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“Para maior glória do nosso Brasil”: educação e cuidados para a saúde bucal infantil, 1912-1940

“Para maior glória do nosso Brasil”: educação e cuidados para a saúde bucal infantil, 1912-1940

Autores:

Iranilson Buriti de Oliveira,
Maria Izilda S. Matos

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.25 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702018000500022

Abstract

Educational actions and campaigns in the area of dentistry geared towards children are addressed, focusing on the introduction of dental cabinets, or offices, at public schools and the creation of “good teeth” competitions to spread modern precepts of hygiene. Dentists were key agents in the spread of “modern dental science” at schools and different institutions, taking part in educational activities and also in actions and struggles for public policies that recognized the issues of oral health. The article is based on extensive research of a variety of documental sources and, through dialogues with the new cultural history, questions the ways oral health was prescribed in the early decades of the twentieth century.

Key words: dental offices at schools; good teeth competitions; dental education

Este artigo recupera e problematiza as ações, propagação de preceitos e campanhas educativas voltadas à infância na área odontológica, abordando aspectos centrais como a implantação de gabinetes dentários nas escolas públicas e a criação de concursos de “bons dentes” para a divulgação de regras da dita higiene moderna. Os dentistas foram agentes decisivos na difusão da “ciência odontológica moderna”, presentes nas escolas, clínicas dentárias e diversas instituições, com atuação voltada para atividades informativas e educativas, agindo também no âmbito de ações e lutas por políticas públicas que reconhecessem as questões de saúde bucal.

O artigo se baseia em extensa pesquisa, incluindo documentação variada (anais de congressos, periódicos especializados, jornais e revistas de circulação nacional, anúncios, entre outros) e, a partir de diálogos com a nova história cultural, busca questionar os modos de ler e as formas de prescrever a saúde bucal nas primeiras décadas do século XX.

Vigilantes da boca da criança: odontopediatria e constituição de um campo de intervenção

No Brasil, os cuidados para com a saúde bucal das crianças constituíram-se em problemática emergente desde os finais do século XIX, o que suscitou, desde então, estudos e pesquisas elaborados por dentistas, médicos, educadores e sociedades civis organizadas. Essas questões foram amplamente discutidas em congressos e conferências nas áreas de odontologia e higiene, que deixaram registros em revistas, boletins profissionais e materiais de campanhas. Com fins educativos e profiláticos, as instituições odontológicas realizaram verdadeiras batalhas discursivas, visando sensibilizar governos e autoridades escolares (inspetores, diretores de instrução, professores) para a criação de clínicas dentárias infantis e serviços dentários gratuitos nas escolas públicas, dispensários e institutos de proteção à infância.

Nesse processo, a boca, na sua materialidade corpórea, passou a ser cada vez mais disciplinada, situada num corpo vigiado por dentistas, médicos, professores, educadores, pais e autoridades públicas. O corpo da criança, identificado como um híbrido de humano e máquina (Donald, 2000, p.91), era visto como algo a ser domesticado por ações educativas que atingiriam o âmago da alma dos futuros cidadãos. A busca pela perfeição da saúde/beleza do sorriso e da boca envolvia dinâmicas sociais, rupturas culturais, reconfigurações de gênero e de geração.

Nessas novas configurações socioculturais, em São Paulo (SP), sob calorosos aplausos dos presentes, foi inaugurado (1912) o primeiro gabinete dentário em estabelecimento de ensino primário oficial (Grupo Escolar Prudente de Morais), uma iniciativa do doutor Baltazar Vieira de Mello, em parceira com o professor Gustavo Pires, criador da Assistência Dentária Escolar (Mott et al., 2008, p.106). Tal empreendimento repercutiu em outros estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia e Sergipe, que começaram a atentar para a necessidade da assistência bucal infantil. Desse modo, surgiram novas propostas de intervenção odontopedagógica no cenário escolar e alertas sobre questões concernentes à saúde e educação: “não conseguiremos raça sadia para realizar uma Pátria ideal sem dispensar à criança a assistência que merece” (Faria, 1936, p.311).

Cresceram e se difundiram (por meio de todo um conjunto de ações e escritos) as preocupações em torno da odontopediatria, bem como a consciência sobre a falta de dentistas especializados no tratamento das crianças com cáries ou outras doenças bucais e de clínicas dentárias infantis, divulgando a necessidade da criação de gabinetes dentários escolares “com o argumento de que a população escolar se constitui em clientela cativa, isto é, disponível num espaço social delimitado, durante certo período de tempo e sujeita a ser manipulada” (Botazzo, 2013, p.73).

Essa preocupação com a saúde bucal da infância remonta ao século XIX, quando, gradativamente, os preceitos higiênico-sanitaristas se expandiram e fomentaram um conjunto de prescrições que visavam normatizar, orientar e ordenar a vida nos seus mais variados aspectos: na cidade e no campo, no trabalho e no domicílio, na família e na escola, no comércio de alimentos e nos preceitos dietéticos, procurando atingir costumes e hábitos cotidianos. Buscando a normatização de práticas, corpos, bocas e dentes, tornava-se necessário mudar hábitos e atitudes, de tal modo que o papel do dentista era decisivo na configuração das pautas normativas referentes à higiene bucal (Vigarello, 1996; Matos, 2018, p.44).

Dentro desse quadro de biopolíticas e ações de intervenção nos hábitos e atitudes, os estudos dos dentes e da boca (como órgãos funcionais e naturalmente dispostos) escondiam tramas de poder e desejos de controle, sendo “preciso mais que a ciência cartesiana para compreender a produção da subjetividade da boca. Uma discussão que ultrapasse os limites da odontologia é requisitada” (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006, p.99). Além disso, tornava-se difícil manter a invisibilidade dos dentes e demais órgãos bucais,

desde sempre vistos e tocados, e cuja familiaridade vem da infância e acerca dos quais acumulam-se discursos, interpretações, comentários, ditos de toda ordem ... recomendações para conservá-los e certezas ancestrais sobre as causas dos males que atacam dentes e demais órgãos bucais (Botazzo, 2000, p.130).

