versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.21 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 10-Jul-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0001
Até a década de 1980, os pacientes psiquiátricos eram afastados e isolados da comunidade, ocupando leitos manicomiais quando necessitavam de qualquer tipo de internação e, assim, a prática em enfermagem era marcada por um modelo controlador e repressor.1,2 A Reforma Psiquiátrica fomenta o reconhecimento da condição de cidadania que foi negada ao para o doente mental, modificando o tratamento clínico da doença e possibilitando a reorganização dos serviços de atendimento, principalmente, com a criação de novas modalidades nesse âmbito, como os Centros de Atenção Psicossocial.1-3
Essa reforma também introduziu, no campo da saúde mental, o paradigma da Atenção Psicossocial, que incorpora a interdisciplinaridade como exigência de cuidado, colocando em foco a pessoa com sofrimento psíquico, sua vida e suas fragilidades.4 Nesse novo modelo de atenção à saúde, o enfermeiro precisou lançar mão de teorias complementares ao cuidado que envolvessem saberes transcendentes ao modelo biomédico, favorecendo à adoção de uma prática que tem como base o resgate da cidadania.1,2,5,6
Conhecer o saber da Enfermagem possibilita a delimitação de seu campo de abrangência e a compreensão de como estes saberes influenciam a prática do cuidado.7 Bárbara Carper, já na década de 70, compreendia que para contribuir com a enfermagem enquanto ciência era importante determinar o tipo de conhecimento específico da área.8 Em sua tese de doutorado, descreve quatro padrões de conhecimento em enfermagem: o empírico, compreendido como a ciência da Enfermagem; o estético, visto como a arte da Enfermagem; o conhecimento pessoal, que possibilita o relacionamento autêntico e genuíno com os outros seres humanos; e o ético, percebido como o componente moral.8 Mesmo descritos separadamente, esses padrões devem ser utilizados de forma conjunta, pois se expressam de maneira integrada e com conexões, sem as quais o cuidado de enfermagem e as intervenções não seriam realizadas de forma holística.8,9
No contexto do cenário pós-reforma, o cuidado a pessoa em sofrimento psíquico em primeiro surto psicótico também passou a ser estudado e discutido em suas diversas perspectivas de tratamento, sendo a abordagem psicanalítica e a relação interpessoal meios do enfermeiro assumir uma nova postura. Dessa forma, esse profissional volta-se para o papel de agente terapêutico e para questões de relacionamento com o paciente e sua família, deixando de lado a postura de vigia e repressor.4,10-12
Ao longo do primeiro surto psicótico, a atuação do enfermeiro tem sido descrita como fundamental para o prognóstico do paciente, uma vez que esse profissional, enquanto gerenciador da equipe pode atuar em ações biopsicossociais, no âmbito da família e, principalmente, por meio da comunicação terapêutica.12,13
No entanto, percebe-se que embora a Reforma Psiquiátrica tenha proporcionado avanços significativos, a atenção a pessoa em sofrimento psíquico em primeiro surto psicótico ainda é permeada por práticas reducionistas e por saberes oriundos do senso comum, uma vez que os artigos têm tratado do primeiro episódio psicótico sem muita profundidade, com falta de orientações a respeito do papel da enfermagem durante o tratamento.6,10,12,14
Diante do exposto e necessidade de maiores evidências sobre o papel dos enfermeiros de saúde mental no tratamento e cuidado a esses pacientes, o presente estudo tem como objetivos conhecer como os enfermeiros realizam o cuidado ao paciente em primeiro surto psicótico, bem como identificar os padrões de conhecimento de Bárbara Carper utilizados nessa ação.8 Salienta-se que a relevância deste estudo está na discussão do cuidado ao paciente em questão pelo olhar dos profissionais, a fim de reconhecer por meio dos padrões de conhecimento em que se fundamenta o corpo da Enfermagem em saúde mental.8
Trata-se de um estudo qualitativo, de abordagem fenomenográfica, cujo objetivo é compreender a experiência das pessoas, por meio de uma visão não dualista que objetiva conhecer as formas de conceber e experienciar o mundo a sua volta.15 Tal método compartilha com a fenomenologia seu objeto de pesquisa, que é revelar as experiências humanas, mas sua peculiaridade é considerar que os fenômenos são vivenciados de forma qualitativamente diferentes, e pode demonstrar diversas formas de ver, vivenciar e compreender.15 Orienta-se para o conteúdo dos achados, está mais interessada no sentido coletivo e não só na experiência individual, também ocupa-se da aprendizagem cultural e das formas que cada um desenvolveu para se relacionar com o mundo a sua volta.15 É possível considerar esse tipo de pesquisa útil a área da saúde e enfermagem, pois contribui com conhecimentos sobre como determinados fenômenos são vivenciados nas situações de cuidado.16
O estudo foi realizado na enfermaria de psiquiatria de um hospital universitário, e nos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) do Município de Campinas/SP. A coleta de dados foi realizada no período compreendido entre janeiro e março de 2015, por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas na íntegra, com a seguinte questão norteadora: Conte-me sua experiência ao cuidar de um paciente em primeiro surto psicótico.
