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Pais e seus filhos em sofrimento mental, enfrentamento, compreensão e medo do futuro

Pais e seus filhos em sofrimento mental, enfrentamento, compreensão e medo do futuro

Autores:

Amanda Márcia dos Santos Reinaldo,
Maria Odete Pereira,
Marcus Luciano de Oliveira Tavares,
Bruno David Henriques

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.16332016

Introdução

O sofrimento mental pode ser compreendido sob diferentes perspectivas, desde um castigo divino até uma situação de vida com a qual se deve aprender algo. Modelos explicativos para a doença mental são construídos de acordo com a cultura, o avanço da ciência e a compreensão das pessoas que convivem com a pessoa em sofrimento mental1.

Compreende-se neste estudo que apesar de se tratar de uma situação de sofrimento, no qual situações de exclusão e abandono estão presentes, existem casos em que o transtorno mental, mesmo que se considerem as limitações de diferentes ordens impostas aos pacientes, pode ser visto como uma circunstância de vida que não necessariamente se traduz em sofrimento contínuo e ininterrupto na percepção de seus familiares.

Parte-se do princípio de que alguns familiares de pessoas portadoras de transtornos mentais, entre eles colaboradores deste estudo, conseguem dar significado para essa experiência de adoecimento, possuem uma rede de apoio eficiente e exercem seus direitos como cidadão por meio do empoderamento de suas ações e direitos em relação à sociedade e aos serviços públicos e privados que são oferecidos na assistência a essa parcela da população.

O censo mais recente nos Estados Unidos apontou que quase 58 milhões adultos foram diagnosticados com transtornos mentais. Assim como no Brasil, naquele país antes da desinstitucionalização e dos avanços no desenvolvimento de medicamentos psicotrópicos, as pessoas com transtornos mentais graves viviam em instituições, e em sua maioria eram afastados das famílias2.

Hoje, esses indivíduos vivem em suas comunidades. Embora alguns de forma independente, muitos ainda residem com familiares, que cuidam e os ajudam a gerenciar suas vidas. Mesmo não residindo na mesma casa, os membros da família estão geralmente envolvidos nos cuidados dessas pessoas. Os familiares de pessoas em sofrimento mental podem suportar considerável estresse e encargos físicos, sociais e financeiros, mas essa situação pode comprometer a sua própria saúde, qualidade de vida e prejudicar o funcionamento da família2.

No entanto, se os membros da família conseguem suportar o estresse do adoecimento mental de um de seus membros, eles podem preservar a sua própria saúde e a saúde de sua família adotando medidas de enfrentamento para as situações de sobrecarga de cuidados que se apresentam no dia a dia2.

Na Suíça, as famílias percebem que filhos com problemas de saúde mental em comparação com problemas físicos têm maior gravidade e impacto na vida familiar, além do que a utilização dos serviços de saúde é maior no primeiro caso. A pesquisa foi realizada a partir da Pesquisa Nacional de Crianças com Necessidades de Cuidados Especiais de Saúde na Suíça. Para os entrevistados os problemas de saúde mental apesar de exercerem maior impacto sobre a família (como por exemplo, impacto financeiro), podem ser minimizados quando os serviços governamentais oferecem apoio3.

Em relação às experiências de pais de crianças e adolescentes em sofrimento mental com os serviços de saúde um estudo aponta que o acesso aos serviços é algo desafiador, há pouca disponibilidade de serviços especializados e falta de informações para os pais4.

Os pais cuidadores manifestaram a necessidade de informações, de envolvimento na tomada de decisão das condutas durante o tratamento, de acesso a uma programação de atividades flexível oferecida pelos serviços, necessidade de apoio escolar e grupos de apoio aos pais. A natureza e a qualidade do relacionamento com a equipe foi fundamental para a experiência positiva com o serviço; mas mudanças frequentes de médico e membros da equipe foram consideradas complicadores na relação4.

Os mecanismos de enfrentamento do sofrimento mental são diversos e envolvem ações por parte dos pais nem sempre compreensíveis, dado que a eles cabe a experiência do dia a dia com seus filhos e tudo que envolve suas vidas.

A partir da compreensão da complexidade que existe em elaborar mecanismos de enfrentamento para as situações do cotidiano dessas famílias o objetivo deste estudo foi conhecer experiências de enfrentamento de pais cuidadores em relação ao sofrimento mental de seus filhos.