Com o objetivo de defender as crianças “dos males que atacavam dentes e demais órgãos bucais”, ganhou destaque no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, o artigo do doutor Cirne Lima, de 1922, que iniciou campanha em prol da assistência dentária infantil nas escolas públicas e em instituições congêneres. Ele também escreveu ao presidente do Estado do Rio Grande do Sul e endereçou questionário aos membros da Sociedade de Medicina de Porto Alegre, inquirindo sobre a importância de gabinetes dentários nas escolas, abrigos de menores e dispensários. Desencadeou-se um debate na imprensa e, por meio de correspondências, muitos médicos, ao responderem ao inquérito, enalteceram a iniciativa e apoiaram a necessidade da profilaxia na infância.

Em todas essas enunciações destacava-se a urgência da constituição da clínica dentária infantil (pública ou particular) e da odontopediatria. O objetivo de Cirne Lima com a implantação das clínicas dentárias infantis em Porto Alegre era difundir os preceitos da “moderna ciência odontológica”, cuja missão consistia em disseminar hábitos higiênicos, cuidados dentários e possibilitar o conhecimento dos tratamentos necessários (Matos, 2018, p.74). Dessa forma, buscava-se garantir a saúde e a beleza da boca, valorizando o encanto do sorriso da criança e das futuras gerações.

Em Minas Gerais, o decreto que reformou a instrução pública em 1927, em seu artigo 98, viabilizando o bom funcionamento das clínicas dentárias de crianças, explicitava:

O Estado poderá entrar em acordo com a Escola de Odontologia da Universidade de Minas Gerais para o fim de instituir um curso de instrução especializada para a ‘formação de técnicos especialistas em clínica dentária infantil’ e enfermeiras assistentes ... capazes de secundar a ação do Estado no aperfeiçoamento físico, moral e intelectual da geração de amanhã (Oliveira, 1942-1943, p.7, 10; destaques nossos).

Já no Rio de Janeiro, em 1927, por iniciativa da Congregação Técnica da Assistência Dentária Infantil, e sob direção do professor doutor Frederico Eyer, foi criada a Escola de Higienistas Dentárias, com o objetivo principal de preparar moças para trabalhar em consultórios clínicos odontológicos, “facilitando o trabalho dos dentistas” e ajudando-os a serem “guardiões dos sorrisos” da meninada. Uma das funções dessas ajudantes era auxiliar “a dominar os movimentos imprevistos dos clientezinhos, impedindo, outrossim, que a saliva invada o campo operatório” (Barreto, s.d., p.31). As higienistas dentárias, como “verdadeiras missionárias da odontologia preventiva” (Barreto, s.d., p.31), também poderiam “prestar grandes serviços como visitadoras e auxiliares dos inspetores escolares” (O Serviço..., 12 jun. 1927, p.185).1

Em 1929, por ocasião do terceiro Congresso Odontológico Latino-americano, realizado no Rio de Janeiro, a autonomia do serviço dentário e a importância do dentista no cenário escolar foram evidenciadas pelos profissionais. As conclusões finais do congresso recomendavam ao governo que, “para maior eficiência do serviço dentário escolar, seja ele feito sob a direção de um odontólogo, que é o único competente para dirigi-lo, dada a complexidade que esse serviço encerra” (Anais..., 1929, p.456).

Associações médico-odontológicas, escolas e famílias deveriam agregar esforços para “salvar” a boca das crianças. Nesse processo, observa-se que a escola foi se assemelhando a um “espaço de cura e civilização”, clinicando, difundindo hábitos de higiene e alimentação adequada, corrigindo vícios e práticas, num esforço de educar “mentes atrasadas, rudes e retardadas” (Carvalho, Loureiro, 1997, p.43-57).

Antônio Campos de Oliveira (s.d., p.24) advogava a tese da necessidade de uma lei que obrigasse todos os alunos matriculados nos estabelecimentos públicos a passar por inspeção e tratamento odontológico, ou apresentar à escola documento comprobatório de dentes sadios, tratados ou em tratamento, “à semelhança do que se procede à exigência de atestado de vacina ou de que não sofre moléstia contagiosa ao pretendente a matricular-se”. Num sentido próximo, o decreto n.5.394, de 25 de fevereiro de 1932, que criou a Inspetoria de Higiene e Assistência Dentária no Estado de São Paulo, estabelece:

Art. 9º – Todos os alunos matriculados nos estabelecimentos públicos ficam sujeitos à inspeção e tratamento odontológico.

§ Único – Ao aluno que recusar tratamento pela Inspetoria de Higiene e Assistência Dentária, sob alegação de que tem dentista particular, será marcado prazo para apresentar atestado nesse sentido do seu profissional assistente (São Paulo, 1932).

No Rio de Janeiro, a famosa clínica dentária infantil “Moncorvo Filho”, quando inaugurada em 1901, enfrentou dificuldade de encontrar especialistas em odontopediatria para cuidar da “boca da infância”.2 A introdução da cadeira de odontopediatria nos cursos de odontologia de todo o país tornava-se imperativa, sendo justificada por um discurso assentado na necessidade de salvar a família e soerguer a infância, de curar o corpo e tratar a boca.

A difusão do estudo da dentisteria infantil era urgente. Profissionais como Antonio Dias Arruda, presidente da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas, em 1920, endereçaram petição à Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados de São Paulo para que se instituísse nos cursos de odontologia a cadeira de odontopediatria,3 alegando ser essa uma estratégia para salvar a “aristocracia dos eugênicos”, como se manifestou o dentista Antônio Campos de Oliveira (s.d., p.9):

‘a aristocracia dos eugênicos’ não pode ser atingida sem a colaboração do odontopediatra, que, à semelhança do médico, tem que intervir sempre, a começar pelos conselhos dietéticos à gestante, no afã generoso de assegurar ao nascituro uma odontíase normal, e, quiçá, arcadas dentárias íntegras.

