamente o número de acessos às páginas sobre a doença, assim como o tempo médio de permanência – suficiente para a caracterização de um padrão de interesse (Figura 2)27. Outros estudos descrevem reações semelhantes às peças de ficção que dimensionam seu não desprezível impacto, além do efeito das celebridades na TV, cinema, rádio e demais mídias – independentemente destas serem exibidas em países industrializados ou em outros do terceiro mundo27,29-31. Nossas observações também exploraram as peculiaridades sobre o interesse coletivo voltado às páginas sobre cânceres durante campanhas institucionais32, cujos padrões de acessos foram estimados ao longo de três anos com foco nas datas dedicadas às campanhas de prevenção do câncer – o dia mundial de combate ao tabagismo (31 de maio), o dia nacional de combate ao tabagismo (29 de agosto) e o dia nacional de combate ao câncer (27 de novembro). Foi descrito o paradoxo dos acessos que divergiam das intenções fundadoras das campanhas, ligadas à promoção de saúde e à prevenção de doenças. Os eventos nacionais suscitaram buscas mais intensas aos conteúdos sobre as doenças já instaladas e às novas tecnologias de tratamento. Em contraste, o interesse voltado às páginas sobre prevenção ou identificação precoce do câncer manteve-se inexpressivo. Mais recentemente, identificamos um padrão de acesso semelhante ligado ao autoexame de pele e à proteção contra a superexposição de radiação UV durante os meses de verão33, assim como durante as campanhas de prevenção do câncer de pele ao longo de quatro anos (Figura 3). As conclusões derivadas dessas observações nos conduziram a perguntas - na dimensão cultural, as campanhas de prevenção do câncer promovem saúde, doenças ou tecnologias? Remediar parece mais interessante do que prevenir?
Figura 1 Evolução das médias mensais de visitas às páginas sobre causas e prevenção do câncer no site do INCA e efeito da morte do governador de São Paulo.
Figura 2 Número médio mensal de visitas à página sobre leucemia durante adoecimento de personagem de novela da TV.
Tanto no Brasil, quanto em outros países, investem-se recursos na produção de eventos educativos sobre saúde, não raro empregando linguagem protocolar, técnica e pouco acessível à base da pirâmide socioeducacional (o que não se observa nas campanhas do E-business). Crenças no poder de “passar a informação”, com base na “heteronomia da educação bancária”34 têm sido objetos de críticas acerca de seus meios, custos e resolutividade. Campanhas institucionais assim planejadas não alcançariam potência simbólica suficiente à modificação dos valores mais arraigados. A polissemia de imagens e mensagens e suas apropriações de sentidos decorrentes tentam resumir “o brasileiro” como uma categoria média e homogênea como no “Guia de Educação Alimentar” do MS35. Os princípios clássicos da educação em saúde, talvez influenciados pelas leis do Social Marketing36,37, apostam na resolutividade dessas estratégias por acreditarem na interferência direta e linear das informações veiculadas38. Não há formas de estimar objetivamente os impactos gerados por essas táticas, mas as estratégias parecem não considerar as peculiaridades envolvidas na multiculturalidade das sociedades complexas, o que pode resultar em resultados frustrantes ou paradoxais39. Ao investir na transmissão direta de conhecimentos aos indivíduos, tendem a desconsiderar os meios culturais e socioeducacionais nos quais estes se inserem e a partir dos quais extraem seus sistemas de significação de verdades. As campanhas institucionais para proteção da saúde e prevenção de doenças, sejam consideradas atividades de “promoção de saúde” ou não40, ainda carecem de sistemas criteriosos de avaliação que abandonem a fenomenologia das impressões sobre impactos.
As campanhas de prevenção do câncer, após décadas de experiências com variados formatos de intervenção, parecem exercer influência dúbia no imaginário social. No Brasil, parecem não considerar as peculiaridades da multivetorialidade cultural que povoam países de dimensões continentais. A influência de eventos tidos como irrelevantes, embora de intenso impacto regional, não raro resultam em indiferença coletiva por conta publicização em timings ou formas inapropriadas27,32. O volumoso fluxo de informações possibilitado pela internet e outros meios de comunicação parece, por vezes, distrair o interesse público para longe de medidas cotidianas prosaicas ao direcionar os círculos de atenção para tecnologias promissoras na cura de males41. Há projetos imersos na típica lógica do consumerism – melhor informação para melhor decisão36 ou, “sem informações cientificamente validadas, a sociedade de consumidores proativos adquiriria qualquer produto”23. Em contraste, revisões sobre o tema afirmam que os consumidores com maior escolaridade e maior potencial de discernimento frente a engodos, são as principais vítimas do comércio fraudulento42,43 e dos boatos sobre riscos à saúde44. Além disso, há mais de duas décadas a causalidade entre a exposição aos raios UV e o câncer de pele já era popularizada. Não obstante, 38% dos banhistas americanos, mesmo conscientes do risco de câncer de pele, evitavam a proteção antiUV45. Os australianos conseguiram reduzir a incidência de novos casos de carcinomas basocelulares e melanomas somente entre indivíduos com mais de 6 décadas de vida46, embora entre os mais jovens – usuários mais assíduos da internet – o controle permaneça como desafio e prioridade47.