Métodos

Trata-se de um estudo etnográfico. A etnografia é uma estratégia de pesquisa qualitativa que tem como objetivo a compreensão do comportamento humano inserido em seu contexto cultural. A etnografia é um trabalho descritivo da cultura de um grupo, incluindo o modo como as pessoas resolvem seus problemas, se comunicam, interagem. Engloba também a compreensão de suas ações e sentimentos diante das adversidades. Todos os grupos apresentam um modo constante e complexo de se comportarem diante dos eventos que lhes rodeiam5,6.

Os informantes do estudo etnográfico devem ser selecionados de acordo com o grau de envolvimento com o fenômeno de interesse do pesquisador. Já o informante-chave é aquele que além de deter o conhecimento sobre o fenômeno também conhece as pessoas envolvidas no desenvolvimento do mesmo e seus desdobramentos. A coleta das informações foi realizada na casa dos colaboradores da pesquisa, ou em locais pré-definidos entre pesquisador e colaborador6. O instrumento de coleta de dados foi um roteiro de entrevistas onde os colaboradores discorriam sobre o tema de forma livre por um tempo entre 60 e 120 minutos. Foi utilizado também o diário de campo para registro das impressões do pesquisador.

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. A definição dos colaboradores a princípio foi por meio da técnica de bola de neve, onde um indicava o outro e assim foi composta a amostra do estudo. A amostra foi composta de 21 pessoas (mães e pais) que convivem diretamente com filhos em sofrimento mental usuários de serviços de saúde mental públicos, e em tratamento há mais de cinco anos. Apenas nove familiares colaboradores do estudo estavam em contato constantemente com os serviços de saúde mental onde seus filhos realizavam tratamento, os demais não procuravam os serviços a não ser quando demandados.

A amostra dos estudos etnográficos é formada por um recorte da realidade, onde podemos observar eventos, atividades, informações, documentos em diferentes momentos, por isso a coleta de dados foi realizada em mais de um momento e em alguns casos em diferentes cenários (casa, espaço público, serviço de saúde mental). Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de ética em Pesquisa da instituição de origem do pesquisador principal.

Os dados foram avaliados por meio da análise de conteúdo que compreende 1. A pré-análise; 2. A exploração do material; e, por fim, 3. O tratamento dos resultados7. Os dados foram tabulados com o uso do software de análise de textos, vídeos, áudios e imagens Web Qualitative Data Analysis (WebQDA). O sistema é organizado em três áreas: 1. Fontes – onde o sistema é alimentado com os dados da pesquisa, organizados de acordo com a necessidade do investigador; 2. Criação de codificação ou categorias – interpretativas ou descritivas e 3. Questionamento – o investigador cria as dimensões, os indicadores ou as categorias, sejam elas interpretativas ou descritivas que serão analisadas de acordos com modelos de análise previamente elaborados para cada uma delas8. As categorias de análise identificadas foram: 1. Enfrentamento das situações do cotidiano 2. Compreensão do sofrimento mental como uma situação de vida; 3. Medo do futuro, sentimento de desamparo social e governamental.

Resultados

Enfrentamento das situações do cotidiano

Em relação às formas de enfrentamento para lidar com a situação de um filho em sofrimento mental, 16 dos 21 entrevistados avaliam que a melhor forma é buscar ajuda na própria família.

O apoio dos familiares foi considerado fundamental para enfrentar as dificuldades do dia a dia, eles podem ajudar nos cuidados diretos e indiretos (cuidando enquanto o pai/mãe responsável diretamente pelos cuidados trabalha, ou enquanto sai para alguma atividade em que não pode levar o filho (a), financeiramente (com a ajuda na compra de medicamentos, tratamento, terapias alternativas entre outros) e apoio nos momentos de tomada de decisão do que é melhor para a pessoa em sofrimento mental e para a família nas situações consideradas de tensão do cotidiano, em especial foram citadas crises de agressividade e fugas do lar (as famílias se mobilizam na busca pelo paciente e ajudam a contê-lo nos momentos de agressividade).