Na opinião de diversos profissionais dentistas e de professores das faculdades de odontologia do país, a implantação da disciplina de odontopediatria nos currículos era um modo de dar visibilidade à caótica paisagem bucal das crianças e contribuir para a expansão da assistência dentária infantil. Tais iniciativas convergiam para o objetivo das associações de dentistas de todo o país de criar um campo profissional odontológico cada vez mais independente do médico, constituindo, para tanto, currículos, cursos e programas que reafirmassem social e culturalmente a categoria e a profissão. Assim, “os dentes vincam de tal modo o espaço de um saber, e a tal ponto, que continuam como referência até mesmo quando ausentes por completo do cenário natural de sua emergência” (Botazzo, 2000, p.59).

“Obra da mais sublime caridade cristã”: a assistência dentária infantil

Diversas campanhas profiláticas e educativas foram encaminhadas no sentido de assistir a infância e normatizá-la dentro de preceitos higienistas. No que se refere às práticas de cuidados bucais da primeira infância, as atividades informativas e educativas foram dirigidas para as mães; já para meninos e meninas em idade escolar, as ações e orientações foram desenvolvidas especialmente no espaço-tempo da escola. Na década de 1910, foram instauradas a assistência e a inspeção médico-dentária nas escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Gradativamente, a iniciativa de clínicas dentárias anexas às escolas se difundiu e ganhou visibilidade em muitos estabelecimentos de ensino primário e secundário do país.

Em paralelo, foram criados os “Pelotões da Saúde”, que também funcionavam nas unidades escolares. Reproduzindo um modelo militar de controle e disciplina do corpo e das ações higiênicas, propunham-se a promover uma guerra pela saúde, incluindo a assepsia bucal (Pandini, 2006). Essa “guerra” contra as moléstias do corpo ampliou olhares atentos ao cotidiano e às práticas das crianças em idade escolar.

Durante o terceiro Congresso Odontológico Latino-americano, realizado em 1929, o dentista Eneas Roch (1929, p.127) lembrava que o primeiro dispensário dentário destinado às crianças pobres foi fundado em Salvador em 1904, por iniciativa particular do Instituto de Proteção à Infância, seguido de outras instituições congêneres que possuíam serviço dentário escolar, a exemplo da Escola Normal da Capital, com a função de sanear de forma sistemática a mocidade.4

Na Paraíba, ações de proteção à dentição da infância também ocorriam desde a década de 1910, com atendimentos aos menores pobres no Instituto de Proteção à Infância, mas a clínica dentária infantil foi mais bem sistematizada a partir de 1924, com a criação da Assistência Dentária Infantil, por iniciativa dos dentistas Janson Lima, J.M. de Mello Lula e Francisco Ramalho: “Já possuímos uma Policlínica para a criançada pobre e agora hemos de ver efetuada a ideia louvabilíssima desses distintos cavalheiros, cuja lembrança tem recebido a solidariedade moral de toda a Paraíba” (Assistência..., 15 maio 1924, p.17).

Na capital da Paraíba, os grupos escolares Antônio Pessoa, Epitácio Pessoa e Thomaz Mindello5 contavam com clínica dentária para escolares. O Grupo Escolar Epitácio Pessoa inaugurou sua clínica em 1925. Esse gabinete dentário e o do Grupo Escolar Antônio Pessoa eram mantidos pelas caixas escolares Arruda Câmara e Solon de Lucena e apoiados por associações, ligas de bondade e círculos de pais e mestres.

Nesse mesmo período (1921), Alcides Bezerra, diretor geral da Instrução Pública da Paraíba, endereçou uma proposta ao governo Sólon de Lucena (1920-1924) para que se criasse o Serviço Dentário, considerado de suma importância para o bem-estar dos escolares. Porém, esse serviço só foi institucionalizado em 1930, durante a intervenção de Anthenor Navarro (Lima, 2010, p.64-65).

Visando ampliar essa questão, diversos agenciamentos pedagógicos e publicitários foram utilizados como dispositivos para que as crianças tivessem boca e sorriso perfeitos. Assim, os pequenos eram orientados para o consumo e o uso cotidiano (ao acordar, após as refeições e antes de dormir) de escovas, dentifrícios e enxaguantes, bem como para a realização de visitas sistemáticas ao dentista (duas vezes ao ano). Dessa forma, implementava-se um mercado de consumo de produtos e serviços odontológicos.6

Pelo Brasil afora, dentistas como Frederico Eyer e Luiz Hermanny Filho, da Assistência Dentária Infantil do Rio de Janeiro, evidenciavam a urgência da formação de um corpo especializado em odontopediatria para suprir a carência da assistência dentária das crianças, bem como ressaltavam a necessidade de salas específicas para atendimento infantil nas faculdades de odontologia, com cadeiras e instrumental adequados a esses pacientes. A sala de espera das crianças deveria merecer cuidados especiais, “o ambiente deve estar preparado de tal sorte que a criança possa esquecer que aí se encontra à espera de uma consulta, de uma intervenção” (Oliveira, s.d., p.18-19).

(Propagandas..., s.d.).

Figura 1 : Propaganda do creme dental Gessy 

Nesse mesmo viés discursivo, Coelho Souza recomendava: “Ao dentista de criança não se dispensam certos dons naturais, como sejam a simpatia, a expansibilidade, a afabilidade e a paciência, ao lado de qualidades técnicas bem apuradas”, um exímio pedagogo, dotado das mesmas qualidades do educador (Souza, 1928, p.3, citado em Oliveira, s.d., p.19). Acrescentava que a arquitetura da clínica que receberia o pequenino paciente deveria possuir “um arranjo adequado”, criando:

ambiente infantil, alegre, sem aparatosa exibição de instrumentos que infundirá pavor às crianças! ... envolvendo a própria natureza do mobiliário, das decorações, das inscrições murais, que deve incutir no espírito das crianças e até dos maiores que as acompanham, os preceitos de higiene geral e especial da boca (Souza, 1928, p.3, citado em Oliveira, s.d., p.19).