Foram considerados sujeitos desta pesquisa enfermeiros que trabalhavam em diferentes turnos nas unidades estudadas, totalizando dez pessoas. A coleta de dados foi encerrada quando as respostas foram suficientes, na visão do pesquisador.17
A análise dos dados seguiu os seguintes passos: 1) transcrição das entrevistas; 2) organização dos dados a partir de sua redução; 3) distinção e verificação dos diferentes tópicos ou fenômenos; 4) separação das diferentes maneiras de vivenciar ou compreender o fenômeno, por meio de semelhanças ou contrastes; 5) confrontamento das várias declarações ou concepções; e 6) distinção dos atributos críticos de cada grupo bem como suas características diferenciadoras.15,16
Para viabilizar e fundamentar o conhecimento do fenômeno utilizou-se como referencial teórico para sustentar a análise dos dados, uma releitura dos padrões de conhecimento em enfermagem articulados as formas de ver, viver e compreender dos participantes do estudo.8
O estudo cumpre todos os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos, conforme o proposto pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde 466/12, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, através do parecer n° 932.615.
Os padrões de conhecimento identificados no cuidado ao paciente em primeiro surto psicótico foram: padrão empírico, padrão estético, padrão ético e o padrão pessoal, estes que serão apresentados e discutidos a seguir.8
A busca por um corpo de conhecimentos específicos que lhe estabelecesse enquanto ciência, fez com que a Enfermagem passasse a se preocupar com o esclarecimento de suas bases teóricas.18 O padrão empírico se relaciona à ciência e ao conhecimento baseado em fatos, é descritivo e voltado para o desenvolvimento de teorias e, por ser utilizado com intensa racionalidade e colocar a ciência como único caminho para o mundo teórico abriu espaço para a valorização dos aspectos qualitativos dos fenômenos estudados, o que permitiu considerar aspectos que perpassassem o olhar focado no corpo biológico e nas patologias.8,18
Ainda que tais mudanças sejam descritas, este tem sido o padrão de conhecimento predominante na sociedade e, também, na enfermagem.18 Assim, o cuidado ao paciente, em primeiro surto psicótico, como evidenciam as falas, ainda está fortemente ligado ao controle de sinais vitais e aos sintomas da doença:
É um cuidado mais intensivo em relação aos sinais vitais (E3).
Realizamos os cuidados básicos, sinais vitais, banho, administração de medicamento (E9).
Você simplesmente vai estudando os sintomas da doença e vai fazendo, entendeu (E10)?
Pelo fato do corpo de conhecimento em enfermagem não ser estático, a sua transformação assume novos modos de expressão, sendo as teorias uma forma de ruptura com a habitual execução de tarefas ligadas ao modelo biomédico. Tal fato permite a reflexão criativa e o domínio do processo de trabalho e possibilita que a enfermagem desenvolva ações em que a base teórica para a prática possa ser utilizada a fim de dar visibilidade à profissão.6,19
Selecionar a teoria adequada requer conhecimento suficiente dentre as diversas disponíveis, assim como das variáveis que definem a situação específica do paciente ou do grupo do qual se pretende cuidar, o que nem sempre é tarefa fácil.19 A falta de autonomia da enfermagem, o uso do senso comum enquanto embasamento teórico e a predominância do referencial biomédico no discurso dos enfermeiros são fatores que podem justificar a desconsideração de saberes científicos pelos profissionais durante o cuidado ao paciente com sofrimento psíquico.6,14,20
Nas falas a seguir, é possível verificar certa desconsideração por parte dos profissionais, que relatam que o cuidado ao paciente em primeiro surto psicótico caracteriza-se mais por experiências vividas do que por uma assistência com suporte teórico e quando uma teoria é utilizada, eles a escolhem devido a sua facilidade e não pela sua aplicabilidade ao cuidado, ainda relatam que combinam várias teorias:
Olha, teoria de enfermagem, apesar de eu ser enfermeiro, nosso trabalho não tem nenhuma fundamentação teórica. (E4).