Outra forma de enfrentamento eficaz apontada foi a busca por ajuda e apoio na rede social de apoio, em especial as agências religiosas, que ajudam e apóiam de diferentes formas (ajudando as famílias financeiramente, dividindo os cuidados, integrando seus filhos à comunidade sem estigma ou preconceito, apoiando suas decisões em relação ao paciente e no dia a dia, em especial nos momento de cansaço do cuidador por meio da escuta de suas queixas e palavras de incentivo). Para os pais nas agências religiosas seus filhos são tratados como iguais, com atenção e respeito.

É importante citar que durante as entrevistas e observações do pesquisador em nenhum momento os filhos foram denominados pelos pais como: pacientes, usuários da saúde mental, pessoa em sofrimento mental, louco, doente dos nervos ou alguma outra nomenclatura que se aproxime da usual para definir essa pessoa e sua condição de saúde. Os pais/mães cuidadores se referiram aos filhos pelos nomes. O que avaliamos como um mecanismo ainda que não explícito de enfrentamento do preconceito e do estigma relacionado à condição de vida e saúde da pessoa em sofrimento mental.

As organizações não governamentais foram citadas em terceiro lugar como locais onde os filhos podem desenvolver habilidades em ambientes protegidos e sob supervisão. Esses locais também foram citados quando os pais necessitam de informações a respeito de direitos sociais e dúvidas em relação aos benefícios que os filhos possam ter, em especial junto à previdência social do país e outros serviços governamentais.

Os serviços de saúde e assistência social ou jurídica governamentais foram citados como locais que pouco colaboram para o enfrentamento das situações que se apresentam em relação à vida com um filho em sofrimento mental.

As situações do cotidiano apontadas como promotoras de maior estresse e que demandam enfrentamento criativo e imediato foram: a crise, principalmente quando estão presentes episódios de agressividade hetero ou autodirigidas, tentativas de suicídio, uso de droga concomitante ao transtorno mental, fugas do lar, dificuldade para gerenciar a administração da medicação de uso diário, dificuldades sociais (como por exemplo, saídas a lugares públicos). Nesses momentos os pais sentem que seus filhos são discriminados e que as pessoas em geral os observam com curiosidade e olhar de pesar, algumas vezes de forma desrespeitosa.

A questão educacional foi citada por seis pais como algo que os preocupa. Para eles o governo não se interessa pela questão, eles têm clareza que seus filhos apresentam dificuldades na aprendizagem, mas ressaltam que isso não se dá todo o tempo e que eles precisam estudar em escolas inclusivas, que estejam prontas para lidar com as suas limitações e necessidades. Outro ponto citado foi a avaliação e a percepção de que crianças, jovens e adultos em sofrimento mental estudando em locais destinados a pessoas com transtornos neurológicos não parece ser uma boa estratégia educacional para os seus filhos.

Diante desse fato esses pais têm procurado escolas inclusivas ou organizações não governamentais que assumam essa tarefa educacional, em alguns casos (3) eles realizam atividades com seus filhos em casa, mas acreditam que esses arranjos não são os mais adequados.

Outra questão citada por 15 pais foi o atendimento de saúde fora dos serviços da rede de atenção psicossocial, tais como atendimento odontológico, ginecológico, e de outras especialidades. Os pais apontam que os serviços em geral não querem atender seus filhos, alguns afirmaram que na rede privada o atendimento é mais fácil do que nos serviços públicos.

Em geral eles tentam esconder a doença dos filhos quando buscam atendimento para que este não seja negado, afirmando que o filho tem “doença dos nervos ou da cabeça” no sentido de uma patologia neurológica e não psiquiátrica. O atendimento nos serviços de saúde públicos é avaliado como inadequado.

“Até um bandido é melhor atendido no posto do que meu filho”; “meu filho precisou passar por seis médicos para alguém medicá-lo quando teve conjuntivite”, “para levar ao ginecologista eu tenho que ir pronta para brigar porque ninguém quer atendê-la”. “Ele quebrou a perna jogando bola e tive que ir a três serviços para ser atendido, só sabiam encaminhar para o hospital psiquiátrico e eu explicava mil vezes que o problema era a perna quebrada”.

São situações do cotidiano de pais e filhos que quando se apresentam, consome boa parte do tempo dessas pessoas, algo relativamente simples como um tratamento odontológico se torna um transtorno para todos os envolvidos e desgasta física e psicologicamente o cuidador.