No trabalho educativo, seja nas clínicas ou fora delas, “devem ser utilizadas as largas publicações em linguagem simples, incisiva e convincente sobre a formação dos dentes, função, conservação ... e a importância da higiene dietética e bucodentária” (Faria, 1936, p.111). Esse material poderia ser exposto nas paredes das escolas e das clínicas, mas também ter outro endereçamento: “reunidas em folhetos, deveriam ser remetidos aos pais para que conheçam e avaliem a importância dos cuidados a serem dispensados aos filhos” (Faria, 1936, p.111).

Em diversos grupos escolares circulavam jornaizinhos mensais, escritos pelos discentes e docentes. Esses veículos foram utilizados para difundir preceitos odontológicos, trazendo à baila a necessidade da visita sistemática ao dentista e dos cuidados com a saúde bucal. Entre as recomendações estava a correção dos ditos “maus hábitos”, como dormir sobre as mãos, respirar pela boca, morder as unhas, chupar dedos e chupeta. Essas práticas consideradas nocivas poderiam provocar infecções focais, tuberculose, septicidade bucodentária e, consequentemente, imperfeição na pronúncia dos vocábulos. Ao corrigir tais práticas, era possível ter o “embelezamento das nossas crianças, possibilitando-lhes a harmonia de lindos sorrisos” (Oliveira, 1942-1943, p.11).

Com a implantação dos gabinetes dentários em escolas públicas, institutos de proteção à infância, dispensários e escolas normais de diversos estados, desenvolveu-se uma pedagogia da boca, mobilizando políticos e educadores em prol da construção de uma população higienicamente produzida e ortodontologicamente corrigida. Nesse sentido, em 1930, o doutor Zópiro Goulart (médico-inspetor escolar do Rio de Janeiro) destacava que no século da higiene “o ‘a-b-c’ da inspeção médica escolar é a assistência dentária” (citado em Oliveira, s.d., p.22). Em artigo escrito (1932) para o Jornal do Brasil, o mesmo Zópiro Goulart mencionou as diferenças das funções dos envolvidos: educadores e médicos.

A função que deve prevalecer, porém, na organização da higiene escolar, é a do educador. Não a do médico, mas a do higienista que educa. ... Embora o inspetor-médico tenha de ser, antes de tudo, um educador sanitário, um propagador de higiene social, cabendo-lhe um papel de primeira grandeza na educação higiênica do aluno e dos mestres, ele não pode deixar de desempenhar uma função clínica e cuidar do tratamento dos doentes. Não que o médico escolar deva se incumbir ele mesmo desse trabalho (citado em Góis Junior, Silva, 2016, p.422).

A importância da união de esforços para a construção de uma “nova nação” passou a ser divulgada em revistas, periódicos, tribunas, no rádio e no cinema, circulando em manuais pedagógicos e sendo apropriada, em maior ou menor grau, por médicos, odontólogos, professores, pais, políticos e autoridades em geral. Fazia-se necessário fortalecer o binômio família-escola. Os esforços articulados dessas instituições tornariam os futuros cidadãos da nação indivíduos saudáveis, trabalhadores e atuantes no sentido de produzir o progresso.

Para tanto, as atenções e ações de políticos e higienistas se centraram na domesticação do corpo das crianças, ampliando as intervenções corretivas. A criança passou a ser vista como um “soldado” em potencial, tendo seu corpo controlado e militarizado por uma teia de discursos que a prendia psicológica, financeira e emocionalmente à “célula-mãe” da sociedade: a família (Shorter, 1994, p.28). O lar da família seria espaço para formar e educar os futuros cidadãos. Nesse sentido, a atuação dos dentistas visava conscientizar as mães da importância dos cuidados com os dentes para a saúde das crianças, dos tratamentos e das visitas periódicas aos gabinetes dentários.

Nós, profissionais, ficamos assombrados quando encaramos a higiene dentária no período infantil. A diminuta frequência de crianças nos gabinetes dentários significa apenas – digamos o termo exato – desleixo da parte de quem compete zelar-lhes a saúde, cuja ‘ignorância ou inconsciência ou falsa economia mais tarde vai produzir desastrosos efeitos na saúde dos filhos. Há coitadinhos que passam horas, dias e mesmo semanas’ dominados por sofrimentos atrozes, com as terríveis dores de dentes. E, para mitigar-lhes a dor, aplicam-lhes inconscientemente os mais variados medicamentos, as mais complicadas benzeduras, sem, entretanto, lembrar-se do dentista o único capaz de, em poucos momentos, eliminar aquele sofrimento, quer acalmando a dor na aplicação conscienciosa de um calmante, quer extraindo o dente, quando já imprestável (Pereira, 1928, s.p.; destaques no original).

As preocupações com a saúde bucal das crianças se expandiram, fazendo sobressair a necessidade da difusão dos tratamentos dentários e dos cuidados com a higiene da boca desde a mais tenra infância.

Ó mãe brasileira, cuja solicitude é inigualável, dai o condão da vossa graça aos primeiros cuidados de higiene bucal dos vossos filhinhos, e ficai seguras de que, entreabertos os olhos, antes de solicitarem o cavalinho, o velocípede ou a bola vos pedirão todas as manhãs o brinquedo da escovinha de dentes. ... Não creio na robustez de uma raça que não tenha bons dentes (Eyer, 1929, p.40).