No campo da psicologia social, questiona-se48,49 a ligação direta entre conhecimento de práticas e efetivas mudanças de comportamento. Essa compreensão foi essencial, embora incompleta, para explicar insucessos nas campanhas de orientação comportamentalista, voltadas a sujeitos idealizados de perfil proativo e orientados a decisões racionais47. No campo em questão, a dissonância cognitiva faz questionar modelos de campanhas baseadas em pura informação – efetivamente eficaz entre os australianos mais velhos, mas não entre outros47. Decerto há peculiaridades socioculturais a considerar, talvez ligadas a temas que perduram em ciclos locais de interesse persistentes36,39,50. Talvez o conhecimento individual insuficiente acerca do próprio estado de saúde, associado à “cultura da medicação” e somado ao destaque aos avanços tecnológicos no terreno das terapias, exerçam “influências antiprevenção” sobre a cultura. Por outro lado, há autores que identificam em certos segmentos sociais uma percepção ampliada de superexposição a riscos, conjugada à enunciação midiática de perigos decorrentes de fatores mal definidos, de validade científica mal comprovada ou de compreensão pública precária. Segundo estes, a reação dos banhistas americanos é atribuída ao “efeito avestruz” ligado à ideia de que submergimos em um mar de carcinogênicos contra o qual não há proteção41,51,52. Talvez o risco carcinogênico ligado a determinados fatores ainda careça de potência estruturante suficiente para a modificação de hábitos arraigados – a depender do ponto de observação e dos modelos explicativos, muitas interrogações persistem em um terreno sujeito a numerosas versões em mútua contradição.
Retornando às questões centrais – as campanhas de prevenção do câncer promovem saúde, doenças ou tecnologias? O autodiagnóstico, em contexto de percepção de vulnerabilidades e ineficácia das estruturas assistenciais, seria mais acessível que as informações para prevenção? Seriam as buscas reativas governadas pelo medo, mais do que pela razão? O risco do câncer alcançaria mais peso que a prevenção desses males? Na sociedade de risco, se imporia a fluidez das incertezas e das iminências53 aliada ao descrédito nas tecnologias de proteção? Essas questões podem ser ilustradas por textos mais recentes e ferramentas analíticas não classicamente empregadas nos estudos sociológicos sobre riscos – os modelos heurísticos emocionais que levam às decisões, assim como aos interesses e pesquisas por informações que as precedem54-57. As emoções (ou afetos, como discutido adiante) guiariam nossas escolhas por meio de impulsos reativos e atalhos mentais a pautar opções. À vista do exposto, seria razoável admitir que os comportamentos e as buscas reativas talvez se definam nos conjuntos de associações ligadas a sensações percebidas como “perigo”, “temor”, “risco” ou “insegurança”54,56,58. Aquém disso, se colocariam os afetos ou as inclinações não objetificáveis (e ainda não discursivas) dos quais se originam emoções e percepções de risco. As emoções se alinhariam em uma cadeia de reações como veículos e rotas de fuga eficientes na iminência de desastres e impulsionadas por afetos que lhes antecedem. Todo o processo seria sucedido pelas racionalizações legitimadoras, que julgam afetos/emoções como “intuições” paralelas e independentes do processo de racionalização. Tais perspectivas se fundamentam na distinção entre sensações corporificadas através das quais as emoções comporiam um “sistema experimental” intuitivo. Este, como “sistema analítico”, empregaria o lógico, o normativo, o factual e o matemático, mas também informado por sua contrapartida emocional, mais ágil. Criam-se assim lacunas e ícones que dão matéria aos esboços de perigo, ora consubstanciados como produtos industrializados, ora como doenças que trazem consigo estigmas de sofrimento e degradação física. Esses ícones se estigmatizam no imaginário coletivo a espera de estímulos externos – como o adoecimento de celebridades ou de personagens de novelas. A percepção de um nível crítico de risco –diretamente relacionado à autopercepção das vulnerabilidades legadas pelas falhas no suporte assistencial ou educacional – não encontra nas campanhas de prevenção os acenos de esperança que necessita. Ao contrário, trazem-nos à tona dos círculos de interesse. Como já observaram Gregory et al.59, determinados estigmas se criam, se mesclam e dão origem a alguns outros a todo o momento. Reproduzem-se como elementos estruturantes à percepção pública da saúde, influenciando a aceitação ou a rejeição de inovações científicas e tecnológicas. Cria-se assim a tripartição do risco como “percepção” (subjetiva), “análise” (objetiva) e “política”, sendo esta última representada pelo embate público entre as duas primeiras na contingência dos momentos históricos17,60,61. Tais embates, tipicamente, envolvem atores retratados pela análise da literatura de risco como “leigos excessivamente emocionais” em oposição aos avaliadores de risco especializados ou “analíticos”57.