A gente segue mesmo a nossa experiência, né? A gente tem experiência, a gente sabe lidar com a crise, e isso norteia (E6).
Então, você vai meio que direcionando e vai fazendo uma miscigenação mesmo, de todas as teorias que tem. (...) Vanda Horta, que é a que eu mais me identifico enquanto profissional, enquanto pessoa, enfim, para mim é a mais fácil (E7).
É importante que haja uma relação simbiótica entre o conhecimento científico e o popular e que os profissionais compreendam a conexão existente entre a ciência e o senso comum para que, a partir dessa articulação, se possa construir o conhecimento em enfermagem.20
A não apropriação teórica se relaciona ainda a conceitos errôneos acerca dos referenciais teóricos disponíveis em saúde mental, fato já discutido em estudo que identificou a utilização da teoria psicanalítica junto a outras teorias no trabalho dos enfermeiros.6 A psicanálise, ao considerar o sujeito como sujeito do inconsciente, se opõe a qualquer referencial que não se propõe a desenvolver uma atenção que considere a determinação inconsciente, portanto, articular esse referencial, de forma indiscriminada, a outro implica num desconhecimento de sua fundamentação.6 Ilustra-se tal achado pela fala abaixo, em que os enfermeiros procuram se servir de elementos da psicanálise no atendimento ao paciente em primeiro surto, porém, de maneira equivocada, quando aproximam esse referencial da perspectiva comportamental calcada nas necessidades humana básicas:
É uma instituição que usa muito mais a psicanálise como norteador, né? Então, a gente acaba meio que aprendendo a cuidar desse paciente numa forma mais psicanalítica [...]. Junto a isso eu vou muito pelas necessidades humanas mesmo, da Vanda Horta (E7).
Oposto ao padrão empírico pode-se citar o padrão estético que, por sua vez, não está ajustado na repetição de instruções formais, mas numa experiência que envolve a criação e/ou apreciação de uma expressão singular, particular e subjetiva de possibilidades para quem se cuida. Em outras palavras, está relacionado à arte da enfermagem que é expressiva, subjetiva e se torna visível na ação de cuidar.8 Esse padrão tem sido diminuído por alguns autores a pouco menos que "o saber fazer" técnicas ou procedimentos, no entanto, a estética dos cuidados vai além do puramente técnico, já que integra em sua concepção o mundo dos valores, os sentimentos e os aspectos éticos e culturais.21
Ainda quanto a esse padrão, é possível citar, com base nas entrevistas, o cuidado evidenciado por ações que envolvem trabalhos comunitários e que procuram desenvolver a autonomia do paciente em primeiro surto. A exemplo, pode-se citar a realização do Projeto Terapêutico Singular (PTS), que busca encontrar possibilidades e alternativas para cada pessoa nas diferentes situações de suas vidas, o que demanda, a todo instante, o olhar e a escuta que reconheçam as subjetividades:22
Da questão de fazer vários trabalhos na comunidade e fazer o acompanhamento terapêutico, de pegar um ônibus, ir no centro da cidade, ir lá no Poupa Tempo, de que não é só porque ele precisa, é porque ele é um cidadão e porque ele consegue e é capaz de fazer isso. A gente trabalha a partir da autonomia do outro (E9).
O padrão estético ainda está intimamente ligado ao conceito de empatia que, por sua vez, caracteriza-se pela capacidade de "intra-habitar" o outro, a fim de ver e sentir o mundo tal qual ele é para o outro.8,23 Sendo assim, a empatia pode ser observada nas falas a seguir, em que os enfermeiros relatam a aproximação e a criação de vínculos em um cuidado que promove a proteção ao paciente, que por vezes se sente fragilizado ao dar entrada no serviço:
Ter esse cuidado com a integridade e tal, para que essa pessoa se sinta, apesar de tudo o que está acontecendo com ela, protegida [...]. Então, a gente sempre tenta, nesse trabalho, tentar alguma aproximação, que seja através de algum vínculo (E6).