Dessa forma, as mães se tornaram agentes responsáveis pelos cuidados dos futuros cidadãos. Era recorrente na literatura médica e pedagógica as articulações entre mãe-filho-pátria. Essa “nova mulher” foi submetida à tutela dos conhecimentos científicos e higiênicos, deveria se constituir num agente familiar da higiene social e bucal – por meio dela, pretendia-se o aperfeiçoamento das futuras gerações.

Propalava-se a necessidade de impor uma profilaxia antimicrobiana aos lares, e atribuía-se à mãe a tarefa de zelar pela saúde e bem-estar dos membros da família. Assim, ampliava sua responsabilidade como dona de casa e no controle dos hábitos de higiene, principalmente em relação às crianças. Alertava-se sobre as concepções errôneas acerca da higiene bucal, bem como o dever das mães de prevenir a ocorrência de cáries nos filhos e propiciar o perfeito alinhamento da arcada, ressaltando a importância da atenção com a primeira dentição. Os cuidados com os dentes eram considerados fundamentais para a saúde integral das crianças.

Devemos advertir, antes de tudo, que para assegurar uma dentadura saudável e regular, convém que se cuide da primeira dentição. Muitas são as mães que dizem ‘Não há perigo: cairão e virão outros mais bonitos’. Porém nada mais errôneo; deve o dentista vê-los e, se torne caso preciso, acomodá-los bem, para que se torne a segunda dentadura, ou permanentes como se deseja. E para o bem estar físico das crianças, é importantíssimo que a boca esteja sempre em perfeitas condições higiênicas (Brum, citado em Oliveira, s.d., p.22).

As mães também deveriam cuidar da dieta dos filhos, atentando para que não ingerissem muitos açúcares ou hidratos de carbono, de modo que a sua dentição não fosse afetada. Ficava a família responsável, ainda, por encaminhar as crianças aos jardins de infância e à escola primária, pois

somente durante os tempos escolares, dos sete aos catorze anos, que a Nação inteira se acha reunida, ao alcance imediato do Poder Público, e apta a receber aquela assistência intensiva que é necessária, mas difícil e até impossível nas ordinárias circunstâncias da vida coletiva. Tal oportunidade única deve ser aproveitada e plenamente utilizada pelos médicos, dentistas e professores (Brum, citado em Oliveira, s.d., p.22).

O médico Miguel Couto destacava que “a escola primária se converteu, por assim dizer, num instituto de ortopedia física e psíquica, em que colaboram três agentes: a família, o mestre e o médico” (citado em Oliveira, s.d., p.22). A infância adquiriu importância singular, ampliavam-se as preocupações com a sua educação, formação de caráter e saúde, incorporando diferentes aspectos, como o controle dos corpos (inserção de disciplina como educação física – ginásticas e exercícios físicos passaram a fazer parte dos currículos escolares), os cuidados com os dentes e com o regime alimentar.

Na Semana Dentária de 1928, essa conexão entre ambiente doméstico e saúde da nação foi colocada em pauta. Mães, tutores e responsáveis pelas crianças foram didaticamente orientados para cuidar da dentição infantil. A esses “foram ministrados salutares conselhos relativos à higiene da boca, ao tratamento dos dentes, meios de evitar a cárie que tantas perturbações traz ao organismo” (A semana..., 18 maio 1928, p.2). Lançando mão dos preceitos eugenistas, destacava-se a importância de esforços articulados para o sucesso dessa missão patriótica:

Não erra quem diz que a saúde, a força e a alegria de um povo residem nos seus bons dentes, pois uma raça de maus dentes não pode deixar de ser uma raça fraca, doente, triste... É dever, portanto, dos governos, cuidar muito seriamente dos dentes das crianças nas escolas, colégios, orfanatos, de sorte a lhes dar uma assistência dentária eficiente e constante, incutindo-lhes hábitos de higiene e cuidados com a boca a fim de que formem criaturas fortes e sadias (A semana..., 18 maio 1928, p.2).

Em muitas escolas primárias e jardins de infância, a prática da escovação dos dentes foi introduzida na rotina dos escolares, sendo os professores, dentista e enfermeiras responsáveis por supervisionar o asseio dos alunos e a escovação, que era demonstrada passo a passo para ser aprendida e adotada, a exemplo da aula prática dada às crianças pelo doutor Campos de Oliveira.

(Oliveira, 1934, p.197).

Figura 2 : Aula sobre higiene dentária 

Apesar do consenso sobre a importância das clínicas dentárias inseridas nas escolas, durante o terceiro Congresso Odontológico Latino-americano (1929) a dentista Beatriz Roberts, representante do governo do Rio de Janeiro, elaborou críticas aos serviços dentários nesse espaço. Mencionando dados estatísticos do Rio de Janeiro, Beatriz Roberts defendeu que o serviço dentário deveria ser realizado longe da escola e buscou demonstrar as vantagens das clínicas dentárias externas ao cotidiano escolar:

fazê-las nas Escolas é antipedagógico, antitécnico e antieconômico. Clínicas e aulas não se casam bem sob o mesmo teto. A criança que vai receber instrução deve estar perfeitamente despreocupada da ideia de dor. Portanto, considero-o antipedagógico, porque perturba a atenção dos escolares, que se interessam pelos que foram, ou vão ser atendidos, ou ainda pelos gritos nervosos de algum paciente relutante ao tratamento. Depois, a retirada, nas horas das aulas, interrompe a marcha dos trabalhos escolares (Roberts, 1929, p.338).

Seus argumentos foram questionados e rejeitados por vários congressistas. O doutor José Álvares da Silva Campos, inspetor-chefe do Serviço Dentário Escolar de Minas Gerais, fez referência a países como Inglaterra, EUA, França e Alemanha para justificar a inspeção dentária infantil nas escolas. Acerca de Minas Gerais, argumentou que a assistência nos dispensários dos maiores centros escolares mineiros “é feita em gabinetes dentários providos de instalações adequadas, instrumentos e materiais especializados” (Campos, 1935, p.29), o que envolvia tanto a inspeção quanto o tratamento dos matriculados. Registrava-se em ficha individual o “desenho” de cada arcada dentária e suas respectivas lesões. Os alunos eram assistidos e inspecionados sem que tivessem de perder aulas.