Compreensão do sofrimento mental como uma situação de vida

Para alguns pais (5) a vida com seus filhos é aprendizado, para os demais é sofrimento. Os que avaliam como aprendizado afirmam que de forma geral qualquer esforço para ver seus filhos felizes deve ser realizado. Alguns afirmam que o cuidado é adaptado de acordo com o quadro clínico do filho “... tem dias que é melhor, tem dias que não, em geral ele é tranquilo, não dá trabalho, eu consigo fazer minhas coisas e ele fica por aí, levo para a consulta e ele frequenta um lugar aqui perto para se distrair um pouco, mas tem dias quando ele está em crise que o pai tem que ajudar, porque ele bate e quebra tudo o que vê pela frente, ele é pequeno mais tem muita força e morde a gente”. “Meu filho não é louco todo tempo, têm dias que está de bom humor, tranquilo, nós conversamos e fazemos coisas juntos, ele é muito inteligente, faz poesia, música, é um bom filho, ele não usa drogas, vai à igreja comigo, não rouba, ajuda em casa com coisas pequenas, e se não está em crise sempre está sorrindo e adora dançar. Tem essa doença mais é só isso”.

Os que avaliam o convívio com o filho doente como sofrimento em geral citaram a palavra “tolerar” várias vezes e em diferentes situações, “é algo para se tolerar”, “temos que tolerar”, “não é fácil tolerar”. Outra constante são os relatos de impaciência com o comportamento do filho e o fato de terem a percepção que às vezes os filhos mentem, fingem e estão apenas se aproveitando da situação para ganhar algo. “... eu acho que ele mente o tempo todo”, “ele se aproveita da doença para aprontar”, “... às vezes acho que ele está fingindo”.

Os pais avaliam que depois que a doença se instala não há o que fazer para mudar, eles em geral se referem a causa do adoecimento do filho como “problemas” na hora do parto (12), casos na família (6) e vontade de Deus (3).

A situação de vida dos filhos é vista como algo que no primeiro momento gera revolta, incompreensão e dificuldade para compreender, mas com o tempo é algo a ser aceito ou tolerado: “... temos que nos conformar, não tem o que fazer, já tentei de tudo, levei até para fazer tratamento espiritual e nada, então agora é cuidar, não tem mais o que fazer”.

Em outros casos os pais sentem revolta pela situação: “... eu cuido mas não aceito, acho que isso não é certo, uma moça tão bonita desse jeito, não dá conta de nada, não fala nada com nada, tenho que ficar vigiando o tempo todo, porque ela é bonita e tem gente que quer se aproveitar dela, estou cansada, mas não tem jeito, agora é se conformar e esperar... nem sei o quê”.

Observa-se que os pais mais jovens têm maior dificuldade em cuidar de seus filhos doentes. Alguns pais afirmaram que não cuidam e só comparecem ao serviço quando são chamados, o que raramente ocorre. Para eles cabe ao governo cuidar de seus filhos, na forma de internação permanente. Esses pais em sua maioria delegaram os cuidados dos seus filhos aos avós maternos.

Um deles paga uma pessoa perto de sua casa para “olhar o filho” durante o dia e a noite leva para dormir na casa dos avós. “Eu não tenho estrutura para cuidar dele, é um adulto e se comporta como uma criança, eu não tenho tempo e nem paciência para isso, se tivesse um lugar para deixar, eu deixava”.

Os pais ao aceitarem a situação de vida dos seus filhos realizam arranjos familiares para tentar controlar a situação de vida na qual se encontram, em geral esses arranjos envolvem toda a família e rede social, e demanda tempo e investimento afetivo para que a vida se dê em um curso minimamente tranquilo. “... no começo foi bem difícil, ele adoeceu jovem só tinha 18 anos e agora já tem 38, o tempo passou rápido, já estamos mais velhos e cansados, mas no começo era pior, ele também tinha mais energia para dar trabalho, agora é mais fácil, ele está mais quieto e nós temos mais paciência”.

Os pais mais velhos e com filhos adultos avaliam que com o tempo, eles e a família se “acostumam” com o membro da família em sofrimento mental, essa situação passa a ser algo do cotidiano da família e todos os seus membros, direta ou indiretamente ajudam nos cuidados.

