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Papel do hormônio insulina na modulação dos fenômenos inflamatórios

Papel do hormônio insulina na modulação dos fenômenos inflamatórios

Autores:

Antonio Di Petta

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.9 no.3 São Paulo jul./set. 2011

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011rb1564

INTRODUÇÃO

Os organismos do reino animal, particularmente dos vertebrados, estão envolvidos em um constante desafio, no qual fatores agressores externos, como traumas e infecções devem ser neutralizados. Contudo, para responder de forma eficiente ao desafio imposto, o organismo ativa uma série de eventos estritamente condicionados, característicos da resposta inflamatória que incluem as alterações estruturais e funcionais dos vasos, a migração das células hematógenas à área lesada, a fagocitose e a dor local. Além do mais, essa reação pode acentuarse por meio do recrutamento de componentes do sistema imunológico(1).

Por efeito das manifestações evocadas pelo organismo hospedeiro em resposta ao estímulo patogênico, a inflamação foi considerada até o final do século XVIII uma doença. Entretanto, Hunter, em 1794, descreveu-a como uma resposta inespecífica evocada por todo o tipo de lesão, sendo proposital e de natureza benéfica. Em estudos clássicos, conduzidos por Miles e Niven, bactérias piogênicas foram utilizadas como estímulo nocivo, demonstrando de forma convincente o aspecto defensivo da resposta inflamatória. Nesses experimentos, componentes reconhecidos dos estágios iniciais da resposta inflamatória foram bloqueados por choque sistêmico, isquemia local ou administração de substâncias anticomplemento. Os resultados demonstraram que o efeito da resistência do hospedeiro em desenvolver uma resposta adequada à lesão bacteriana resultou em uma lesão máxima, sendo esta substancialmente maior e mais severa do que as lesões desenvolvidas em animais, nas quais os estágios iniciais da resposta inflamatória não foram bloqueados. Esses experimentos contribuíram para compreender que uma resposta inicial adequada é essencial para prevenir ou limitar a intensidade de uma lesão futura(25).

Mediadores químicos e fatores teciduais, plasmáticos e neurogênicos são fundamentais para o desenvolvimento do processo inflamatório. Entretanto, evidências indicam, de forma relevante, a influência dos hormônios na modulação da resposta inflamatória(1,6).

Os hormônios exercem papel primordial sobre os mecanismos reguladores do processo inflamatório, sendo responsáveis por um ajuste de sintonia fina, o qual se altera de acordo com a intensidade da lesão. Em uma série de estudos conduzidos no início dos anos 1970, por Garcia Leme et al., demonstrou-se claramente que a insulina e os glicocorticoides exercem efeito regulador direto nas reações estruturais da área inflamada. Além do mais, hormônios influenciam importantes funções celulares no desenvolvimento da resposta inflamatória. Evidências indicam que pacientes diabéticos descompensados são mais suscetíveis a infecções, as quais se manifestam com maior gravidade e são mais difíceis de serem erradicadas(1,7). Concentrações adequadas de insulina parecem ser essenciais para a manifestação das alterações funcionais de células endoteliais e de leucócitos na vigência do processo inflamatório. O presente artigo teve como objetivo evidenciar a interação do hormônio insulina na modulação da resposta inflamatória.

PROCESSO INFLAMATÓRIO

O processo inflamatório caracteriza-se pela resposta do tecido conjuntivo vascularizado a estímulos lesivos endógenos ou exógenos(8). Esses estímulos lesivos de natureza química, física ou biológica, desencadeiam uma série de alterações funcionais e morfológicas de células, tecidos, vasos sanguíneos e linfáticos, circunscrevendo a área lesada(6).

A resposta inflamatória é fundamental para destruir, diluir ou eliminar o agente agressor, evoluindo para a cicatrização e a reconstituição do tecido danificado. O processo inflamatório apresenta dois padrões distintos de manifestação: a inflamação aguda, caracterizada pela resposta imediata e precoce a um agente nocivo; e a inflamação crônica, caracterizada pela duração prolongada, na qual a inflamação ativa, a destruição tecidual e a tentativa de reparo ocorrem simultaneamente(8).

A manifestação da resposta inflamatória aguda envolve alterações do calibre vascular, promovendo o aumento do fluxo sanguíneo, alterações estruturais da microvasculatura, ocasionando o aumento da permeabilidade vascular seguida da formação do exsudato inflamatório, e a emigração dos leucócitos da microcirculação para o foco da lesão(8).