Destacava ainda o doutor Campos (1929, p.455) que, para atender a população escolar do interior do estado, o Serviço Dentário Escolar de Minas Gerais criara gabinetes móveis que, à semelhança dos gabinetes dentários fixos, davam assistência aos escolares “no início e no meio de cada ano escolar”. Além disso, disciplinava-os mediante “conferências, instruções em aulas, assim como o encargo, às enfermeiras, de promoverem a instrução individual das crianças sobre os cuidados de higiene dentária” (p.455). Como pedagogas da saúde, essas enfermeiras didaticamente detalhavam o processo de asseio corporal e escovação dos dentes. Juntamente com as higienistas escolares, tinham a função pedagógica de cuidar das crianças, incluindo a missão de inspecionar os corpos em busca de vestígios de sujeira nas unhas, pele, pelos, orelhas, pés e boca, procurando por infecções dentárias, cáries, lesões e gengivites, sinais de tuberculose e rastros de doenças. Para tanto, as enfermeiras precisavam reunir vários conhecimentos, desenhando uma anatomia do educando, da sua família e do local de moradia. Assim, pretendia-se que essa influência civilizadora se estendesse aos lares.

Os gabinetes e clínicas dentárias infantis tornaram-se espaços privilegiados para a atuação de dentistas e enfermeiras, nos quais davam aulas e difundiam um conhecimento sobre o corpo e a mente, a sociologia dos direitos e deveres do cidadão, incluindo a semiologia das palavras e das coisas. Propalando conceitos eugênicos e higiênicos, apregoava-se que o corpo infantil dependia da “boa educação”, que garantiria a “nobre raça” (Campos, 1929, p.455-456). Por meio desse conjunto de ações implementado em vários estados buscava-se estabelecer “regimes de verdade”, por intermédio da construção de novos comportamentos com a normatização de padrões de “cuidados de si”.7

Com o objetivo de modelar o sorriso das crianças mediante as características de um dado padrão de normalidade e beleza, o conceito de saúde bucal ultrapassou os limites e fronteiras de instituições odontológicas, adentrando e ganhando legitimidade na cartografia escolar, nas salas de aula, nos livros de ciências, manuais escolares e de civilidade, presentes nos discursos ditados e interditados de professores e funcionários, propiciando um alargamento significativo do seu campo de ação. Também buscou atingir outras inúmeras instâncias da sociedade: a família, o trabalho, sociedades filantrópicas, associações profissionais e humanitárias e as Igrejas.

Em palestra realizada no Rotary Club de Petrópolis sobre a assistência dentária infantil, o dentista Frederico Eyer (1936, p.310) lançou mão de simbologias cristãs, humanitárias e eugênicas para discorrer acerca da formação do povo brasileiro:

A obra da assistência dentária à infância é gigantesca e bem merece o concurso de todos os ‘corações bem formados’. É obra da mais ‘sublime caridade cristã’, e com Ela beneficiando a criança de hoje, acumulamos juros na ‘raça de amanhã, mais forte, mais sadia’, mais otimista e com maior disposição e entusiasmo pela vida e para os altos destinos de nossa pátria. Tudo que pela infância fizermos o faremos para maior glória do nosso Brasil (destaques no original).

Considerava-se uma criança normal a que fosse saudável e tivesse dentes fortes. Essa preocupação não era responsabilidade apenas dos médicos e dentistas, também dos pais e do Estado. Assim, estaria assentada no saber científico médico-odontológico “a formação da nacionalidade, cuidando das crianças de hoje para transformá-las em cidadãos fortes e capazes” (Campos, 1935, p.24). Deveria envolver a família, educadores, governantes, poderes públicos, Igrejas, entidades filantrópicas, odontológicas e médicas, assumindo a função de construir corpos, mentes e bocas sãos.

Mostra-me teus dentes e te direi quem és: os concursos de bons dentes e a pedagogia do sorrir

Diversas estratégias foram utilizadas pelas sociedades odontológicas e pelos inspetores escolares para dar visibilidade à questão dentária, como a realização de cruzadas profiláticas, Semana Dentária, Semana do Sorriso, Cruzada Pró-infância, Campanha dos 28 Dentes,8 Dia do Sorriso, concursos escolares de composição sobre a higiene da boca e concursos de bons dentes.

O Concurso de Bons Dentes foi promovido a princípio (a partir de 1926) pela Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar e, posteriormente, por várias associações e escolas do país. Criado em São Paulo pelo inspetor dentário escolar doutor Antônio Campos de Oliveira, essa iniciativa ganhou visibilidade e passou a ser amplamente divulgada pela imprensa diária, como Diário Nacional, Gazeta de São Paulo e Correio Paulistano:

‘A Tarde da Criança’ promove o concurso de ‘bons dentes’ com o fito de conseguir que os nossos escolares não negligenciem da higiene da boca, que é a porta de entrada de muitas moléstias. Ainda o ano passado, tivemos de noticiar o êxito de tão interessante concurso, a que compareceram 526 crianças de nossas escolas públicas e particulares. Era de ver o entusiasmo de muitas mães ao entregarem os seus filhos aos médicos inspetores e ao inspetor-dentário na ‘inspeção médica escolar’, para o competente exame (Concurso..., 9 fev. 1929, p.2).

Nessa “missão civilizatória” associavam-se agremiações, sociedades filantrópicas e civis, a exemplo do Rotary Club, Damas da Bondade, Liga de Higiene Bucal, Cruzada Pró-infância (fundada em 1930), enfermeiras da Cruz Vermelha, círculos de pais e mestres, além dos grêmios estudantis e caixas escolares. O objetivo era laurear o menino ou menina com o sorriso mais perfeito, a melhor dentição ou que cuidasse melhor da sua cavidade bucal.