Quando eu falo de manejo verbal é, nesse sentido, eu preciso naquele momento tentar construir um vínculo inicial com esse paciente (E1).
No entanto, a empatia somente pode ser válida quando fundamentada pelo respeito à alteridade do outro, com toda a sua singularidade e particularidade.24 A escuta terapêutica surge como uma estratégia de comunicação que favorece a compreensão do outro, a fim de que se desenvolva de forma satisfatória. Dessa forma, é importante que os profissionais possuam habilidades para fornecer apoio emocional e prático ao paciente, possibilitando que este se identifique e passe a confiar em quem o atende.25
A escuta qualificada e o apoio emocional parecem não ser considerados quando a abordagem permanece centrada no modelo biomédico, no qual as intervenções têm como base unicamente a prescrição de medicamentos, a normatividade de comportamentos considerados inadequados e a adoção de uma postura pedagógica, como dito a seguir:10,14
A gente coloca limite, porque tem outros pacientes aqui [...]. Vamos supor que o paciente é homem, ele tá desorientado né, ou tá com déficit de atenção e tal e fica entrando nos quartos das mulheres, não pode (E4).
Estabelecer limite que é muito importante, né? Propor atividades que, às vezes, eles não aceitam (E2).
O cuidado entra muito no pontuar, assim, né? No concreto, se ensina ou não (E6).
Por outro lado, é importante que o enfermeiro a desenvolver o cuidado baseado na empatia, reconheça que colocar-se no lugar do outro não deve oferecer subsídios para julgar as escolhas do paciente, no que se refere ao que é bom para ele.
Nesse cenário, discute-se o padrão de conhecimento ético que vai muito além do código de ética profissional, já que este saber está relacionado às difíceis escolhas a serem feitas no contexto do cuidado de saúde, o que envolve questões fundamentais sobre certo e errado e requer a compreensão das diferentes posições filosóficas sobre o que é bom, o que deveria ser desejado ou o que é correto.8,9
Mas como inferir o que é bom? O trecho abaixo nos faz refletir sobre o padrão ético, em que o entrevistado diz utilizar o carinho e a palavra como estratégias de cuidado e, ao mesmo tempo, utiliza de gritos para facilitar a compreensão do paciente ao longo do atendimento ao primeiro surto, acreditando que isso possa acalmá-lo. Este é um tipo de cuidado que ao desconsiderar saberes empíricos, passa a ser definido por condições morais:8,26
Nesse primeiro momento, foi tudo meio que no grito, assim, sem muito essa questão de consultório, sentado para atender, foi meio que no grito até que ele entendeu que a gente tava ali para ajudar ele (E5).
Muitas vezes, isso acalma a pessoa em crise, olhar olho no olho, muitas vezes pegar a mão, dar um abraço. Isso acalma a pessoa em crise. Pelo menos para mim, isso aí sempre funcionou (E5).
Ao tomar uma decisão, o enfermeiro precisa avaliar, primeiramente, os fundamentos éticos presentes no Código de Ética Profissional, no que tange a responsabilidades, direitos e deveres.26 Entretanto, o Código de Ética Profissional dificilmente contempla todas as situações ou orientações acerca de escolhas, sendo o enfermeiro responsável por agir de forma que seus princípios e valores respeitem o paciente como alguém que existe, tem história, vontades, expectativas e desejos.26 Assim, para a totalidade do cuidado é necessário o conhecimento profundo acerca de quem se cuida, o que exige interação entre os padrões de conhecimento que, por vezes, se faz inconscientemente.27
Pode-se observar tal interação de padrões quando o profissional relata seu retorno para avaliar o paciente após uma intervenção, mostrando-se pautado no compromisso ético em que a complexidade de julgamentos morais exigiu a correta compreensão do que seria bom e correto para o paciente naquele momento. Tal fato também é aliado a saberes empíricos relacionados às etapas do Processo de Enfermagem (PE), instrumento metodológico que orienta o cuidado profissional:8,28
A gente procura saber se vai precisar só de uma conversa, uma contenção mecânica, medicamentosa [...]. E a gente procura tá voltando ali depois de um tempo, conversando com ele, vendo se ele tá melhorando. Mas sempre tá retornando e observando o paciente [...]. Orientando ele do porque ele tá sendo contido [...]. Conforme ele vai melhorando a gente vai diminuindo as contenções (E8).