Medo do futuro

Os pais entrevistados são unânimes em afirmar que o dia a dia com seus filhos não é fácil, por diversos fatores, mas a incerteza do futuro de seus filhos os deixam temerosos. O medo do futuro é uma constante.

Eles são unânimes em relatar que compreendem a recusa dos parentes em assumir o cuidado, pois avaliam que a falta de apoio dos serviços de saúde e assistência social governamentais e as dificuldades do dia a dia dificultam essa tarefa.

Entre as dificuldades do dia a dia relacionadas que dificultam que outros membros da família assumam o cuidado foram apontadas: a imprevisibilidade do comportamento (ora está bem, ora agressivo, em outro momento desconfiado, ou sorrindo e feliz); a questão financeira (é alguém que não produz, alguns têm aposentadoria, mas esse valor não cobre as despesas financeiras, quando se avaliam todos os gastos; é um cuidado constante que desgasta com o tempo e que talvez seja muito pesado para alguém que não é pai ou mãe).

Em relação ao apoio governamental, quando citados observa-se a percepção de que: os serviços não cuidam das famílias; em alguns momentos não valorizam as informações dos familiares em relação aos pacientes; não há uma política de apoio às famílias; todos são tratados da mesma forma, independente se querem ou não cuidar de seus filhos. Os serviços de saúde e assistência social são precários, existe a sensação de que os pacientes estão apenas sendo medicados, mas que não há uma preocupação real com a melhora do quadro geral.

O medo do futuro está presente nas falas dos entrevistados, mesmo daqueles que avaliam que poderiam cuidar melhor de seus filhos, mas estão cansados para fazê-lo. Uma mãe relata que no começo era mais cuidadosa: “... eu ficava sempre de olho nela, preocupada com o banho, escovar os dentes, levava para a escola, era mais dedicada, mas aí a vida mudou, meu marido morreu, eu tive que trabalhar fora, os meus outros filhos cresceram, cuidam de suas vidas e ficamos nós duas. Ela não ajuda em nada em casa, mal vai à consulta, passa o dia dormindo e eu estou sempre cansada do trabalho. Eu sei que não cuido bem dela, mas estou muito cansada para fazer tudo sozinha. Fico pensando como vai ser quando eu morrer... o que vai ser dela, será que alguém vai cuidar, ... isso me preocupa”.

Entre os pais entrevistados 12 citaram que seus filhos recebem benefício financeiro governamental, mas avaliam que o valor não é suficiente para viverem sozinhos e que em geral eles não sabem lidar com o dinheiro recebido. Um pai exige que o filho pague algumas contas em casa, segundo ele é uma forma de ensinar a lidar com o dinheiro e compreender que um dia terá que assumir as despesas da casa e do seu cuidado sozinho. Ele relata que tem medo que os familiares o expulsem de casa em caso de morte dos pais e fiquem com o benefício dele, então tem buscado formas de proteger o filho caso isso aconteça no futuro.

Discussão

As situações citadas pelos sujeitos colaboradores da pesquisa e que demandam enfrentamento fazem parte do cotidiano das famílias dos usuários dos serviços de saúde mental e frequentemente são relatadas nos serviços de saúde. Os pais cuidadores relatam que precisam de ajuda e se sentem desamparados.

Ações educativas direcionadas para a família, em especial pais de pessoas em sofrimento mental têm apresentado resultado satisfatório tanto no fortalecimento de medidas de enfrentamento e manejo das questões do cotidiano familiar quanto no fortalecimento das famílias enquanto um sistema que pode suportar situações de crise9.

Programas de psicoeducação, incluindo a prestação de apoio emocional, medidas educativas, oferecimento de recursos e cuidados em períodos de crise, e desenvolvimento de habilidades na resolução de problemas destinados às família se fazem necessários e obtêm bons resultados na melhoria da qualidade de vida da família e no enfrentamento do sofrimento mental, entretanto o investimento nessa área tem sido limitado associado à falta de compreensão de sua importância por parte dos familiares, médicos, e gestores de serviços de saúde mental9.

As situações de risco como auto e hetero agressão são os principais pontos elencados pelos colaboradores da pesquisa como momentos que exigem resposta imediata e medidas de enfrentamento claras e precisas.