A propósito desse embate político dos riscos, torna-se importante definir conceitos que não raro se mesclam levando a contradições e até a modelos essencialistas ou falaciosos. As “emoções” e os “afetos” não raro parecem se conjugar ou se contradizer nos textos que tratam das comoções heurísticas59 que norteiam percepções e decisões coletivas. À leitura dos autores que se pautam por conceitos da filosofia de Spinoza e Deleuze62, essas emoções melhor se definiriam como afetos ou “inclinações não conscientes” – consequentemente pré-linguísticas e não discursivas – ainda externas aos domínios das emoções que podem ser verbalizadas. O affectus de Spinoza se liga à capacidade de afetar e ser afetado no decurso de um estado experiencial a outro, implicando modificações na disposição à ação63. Em oposição aos afetos, embora tomados numa relação em que um pressupõe o outro, as ideias são modos de pensamento puramente racionais e representativos vinculados ao que pode ser chamado de “realidade objetiva”. De forma diversa, os afetos não possuem caráter representativo – são inclinações volitivas em busca de objetos de representação. Em Spinoza, ideia e afeto são dois modos de pensamento que diferem em natureza, irredutíveis um ao outro e que, de certa forma, acrescentam uma interessante complexidade à teoria das comoções heurísticas. Decerto as ambiguidades da cultura de risco envolvem um pendular entre certezas e inseguranças, entre idas e retrocessos que se dão em contextos dinâmicos e plurais em meio aos quais os riscos são reconformados.
A antropóloga Deborah Lupton57,61 critica a aproximação dessas noções polares a modelos cognitivos psicométricos de avaliação de riscos e tomada de decisões que se reduzem a conjuntos de relações de causa/efeito, sob variáveis que possibilitam estimativas lineares de consequências. Sob o ponto de vista filosófico, pode ser percebido certo essencialismo na construção desses modelos que nos faz acreditar em dualidades elementares, que aceitam a irredutibilidade de um núcleo silencioso universal. Nos extremos desses conceitos, a atenção às perspectivas filosóficas simplificadoras é essencial. Sem áreas cinzentas, estas apenas ponderam com base em linearidade insensível às ambivalências e complexidades sociais. Sob a ótica de textos sociológicos, tais noções de “operações intuitivas” se ampliariam muito além dos modelos psicológicos comportamentais, como construções derivadas de entendimentos acerca de experiências e percepções coletivas, talvez até contraditórias64-66. Embora a partir de recursos internos e externos díspares e frequentemente contraditórios, se colocam “como forma produtiva de incorporar dimensões discursivas e experienciais da emoção/afeto”66.
Seja sob perspectivas duais ou sob outros prismas mais ampliados, os afetos (ao contrário dos riscos em dimensão de parafactualidade construída por probabilidades) são imateriais na dimensão individual embora quando sob as discursividades da dimensão política se ampliem como premências iminentes, nunca insubstanciais. Porém, quando manifestos discursivamente (como nas campanhas de prevenção) se esvaziam na dimensão relacional, embora substanciados como experiências coletivas e memórias67. Não nos parece ser, unicamente, a multiplicação de construções individuais, mas, além disso, um discurso partilhado que reúne biografias e nos apela à razão de dentro para fora e ao contrário.
Com o advento das novas TIC deveríamos dominar um conhecimento substancial acerca das ameaças, embora as certezas acerca de como lidar com estas pareçam plurais e dessubstancializadas, porém sempre imperiosas. Com a popularização das TIC algumas estratégias de sobrevivência psíquica se tornaram mais acessíveis à medida que o ingresso no mundo das informações se ampliou. No entanto, em certa medida (e em particular no que concerne às mídias de massa) este tem se estabelecido na dúbia função problema/solução. À enunciação altissonante de riscos segue-se a incompletude das medidas protetoras, o que retroalimenta os ciclos. O acesso a informações cada vez mais qualificadas soa como estratégia psíquica razoável de reação para a reconquista do controle perdido.