Com o intuito de construir uma “raça forte”, o inspetor geral da Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar, Frederico Eyer (1936, p.309), em conferência no Rotary Club, destacava:

Sem bons dentes não há saúde, e pelo cuidado com os dentes pode ser aquilatado o grau de civilização de um povo ... Não há quem, medianamente instruído, ignore o valor e a necessidade do tratamento dos dentes das crianças para a formação de uma raça forte e sadia.

Reforçando a importância dos concursos de bons dentes, a Gazeta de São Paulo veiculou a matéria intitulada “Carta à menina de dentes bonitos do meu bairro”, “escrita” por um jovem identificado como Fábio. O texto articulava beleza e sorriso, amor e sedução, eugenia e concurso de bons dentes.

Vinha eu meditando, com ternura, nesse belo e utilíssimo concurso de Bons Dentes que se vai inaugurar a 3 do corrente em S. Paulo, iniciativa que não é só um capítulo da eugenia, mas constitui também uma ótima página dedicada à poesia feminina, por isso que visa lhe aumentar a sedução e lhe defender a existência. Aí tem você como o seu sorriso não se limita a um motivo de inspiração para quantos poetas venham a ter a ventura de contemplá-lo: ele é ainda uma razão deliciosa para louvar-se o certame que vai ser levado a efeito pelos propagandistas da boa higiene dentária.

Que as outras meninas, bonitas como você, não se esqueçam de que essa higiene, esse culto, esse cuidado quotidiano pela magnífica dádiva que a natureza escondeu no estojo dos seus lábios risonhos são imprescindíveis ao triunfo integral da sua beleza sobre a terra!

Menina do meu bairro, quantas haverá, neste mundo, invejosas do seu divino sorriso! (Carta..., 3 out. 1930, p.2).

Nos finais dos anos 1930 e início da década de 1940, o Concurso Escolar de Composição sobre a Higiene da Boca intitulado “Em busca de um ‘divino sorriso’” ganhou visibilidade em Belo Horizonte, sendo um dos motivos o prêmio para o primeiro classificado: um piano (patrocinado pelo Laboratório Raul Leite) e a publicação da composição nas revistas Era uma vez e Odontólogo.

Nessas cruzadas profiláticas e concursos, pode-se observar certa regularidade discursiva no intuito de “salvar os dentes” da infância. Na solenidade de premiação dos vencedores de dois concursos (Primeiro Concurso Infantil de Bons Dentes9 e Concurso de Composição Escolar), realizada em 25 de outubro de 1942 no Cine Teatro Glória (Belo Horizonte), o palestrante doutor Fausto de Paula Pinto (presidente do Sindicato Odontológico de Minas Gerais), em tom elogioso e laudatório, exaltou os promotores das iniciativas que, “no meio de incompreensões e descrenças, erguem um facho de luz e de bondade, mostrando aos que mal sabem caminhar, a trilha da própria felicidade ... Felizes os promotores do certame que ora se encerra”. Também destacou a importância de “criar para o Brasil homens mais fortes para a defesa de sua integridade e de sua liberdade” (Pinto, 1942, p.30).

O Dia do Sorriso, criado em São Paulo em 1926, foi uma iniciativa do doutor Antônio Campos de Oliveira, que consistia “num agradável pretexto para que todos, despendendo apenas $200, auxiliem eficazmente” na construção da Casa da Criança. Idealizada pela Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas, a instituição cuidaria da saúde de meninos e meninas carentes da capital e do interior cujas escolas não possuíssem gabinete dentário. O Jornal do Comércio noticiou a construção da Casa da Criança, classificando-a como

Notável e utilíssima instituição infantil, que grande benefício há de trazer à infância de S. Paulo. Trata-se de um edifício moderníssimo, localizado em ótimo ponto da nossa cidade, dispondo de quatro andares... atenderá aos alunos dos grupos escolares desprovidos de gabinetes, ou que necessitassem de um tratamento mais acurado ... Deste modo, os dentistas concorrem benemeritamente para a eugenia da raça, modelando o sorriso da infância paulista (citado em Assistência..., 1926, p.234).

Reportando-se às instalações da Casa, o Jornal do Comércio fazia alusão à relação entre infância e eugenia, já que no terceiro andar do edifício se encontrava “otimamente acomodada a sociedade ‘Eugenia’, na qual tomariam parte como organizadores os médicos inspetores escolares e os colegas dedicados à pediatria”. Valorizando e questionando a iniciativa, afirmava o articulista do jornal: “mas como conseguir realizá-la e mantê-la? Simplesmente com uma linda festa – ‘O Dia do Sorriso’?” (citado em Assistência..., 1926, p.234). A odontologia era utilizada recorrentemente para fazer referência à eugenia e purificação da “raça”, à valorização dos mais “fortes” fisicamente, em detrimento das experiências culturais dos sujeitos que também elaboravam estratégias de limpeza do corpo que não as divulgadas pelos meios científicos. Um exemplo disso são os concursos de “bons dentes” e do “sorriso perfeito”, utilizados como estratégias para “limpar” a população. O discurso da eugenia estava presente de modo recorrente nesses concursos.

Na construção de um homem higienizado e eugenizado estava a preocupação com o seu físico e intelecto. Para o pensamento eugênico, a criança, desde pequena, deveria ser esculpida para tornar-se um “adulto perfeito”, uma prática que selecionava os mais fortes: corpo mais forte, dentes mais fortes. Essas propostas de “seleção” dos considerados mais fortes circulou e gerou debates entre médicos, professores e intelectuais, destacando-se, entre seus principais mentores, Renato Kehl.