Há evidências científicas que apontam que pais e filhos portadores de transtornos mentais enfrentam situações de risco. A partir dessa compreensão devem ser realizadas intervenções para ajudar os pais a cumprir o seu papel como cuidadores. Estudo realizado com pais após um ano do diagnóstico de seus filhos evidenciou que as intervenções mais realizadas foram programas de visita domiciliar, programas comunitários, acompanhamento domiciliar, e intervenções on-line. Utilizar diferentes formas de intervenções foi uma estratégia identificada no estudo com o objetivo de desenvolver competências parentais e compreender o impacto da doença mental sobre os pais, visando ajudá-los a enfrentar o problema10.

No Reino Unido, a partir da reforma psiquiátrica daquele país, onde os cuidados foram transferidos para os serviços de base comunitária, compreende-se que a responsabilidade para a atenção psicossocial tem sido compartilhada e transferida para os cuidadores familiares, em especial os pais11.

Uma revisão sistemática da literatura sobre o papel dos cuidadores familiares teve como objetivo investigar: o que os pais cuidadores esperam de si mesmos em relação ao cuidado oferecido ao filho doente. Foram identificados como temas recorrentes o instinto natural dos pais para cuidar da família, em especial dos filhos independente da situação de saúde dos mesmos; o desejo de cuidar de forma eficaz; as barreiras que existem quando percebem que os filhos não são capazes de demonstrar carinho e afetividade em relação à família, e como superar as barreiras criadas no relacionamento entre pais e filhos11.

O convívio no lar também foi citado como algo que precisa ser administrado principalmente com os demais membros da família, em especial os irmãos e agregados.

Um estudo exploratório qualitativo investigou as experiências e as necessidades de cuidadores familiares de pessoas em sofrimento mental na Irlanda. A maioria dos cuidadores afirma que tiveram dificuldades para enfrentar a situação do convívio com o familiar doente, mas quando o parente vivia com a família observou-se o uso de estratégias de enfrentamento pró-ativas, tais como ocupar o paciente com uma atividade laboral que não gerasse sobrecarga para ele, mas que o fizesse ser mais independente. Quando o familiar doente morava em local independente, essas estratégias eram menos utilizadas e os conflitos menores dentro do lar, embora o isolamento do paciente fosse evidenciado. As conclusões deste trabalho destacam a importância de uma abordagem contextual para o estudo de modos de enfrentamento12.

Os pais cuidadores, em sua maioria, com o passar do tempo tentam compreender os filhos doentes e a situação de vida que eles enfrentam, mas percebem e avaliam que a vida muda drasticamente quando se vive essa situação, inclusive em relação às suas escolhas e modo de viver13.

Poucos estudos são realizados para avaliar a qualidade de vida entre cuidadores de pessoas em sofrimento mental. Uma pesquisa realizada em Taiwan avaliou estigma, suporte social, qualidade de vida e saúde, e dados sociodemográficos dos cuidadores. Os resultados destacam que entre as mulheres cuidadoras, saúde e qualidade de vida estavam fortemente associadas. Aponta-se a presença marcante de estigma em relação aos cuidadores pela família e comunidade em geral. As mulheres cuidadoras tiveram maior nível de qualidade de vida em comparação com os homens. O estudo sugere que as tentativas de melhorar a saúde dos cuidadores ao longo da vida devem incluir formas de lidar com o estigma associado com a sua posição de cuidador de uma pessoa em sofrimento mental14.

Para os pais cuidadores os profissionais de saúde pouco ajudam. A percepção de alguns é que suas intervenções, em alguns momentos, atrapalham a relação do filho com a família. Eles se sentem sozinhos no ato de cuidar e o serviço de saúde é visto como um local para o filho (a) passar o tempo.

Um estudo avaliou e comparou o cuidado prestado por uma família em relação ao cuidado prestado por um profissional. Os autores apontam que o papel de cuidador pode ser estressante associado ao fato de que essa atividade cria tensão física e psicológica durante longos períodos de tempo, é imprevisível e incontrolável em alguns momentos, tem a capacidade de criar estresse e tensões em vários domínios da vida, como trabalho e relações familiares, e frequentemente requer alto nível de vigilância e atenção. Daí a percepção de que eles estão envolvidos e sobrecarregados com o cuidado14.