Por fim, o padrão pessoal, citado por Carper como o mais difícil de dominar e ensinar refere-se ao conhecimento do self, isto é, o autoconhecimento que implica na maneira como os profissionais veem a si e aos outros, sendo central em qualquer relação terapêutica. A compreensão de que o profissional, acima de tudo, também é um ser humano e, portanto, apresenta sentimentos e barreiras físicas, psicológicas e sociais que o impossibilitam, como qualquer um, de compreender e realizar determinadas ações, também deve ser levado em conta.29 Das falas, emergem os sentimentos vivenciados no cuidado ao paciente em primeiro surto, relacionados à insegurança, ao medo e até mesmo a tranquilidade:
O paciente quando chega em surto psicótico, pela primeira vez, a gente sempre tem muita cautela, porque você não sabe muita coisa, você geralmente sabe se ele é um paciente agressivo ou não, daí você fica apreensivo (E10).
Mas foi bem "trash" assim, uns palavreados bem de "vou te matar", de vir para cima com o facão (E5).
A minha experiência, eu acho que foi tranquila (E3).
O relacionamento terapêutico, por tratar-se de um instrumento de cuidado interpessoal, trabalha não somente com as necessidades psicossociais do paciente, como também as necessidades do enfermeiro, permitindo que ocorram transformações intra e interpessoais. Dessa forma, é indicado ao profissional que se mantenha em um processo de desenvolvimento de seu autoconhecimento e trabalhe com as suas limitações, incompatibilidades e potencialidades para que, tenha condições de se voltar à estabelecer a relação de ajuda ao paciente.30 Outro exemplo relacionado ao cuidado pessoal são os questionamentos feitos pelos enfermeiros acerca da qualidade do cuidado prestado o que demonstra a busca pela compreensão de suas potencialidades e limitações, no entanto, sem o questionamento do ocorrido:
Qual o papel do enfermeiro dentro do CAPS? Por que a equipe multi acaba se misturando muito, sabe [...]? O que é que realmente importa aqui dentro (E9)?
Eu ainda acho que dá pra gente melhorar, toda a enfermaria daria para melhorar muito e a gente percebe que tem uma certa resistência (E3).
Como observado, cada um dos padrões de conhecimento é necessário para atingir o domínio da prática, mas nenhum deve ser considerado suficiente, assim como não representam todas as formas de conhecimento utilizados.7 O conhecimento da enfermagem se constitui de componentes empíricos, estéticos, éticos e pessoais e, na prática profissional, são utilizados como um todo, ainda que em determinada situação um aspecto ou padrão seja mais facilmente reconhecido.7,8 A interação entre os padrões se dá, por vezes, de forma inconsciente, no entanto, por meio da análise das entrevistas, percebeu-se que alguns enfermeiros possuem abordagens voltadas a determinados padrões, o que leva a um cuidado fragmentado e contra os preceitos da perspectiva atual de saúde mental, que considera o sujeito em sua totalidade e prioriza a integralidade da atenção.27,30
Ao adotar um saber fragmentado, o profissional assume a responsabilidade de um trabalho fragmentado que reflete sobre cuidados fundamentais ao paciente em primeiro surto, como o PE e suas etapas, e que inclui as intervenções de enfermagem com foco biopsicossocial e o cuidado à família.13 PE, que deve ser compreendido como um método que engloba não apenas o julgamento das necessidades da pessoa, mas da família ou coletividade humana, levando em conta os resultados a serem atingidos e as intervenções de enfermagem, e que pode ser utilizado como alternativa complementar ao projeto terapêutico individual.31-33
No que se refere à coleta de dados, que consiste no levantamento de informações referentes ao estado de saúde do cliente, família e comunidade, e que deve contemplar o exame físico e o exame do estado mental, observou-se que era feita com o objetivo de preencher impressos e com características dualistas, com divisão entre corpo e mente, como observado a seguir:31,34,35
Nós temos um impresso de anamnese. Então, o profissional que tá no acolhimento e recebe o paciente pela primeira vez, tem uma organização protocolar, de coleta de dados, que depois dos dados de identificação, são dados baseados no exame do estado mental (E1).