Inicia-se por uma vasoconstrição inconstante e transitória seguida de uma vasodilatação envolvendo primeiramente os microvasos adjacentes e, secundariamente, a abertura de novos leitos capilares na área lesada, resultando no aumento do fluxo sanguíneo local. A permeabilidade vascular observada no curso da resposta inflamatória decorre da abertura de junções interendoteliais presentes nas vênulas pós-capilares e do extravasamento de proteínas para o tecido perivascular(6,8). Uma vez que a velocidade sanguínea diminui, pela vasodilatação, formam-se agregados eritrocíticos que, exibindo massa maior que a dos leucócitos, os deslocam para a periferia dos vasos(9). Os leucócitos passam a aderir momentaneamente ao endotélio, a princípio de maneira transitória (rolagem) e, num segundo momento, aderem-se firmemente (aderência firme). Após a aderência firme, os leucócitos emitem pseudópodes pelas junções interendoteliais, para então atingirem a região extravascular(10).

O aumento da força de adesão depende de alterações estruturais de moléculas responsáveis pela interação da superfície do leucócito com a superfície da célula endotelial. Essas moléculas são chamadas de moléculas de adesão e pertencem, no caso em particular, a estruturas distintas denominadas selectinas, integrinas e moléculas pertencentes à superfamília das imunoglobulinas. As selectinas compreendem a P-selectina presente no endotélio e nas plaquetas, E-selectina confinada ao endotélio e L -selectina expressa por muitos tipos de leucócitos. Os ligantes das selectinas são oligossacarídeos associados a glicoproteínas presentes nas membranas das células adjacentes. As selectinas e seus ligantes são os elementos responsáveis pelo rolamento dos leucócitos sobre o endotélio(11). As moléculas da superfamília das imunoglobulinas incluem as moléculas ICAM-1(intercellular adhesion molecule-1), ICAM-2, VCAM-1 (vascular cell adhesion molecule-1) e PECAM-1 (platelet endothelial cell adhesion molécule-1). Seus ligantes incluem moléculas da família β2-integrinas (CD11a/CD18, CD11b/ CD18)(12).

Inúmeros mediadores do processo inflamatório, como histamina, trombina, fator de ativação plaquetária (PAF) e citocinas, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e interleucina (IL)-1β, por exemplo, são os elementos responsáveis pela expressão dessas moléculas de adesão(13).

AÇÃO MODULADORA DO HORMÔNIO INSULINA NA RESPOSTA INFLAMATÓRIA

Concentrações adequadas de insulina parecem ser essenciais para a manifestação das alterações funcionais de células endoteliais e de leucócitos na vigência do processo inflamatório. Estudos conduzidos in vitro com neutrófilos de pacientes diabéticos documentam defeitos de função leucocitária, como redução da capacidade de adesão, fagocitose, atividade bactericida e produção de espécies reativas de oxigênio(14). Em estudo sistemático da função leucocitária em modelo experimental de pleurisia, verificou-se que o infiltrado celular inflamatório neutrofílico encontra-se reduzido em ratos tornados diabéticos pela injeção de aloxana. A falha no recrutamento celular encontra-se associada à presença de uma proteína (> 12 kDa) presente no plasma com efeito inibitório sobre a quimiotaxia dos neutrófilos(15). Utilizando-se técnica de microscopia intravital verificouse que proteína análoga associa-se à inibição das interações leucócito-endotélio(16). O tratamento dos animais com insulina relativamente prolongado (12 dias) resulta na recuperação gradual da quimiotaxia avaliada in vivo (pleurisia, microscopia intravital) e in vitro (câmara de Boyden). Entretanto, tratamentos agudos (3 dias) são inefetivos(15,17). Associa-se a inibição da quimiotaxia de neutrófilos uma proteína alterada por reação de glicação(18), com atividade supressora sobre a expressão da molécula de adesão ICAM-1 em células endoteliais de vênulas pós-capilares(19). O tratamento dos animais com insulina restaura a expressão de ICAM-1 no endotélio microvascular a valores normais(19). Utilizandose técnica microscópica intravital, verificou-se que os leucócitos em contato com o endotélio venular (comportamento de rolar) encontram-se marcadamente reduzidos em ratos tornados diabéticos pela injeção de aloxana, 10, 30 ou 180 dias antes. Sob influência de um estímulo inflamatório, leucócitos migram para o tecido perivascular de animais controle e esse evento acompanha-se de redução no número de células que rolam sobre o endotélio. Nos animais diabéticos, o número de leucócitos que rolam sobre o endotélio não se altera, porém, poucas células migram para o tecido conectivo adjacente. Essas observações não refletem, entretanto, alterações do leucograma. O tratamento relativamente longo (12 dias) dos animais diabéticos com insulina corrige o defeito na interação leucócito-endotélio e, consequentemente, o infiltrado celular inflamatório(16,17,19).