O cuidado dos profissionais de saúde foi avaliado como pontual e segmentado, além de não ser articulado aos arranjos familiares para a organização do cuidado em casa. Para os autores o cuidador familiar vive constantemente sob tensão, e devido a essa situação sua saúde é crítica e frágil, o que não é considerado pelo profissional de saúde durante o tratamento do filho doente14.

O medo do futuro foi apontado como um tema recorrente entre os pais cuidadores, há a preocupação do que vai acontecer com o filho caso eles adoeçam ou quando morrerem. Em geral as famílias estimulam seus filhos a lidar com o dia a dia em relação à gestão do dinheiro que recebem, os incentivam a buscar trabalho, mas quando suas estratégias de enfrentamento da situação falham eles buscam alternativas para delegar o cuidado dos filhos a outros familiares que potencialmente possam assumir a guarda e o cuidado no futuro. A questão do emprego e a qualificação profissional não foi um tema presente nesse estudo, apenas dois pais cuidadores relataram iniciativas para a qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho15.

Um estudo comparou a formação profissional e a inserção da pessoa em sofrimento mental em empregos assistidos. Observou-se que as pessoas com formação profissional prévia e realizando tratamento na rede comunitária foram mais ativas no momento da inserção no mercado de trabalho assistido e conseguiram manter o emprego por mais tempo. Pessoas em sofrimento mental em emprego assistido ganharam e trabalharam mais do que as pessoas com formação profissional e sem transtornos mentais. Para os autores isso demonstra que a formação profissional prévia facilita a inserção no mercado de trabalho assistido e possibilita que a pessoa em sofrimento mental seja mais competitiva16.

Os pais também apontam dificuldades na busca por atendimento de saúde dos seus filhos quando se trata de outras patologias que não o transtorno mental, eles têm medo de na sua ausência os filhos adoecerem e não receberem atendimento adequado.

Pesquisa aponta que há um abismo entre pais cuidadores e serviços de saúde mental quando se trata do atendimento de seus filhos doentes. Este abismo se dá pelas seguintes barreiras: a política e gestão dos serviços; a falta de colaboração interinstitucional; a atitude do trabalhador, habilidade e conhecimento; questões relacionadas ao cuidador direto; a família, incluindo o paciente. Para minimizar esse abismo apontado pelos autores é necessário que sejam realizadas auditorias organizacionais para identificar as barreiras mais urgentes que impedem que os atores envolvidos no processo de cuidado se comuniquem efetivamente17.

As pessoas com doença mental grave têm taxas de morbimortalidade mais altas de doenças crônicas do que a população em geral, algumas razões para essas disparidades na saúde são elencadas, tais como limitações de serviços de saúde para atender essa clientela, comportamentos de saúde e os efeitos adversos da medicação psicotrópica18,19.

Conclusões

Os dados da pesquisa corroboram a produção científica na área, embora apresente os limites do contexto cultural no qual foi desenvolvido e a limitação da pouca produção sobre o tema. Os discursos dos colaboradores da pesquisa se entrelaçam em diferentes momentos, ora se aproximando de um consenso em relação ao tema, ora se distanciando, divergentes, mas complementares. O que indica a necessidade de aprofundamento da pesquisa sobre a imbricada relação entre pais e filhos em sofrimento mental e o enfrentamento das situações do cotidiano.

Os resultados apontam avanços na percepção e compreensão do tema sofrimento mental, abordagem e tratamento pelos atores envolvidos no estudo, talvez como reflexo da política de saúde mental do país. Alguns avanços e recuos podem ser identificados, tais como a aceitação do tratamento comunitário e a defesa de alguns pais pela internação e tutela do filho doente pelo estado. Aponta-se a necessidade de pesquisas com grupos em contextos ampliados.

Destaca-se a necessidade de discutir como e o que fazer para sensibilizar pais, familiares e profissionais de saúde sobre as dificuldades do dia a dia e as formas de enfrentamento possíveis para cada caso. Aponta-se também a necessidade de pensar como é lidar com as tensões entre os atores envolvidos quando há divergência entre a compreensão do transtorno mental. O estudo, apesar de suas limitações, avança e inova quando dá voz aos pais cuidadores, e sugere uma nova perspectiva para as pesquisas na área.

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