Dependendo do enfermeiro, ou do serviço, a gente faz exame físico do paciente para descartar algum tipo de hipótese diagnóstica, ou mesmo detectar alguma coisa de diferente (E7).
Hoje, mesmo sabendo que a crise ainda pode aparecer de forma abrupta e aleatória, há um período que a antecede, chamado de prodrômico, com sintomatologia inespecífica. Dentre os sintomas, pode-se citar o isolamento social, alterações comportamentais, falta de iniciativa ou interesse em atividades realizadas e outros, o que faz a família pensar em alterações típicas da idade. Tal fato influencia diretamente na procura por atendimento que, por vezes, se faz tardiamente.12,13 Dessa forma, ao dar entrada no serviço, tanto paciente quanto família apresentam inúmeras demandas a serem observadas, sendo o PE e, principalmente, a coleta de dados, um meio de favorecer o cuidado integral considerando sujeito, família e o contexto onde vivem. As teorias também são consideradas um meio de proporcionar um atendimento qualificado.5,31 Por meio do levantamento de dados, são elaborados os diagnósticos de enfermagem, que num segundo momento são traduzidos como o julgamento clínico sobre as respostas do indivíduo, família ou comunidade, e se constituem como base para a seleção das prescrições.33 Quando um diagnóstico é realizado, o enfermeiro tem a obrigação ética e legal de questionar-se sobre o ocorrido e prestar um determinado tipo de tratamento ou cuidado.36 Segundo os entrevistados, muitas das ações realizadas por eles não possuem diagnóstico de enfermagem e são desenvolvidas por meio de observações. Em outros momentos, há o levantamento de diagnósticos, no entanto, não há a elaboração de um plano de cuidados:
Conforme a gente vai observando o paciente a gente vai tomando as medidas (E8).
Um paciente que tem diagnóstico de isolamento social. A socialização, o incentivo a participação das terapias ocupacionais, tudo isso você vê o diagnóstico, mas você não vê a prescrição. Você não vê o cuidado em estar prescrevendo para estimular esse paciente a estar participando (E3).
O não levantamento de diagnósticos interfere negativamente na prescrição de enfermagem, que expressa de forma organizada os objetivos diários da assistência a cada paciente, visando uma atenção individualizada.36 Das falas, o fato de não ser valorizada pelos membros da equipe, ou por ser um tipo de cuidado "implícito" - que não necessita ser documentado, surge como motivo da não realização da prescrição de enfermagem. Neste estudo, destaca-se como fatores da não realização da prescrição de enfermagem: a falta de credibilidade pela equipe, a falta de tempo e a falta de documentação escrita do que é realizado:36,37
Quanto mais você prescreve, mais você vê a equipe técnica dando umas chiadinhas de "por que tanta coisa, por que atentar a isso, por que atentar a risco de agressividade, risco de suicídio"? Eles checam, checam, checam. Na verdade, são coisas implícitas, todo mundo faz, mas quando tem que ficar relatando, escrevendo, checando, isso para no caminho (E3).
Nota-se que quando a prescrição de enfermagem não é feita, a equipe passa a nortear suas ações unicamente pela prescrição médica, tornando desnecessária a participação do enfermeiro na tomada de decisão ao paciente em questão.14,15,36
O não planejamento das ações parece interferir, ainda, em cuidados de enfermagem citados na literatura como fundamentais ao paciente em primeiro surto. Um deles é a atenção a família, que ao se deparar com o ocorrido, sente-se desamparada.13 Dessa forma, torna-se fundamental o acolhimento, promovendo suporte às demandas encontradas, visto que os conflitos gerados no âmbito familiar podem influenciar de forma negativa o quadro do paciente.1,13
Neste estudo, os enfermeiros consideram a família como responsável por encaminhar o paciente ao serviço ou como informante dos sintomas durante o preenchimento do histórico:
O paciente que chega aqui para a gente em primeiro surto, ou ele vem encaminhado pela família, ou ele vem de algum serviço de saúde (E7).