Em modelo de hipersensibilidade mediada por IgE em ratos, observou-se redução do número de células presentes no lavado broncoalveolar em animais tornados diabéticos. O tratamento desses animais com dose única de insulina (NPH, 4 UI) imediatamente antes do desafio antigênico corrige completamente essaresposta(20). Por outro lado, o jejum de 15 horas normaliza a glicemia, mas não modifica as características do lavado broncoalveolar dos ratos diabéticos sensibilizados e broncoprovocados, indicando que a simples correção da glicemia não é suficiente para restaurar a resposta de hipersensibilidade mediada por IgE(20).

Além do mais, a concentração sérica de corticosterona, glicocorticoide prevalente no rato, não difere entre ratos controles e diabéticos por aloxana, o que reforça a intervenção direta da insulina no controle da lesão(21). A capacidade de resposta do hospedeiro aos agentes patogênicos parece estar associada à integração das funções dos glicocorticoide endógenos e insulina. Quando ocorre uma falha nessa atividade reguladora, o controle e a neutralização do estímulo nocivo são prejudicados e uma reação, a princípio transitória, tende a se tornar sustentada e, muitas vezes, deletéria(1,6).

Verificou-se, ainda, que a redução do infiltrado celular inflamatório no diabetes mellitus associa-se à redução da expressão de ICAM-1, confinado ao endotélio vascular e epitélio alveolar, restabelecendo-se os valores normais após tratamento dos animais com insulina(22). Em estudo recente, empregando-se modelo de hipersensibilidade mediado por IgE em ratos, verificou-se que segmentos de brônquios fonte e intraparenquimatoso, isolados de animais diabéticos, apresentam redução da resposta contrátil à ovalbumina (desafio in vitro) decorrente de menor desgranulação mastocitária. O tratamento dos animais diabéticos com dose única de insulina ou a adição in vitro do hormônio corrige essas alterações(23).

Estudos conduzidos em modelo de inflamação pulmonar aguda induzida por lipopolissacarídeo (LPS) de Escherichia coli indicam, de modo consistente, a participação da insulina na regulação de variados aspectos dessa resposta. Verificou-se que ratos, tornados diabéticos pela injeção de aloxana, exibem redução da geração de íons superóxido por leucócitos presentes no lavado broncoalveolar(24); redução do consumo de ácido araquidônico e liberação de prostaglandina E (7); redução da produção de citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, IL -1β) e anti-inflamatória (IL -10)(21), eventos associados à redução do infiltrado celular inflamatório pulmonar(7). O tratamento dos animais com insulina restaura por completo essas anormalidades.

Esses estudos contribuíram para se compreender porque pacientes diabéticos descompensados são mais suscetíveis a infecções, que se manifestam com maior gravidade e são mais difíceis de serem erradicadas(1,7) e porque, poucos anos após a introdução da insulina em terapêutica, constatou-se que a mortalidade decorrente de processos infecciosos, no paciente diabético, decrescera.

A resposta inflamatória não é meramente um evento de expressão local, mas uma reação complexa e extensa do organismo como um todo. Existem amplas evidências para o papel regulador de sistemas hormonais no processo inflamatório. Sítios de ligação para muitos hormônios podem ser caracterizados em estruturas vasculares e células hematógenas envolvidas com a resposta inflamatória; disfunções endócrinas afetam etapas fundamentais da resposta à lesão; as concentrações plasmáticas de vários hormônios alteram-se no decorrer do processo inflamatório; ações hormonais podem representar aspectos relevantes na defesa do organismo contra infecções(6).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, a inflamação não é meramente uma resposta local, mas um processo controlado por hormônios, no qual o hormônio insulina exerce papel fundamental na modulação do desenvolvimento da resposta inflamatória, assegurando uma reparação e um remodelamento tecidual dentro dos limites da normalidade. Assim sendo, uma resposta inicial adequada é essencial para prevenir ou limitar a intensidade de uma lesão futura.

REFERÊNCIAS

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