A eugenia era percebida como uma “ciência nova” que possibilitaria renovação da ordem social por meio do aperfeiçoamento genético-racial e do combate à “degenerescência” da população. Os preceitos da dita “eugenia preventiva” enfatizava as questões relacionadas à puericultura, higiene e saúde pública, incentivando a propagação de hábitos de higiene e o emprego de profilaxias sanitárias como elemento eficiente de regeneração da sociedade (Souza, 2006). Nesse sentido, a eugenia foi orientadora de políticas de saúde e da difusão/inclusão de práticas no cotidiano familiar (Stepan, 2014; Schwarcz, 2011), incluindo a limpeza do corpo (incluindo a boca), com o afastamento dos males que poderiam atacar e debilitar crianças e adultos, que ocupava um lugar central na odontologia brasileira desse momento.

(Crianças..., jun. 1926, p.330).

Figura 3 : Crianças premiadas durante o concurso “O dia do sorriso”. 

Criados com o objetivo de “estimular o cuidado para a conservação dos dentes e consequente profilaxia do meio bucodentário da criança” (Concurso infantil..., 1942, p.26),10 os concursos e semanas do sorriso tornaram-se estratégias pedagógicas para difundir preceitos construtores da infância saudável, divulgando práticas (escovação e cuidados) e o consumo de produtos de higiene bucal (cremes, enxaguantes e escovas dentais), que, aliados a bons hábitos alimentares, possibilitariam a formação adequada de dentes fortes (Homens..., 11 jun. 1926, p.12). Assim, os concursos voltados para a dentição e sorrisos perfeitos respondiam a todo um dispositivo de elaboração de corpos sãos. Nenhuma “obra patriótica, intimamente ligada ao aperfeiçoamento da raça e ao progresso do país, excede esta, devendo constituir, por isso preocupação predominante em toda atuação política verdadeiramente nacional” (Campos, 1935, p.23). Numa convergência de esforços, escolas, clínicas, certames de bons dentes e de sorrisos perfeitos valorizavam a boca saudável, perfeita e moderna, ao mesmo tempo que buscavam modelar mentes patrióticas envolvidas com a simbologia da pátria.

Outra estratégia na construção social do sorriso saudável, perfeito e belo foi estender os concursos para as jovens. A iniciativa foi da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas, para comemorar o Dia do Dentista Latino-Americano. A Gazeta de São Paulo noticiava, no dia 3 de novembro de 1930, o “grande baile” no Salão do Círculo Italiano, durante o qual ocorreria o concurso de bons dentes e mais belo sorriso,

sendo oferecida à senhorita vencedora uma rica medalha de ouro ... a propósito, no dia do dentista, cabem aqui uns conselhos que a todos interessam. Assim, pode-se dizer que é tão grande a importância dos dentes bonitos e bem tratados, que, sem eles, o sorriso nada vale, tornando-se, em muitos casos, até uma desvantagem. É, pode-se dizer, ‘um sorriso que a tela não compra e o palco repele’ (Carta..., 3 out. 1930, p.2; destaques no original).

Com os concursos de “bons dentes” e “mais belo sorriso” extensivos aos jovens, emergiam outras pedagogias do comportamento, (de)marcando novas cartografias e sensibilidades corporais, formas de vivenciar e sentir o corpo, modos de se expressar e se constituir. A subjetivação11 de sentimentos nacionalistas e conceitos de modernidade articulou projetos e ações para crianças, jovens, homens e mulheres que visavam alterar práticas e estéticas de si (corpos, bocas, dentes e sorrisos), suscitando vontades e desejos. Essas novas relações com o corpo ora exposto, ora oculto (no privado e íntimo) “incluem práticas cujo objetivo é reformá-lo e aperfeiçoá-lo, pela utilização de manancial (psico)farmacológico e mecânico. Esses processos dizem respeito, sobretudo, a práticas socioculturais” (Ortega, Zorzanelli, 2010, p.64).

Considerações finais

Nas diversas enunciações discursivas sobre gabinetes dentários escolares, concursos de bons dentes, campanhas de educação dentária escolar e institucionalização do saber odontológico (ementas da disciplina de odontopediatria), a boca da criança apareceu aprisionada ao saber competente do dentista. Como donos de um saber, os dentistas apregoavam a necessidade de cuidados para cura e prevenção dos “males” que atacavam as crianças (cáries, infecções bucais, tuberculose, sífilis, herpes). Também difundiam padrões de saúde e beleza associando os cuidados do corpo com preceitos que incluíam disciplina, regularidade e racionalidade no uso adequado do tempo (Brites, 2000, p.15).

(Gessy, s.d.).

Figura 4 : Anúncio de creme dental Gessy 

Presentes nas campanhas profiláticas e na publicidade de produtos de higiene bucal, os conhecimentos e as recomendações dos dentistas foram decisivos para confirmar a necessidade do uso de pastas, enxaguantes, escovas dentais. O intuito era convencer os consumidores de que os produtos industrializados eram mais eficientes e higiênicos do que os elaborados no ambiente caseiro, suscitando desejos relacionados ao consumo desses produtos.

Por meio de um belo sorriso, o indivíduo buscava se mostrar, seduzir e ser admirado. A exposição da boca se multiplicava em concursos, semanas dentárias, semanas do sorriso e por meio de anúncios nas mídias que criavam o desejo e a necessidade de consumir escovas, fios, enxaguantes e pastas dentais, ideais para limpar profundamente, deixar o hálito sempre fresco e o sorriso mais branco (Botazzo, 2000, p.153). Cada vez mais, e com maior agilidade, alastravam-se tecnologias educativas e anatômicas atreladas à saúde bucal, ampliando a responsabilidade de cada um sobre os “cuidados de si”. Difundia-se o desejo de ter um sorriso esteticamente atraente, despertando no sujeito o direito de “não ter vergonha de sorrir”, para o bem e “maior glória do nosso Brasil” (Campos, 1935, p.153).

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