Eu normalmente preciso de um familiar, né? Que esteja acompanhando, e aí cada profissional trabalha de uma forma no sentido de que alguns conversam sozinhos com o paciente e depois chamam a família (E1).
A literatura tem chamado a atenção acerca da sobrecarga da família, principalmente de pacientes psiquiátricos, e os impactos negativos na convivência com o doente mental que, ao enfrentar a incompreensão familiar e até a rejeição, tem chances aumentadas de internações sucessivas.12,13 Dessa maneira, é fundamental que os serviços se estruturem de forma a potencializar a relação família, profissional e serviço.12,13
Por fim, por meio da avaliação de enfermagem, é possível saber se os cuidados realizados pela equipe estão oferecendo benefícios ao paciente.34 Quanto a essa etapa, foi evidenciado que os enfermeiros a realizam após os procedimentos, ou como parâmetro para avaliação do quadro clínico, como relatado a seguir:
A gente procura tá voltando ali depois de um tempo, conversando com ele, vendo se ele tá melhorando, sempre tá auxiliando ele [...]. Mas sempre tá retornando, observando o paciente, conforme ele vai melhorando a gente vai diminuindo as contenções (E8).
A minha responsabilidade é de fazer uma avaliação do paciente, a avaliação do paciente no leito é diária, se apresentou alguma melhora do quadro, se apresentou alguma piora, se tem alguma alteração (E9).
A evolução de enfermagem avalia todas as outras fases do PE e, para realizá-la, o enfermeiro deve considerar se suas prescrições atingiram os objetivos estipulados. Dessa forma, deve ser levado em consideração não somente o perfil evolutivo do paciente, como citado acima, mas também os resultados da assistência de enfermagem prestados, o que facilita a tomada de novas decisões ou a manutenção de prescrições anteriores, o que otimiza o cuidado realizado.37
Neste estudo foi possível conhecer como o enfermeiro realiza o cuidado de enfermagem ao paciente em primeiro surto psicótico, além de identificar os padrões de conhecimento utilizados ao cuidar (empírico, estético, ético e pessoal), e como estes se relacionam ao desenvolvimento do PE.
Discute-se que os conhecimentos ligados ao padrão empírico possibilitam um cuidado embasado em teorias, no entanto, estas foram desconsideradas pelos enfermeiros deste estudo, que relatam desenvolver ações embasadas no senso-comum ou possuem conhecimentos teóricos insuficientes. Quanto ao cuidado estético, que possibilita o trabalho criativo, evidenciou-se que os enfermeiros tentam adotar alguns de seus elementos, como a empatia e a criação de vínculos, mas a predominância do modelo biomédico é inquestionável, sendo o cuidado ainda voltado às ações estritamente curativas. O padrão ético, por sua vez, mostrou que os enfermeiros realizam um cuidado cunhado em aspectos morais, em que os sentimentos e experiências sobressaem aos conhecimentos teóricos. O padrão pessoal demonstrou que os enfermeiros conseguem fazer a autorreflexão do cuidado prestado, mas essa autorreflexão não é percebida como fator que altera a prática, sendo necessário seu aprimoramento.
Nota-se que quando os padrões de conhecimento são assumidos de forma isolada implica numa prática fragmentada, o que reflete em ações específicas do trabalho em enfermagem, como o PE e suas etapas. Neste estudo, a compreensão dos enfermeiros sobre PE ainda está fortemente ligada a "coleta de dados baseada em instrumento", que considera a cisão entre corpo e mente, favorecendo uma visão dualista de quem se cuida. Não se pode pensar em um PE eficiente sem que todas as fases sejam realizadas, afinal, são interdependentes. Ao ignorar tais fatos, o enfermeiro deixa de realizar intervenções fundamentais ao paciente em especial, como aquelas relacionadas à família, tornando-a apenas um mero informante, tal fato pode se caracterizar como outra implicação para a sua prática.
A limitação deste estudo está na dificuldade em mapear os referenciais teóricos que sustentam a ação do enfermeiro em saúde mental, o que foi evidenciado pela supremacia de relatos de experiência sem a significação da importância dessa prática. Dessa forma, abre a oportunidade de novas perspectivas de estudo em que o objetivo de investigação seja os referenciais teóricos utilizados pelos enfermeiros no cuidado ao paciente em primeiro surto psicótico, e não apenas sua experiência no cuidar.