Acerca do processo de individualização autorreflexiva das condutas e de cursos de vida, Ulrich Beck53 observa que as biografias se transformaram em cursos a serem produzidos por cada um. Em outros termos, nos exigimos decisões a respeito da saúde, dos hábitos de prevenção, assim como a opção entre buscar ajuda profissional ou o suporte do Dr. Google (entre tantas outras opções quotidianas). Da mesma forma, as consequências advindas (talvez irreversíveis) de tais opções deverão ser assumidas, posto que nos colocamos tanto como “foco de ação como agência de planejamento”53 no que concerne às afiliações às verdades disponíveis selecionadas pelos afetos. Os riscos se tornaram onipresentes consubstanciados em todas as sinuosidades da administração da vida cotidiana, embora talvez dessubstanciados de suas ameaças causais.
Com efeito, os recursos tecnológicos de consubstanciação disponíveis em mútua influência com os ciclos de interesse que nutrem e são nutridos pelas mídias de comunicação (a dessubstanciar produtos dos primeiros) produziram efeitos que transcendem às relações entre médicos e pacientes, assim como as dos sujeitos com seus próprios corpos. Os riscos à saúde tornaram-se pérolas de interesse da política, da educação e de diversas outras dimensões do mundo social68. Cidadãos clamam por sustentabilidade ambiental de matrizes energéticas, informações sobre a composição de alimentos, consomem literatura sobre autoajuda e frequentam o Pubmed.com em busca de atualização sobre tecnologias de cura e testes diagnósticos. Nesse contexto, os riscos à saúde são construções contingentes, de caráter normativo, vinculados a definições do humano, o tipo de sociedade que se busca e as maneiras de consegui-lo69.
Acreditamos que os traços de reatividade das queries ao site do INCA talvez esbocem vetores culturais sobre os quais incidam influências de diversas ordens. Decerto a redução de iniquidades se apoiaria, sobretudo nesse cenário, primeiramente na capacidade de busca, compreensão plena e ampliada, contextualização crítica e, finalmente, eleição das informações mais caras e confiáveis ao cuidar-de-si. No Brasil, a inclusão digital se deu pela porta do mercado de bens e consumo e não pelo acesso à cidadania plena, à educação, à saúde e, sobretudo, à capacidade crítica de identificar lapsos e à oportunidade política de avançar nesses campos. Importante considerar que, no Brasil, a simples expansão quantitativa de acessos sem redução de iniquidades socioeducacionais, compromete a aptidão crítica perante as informações acessadas. A baixa escolaridade, a limitada capacidade de leitura, a concentração insuficiente e o analfabetismo funcional se colocam como obstáculos à compreensão e incorporação crítica das informações, daí emergindo os afetos para prevenção de riscos. Talvez a percepção de tais insuficiências e suas vulnerabilidades consequentes se expressem na ansiedade por conteúdos de “autodiagnóstico” precário e urgente, como esforço de superação imediata de temeridades vinculadas a condições de vida adversas. É, assim, razoável supor que a força simbólica de utilidade e relevância de conteúdos que forneçam condições ao autoescrutínio ora suplante (no imaginário coletivo dos segmentos mais vulneráveis) os conteúdos ligados à mudança de hábitos e costumes como evasiva aos riscos.
As tendências de busca se voltariam, assim, ao preemptivo urgente sob a perspectiva de um presente adverso. É razoável crer que os segmentos populacionais com baixa escolaridade – agora com acesso à WEB cada vez mais facilitado, mas ainda descontemplados pelas políticas de atenção primária – seriam os mais influenciáveis e mais “reativos” em suas buscas. Talvez isso se torne cada vez mais evidente em médio prazo, à medida que o acesso à Internet se popularize, com conexões cada vez mais facilitadas por meio de LAN Houses ou pela popularização do acesso móvel via redes wireless abertas. De certo modo, as queries reativas talvez também apontem falhas na organização de nosso sistema de saúde – centrado em serviços de alta complexidade e com sistemas de atenção primários ainda desguarnecidos em sua função de esclarecimento público (talvez por isso ainda pouco resolutivos). O crescimento da dimensão quantitativa do acesso à informação via internet pode ser vista, então, sob perspectivas de negatividade ou positividade. Neste último aspecto, é positivo considerar o número crescente de indivíduos buscando, como forma de exercício de cidadania, as melhores informações sobre os serviços de saúde. Por outro lado, nos cidadãos que não mais confiam no Estado e na sua capacidade atendar às suas demandas, percebe-se nitidamente uma dimensão de negatividade.
A racionalidade expressa nos padrões de acesso produzida pelos “affectus” também abasteceria a mercantilização e a ideia de precarização do SUS de formas bem perceptíveis nos noticiários. Mais informação não significou, necessariamente, mais prevenção, pois as falhas do sistema persistem ao reforçar alguns padrões culturais de afastamento do autocuidado. Neste campo, os esforços de prevenção ou detecção precoce do câncer são objetos de processos comunicativos institucionais aos quais é justo retribuir com subsídios para futuras iniciativas.