versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 supl.1 Rio de Janeiro 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE01S114
As manifestações populares que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 trouxeram a saúde para o centro do debate público. Os protestos expuseram limites do Sistema Único de Saúde (SUS), que apesar da grande ampliação da cobertura assistencial, não consegue assegurar serviços de qualidade e padece cronicamente de subfinanciamento e problemas de gestão. Ademais, o modelo de financiamento da saúde acentua desigualdades sociais. A maioria mais pobre enfrenta dificuldades para usufruir o direito universal aos serviços públicos de saúde, previsto na Constituição Federal de 1988. Entretanto, 25% dos brasileiros possuem seguros privados de saúde, mas são beneficiados com forte renúncia fiscal pelo Estado que, sustentado pelos tributos de todos, financia o acesso à assistência geralmente de melhor qualidade para um segmento minoritário e privilegiado 1. O SUS sofre ainda reflexos da (de)formação profissional, especialmente de médicos não preparados para a atenção básica, o que ficou exposto na reação corporativa à importação de profissionais estrangeiros para áreas descobertas no programa Mais Médicos.
Esses problemas assumem configurações específicas no modelo tecnocrático de assistência ao parto, caracterizado pela primazia da tecnologia sobre as relações humanas e suposta neutralidade de valores 2. Nele, subjaz a ideia de passividade das mulheres, imobilizadas durante o parto, enquanto sofrem intervenções por profissionais desconhecidos para abreviar o tempo até o nascimento 3. O uso sem controle de procedimentos desnecessários e danosos é maximizado pela lógica mercantil e pela (de)formação médica, e assume expressão mais visível na crescente epidemia de cesáreas 4.
Os resultados da pesquisa Nascer no Brasil confirmam em âmbito nacional o panorama descrito em estudos locais, e denunciado pelos movimentos de mulheres e de humanização do parto 2. Constituem evidências contundentes das desigualdades socioeconômicas, raciais e regionais na atenção ao parto 5,6,7.
O modelo tecnocrático se manifesta distintamente no SUS e na assistência suplementar, acentuando desigualdades na qualidade do parto hospitalar que atingiu cobertura universal 4. Nos serviços públicos, é frequente a desarticulação entre a atenção pré-natal e ao parto 8, a peregrinação em busca de internação 8, e o uso rotineiro de episiotomia e ocitocina 3,7. Nos serviços privados, a cesariana agendada previamente mesmo entre primíparas alcança a maioria dos partos 4,9,10. Em ambos os setores, não se garante o direito à informação nem se respeita a autonomia das mulheres, fere-se a integridade corporal e nega-se o direito previsto em lei ao acompanhante 6, tornando o parto solitário, inseguro e doloroso 11.
As iniciativas para modificar tal quadro refletem lutas políticas e ideológicas no campo da saúde quanto às alternativas de modelo de atenção, desde a criação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1983, resultante da convergência de propostas do movimento sanitário e do feminismo 12.
O feminismo visa superar a perspectiva materno-infantil e incorporar a noção de mulher como sujeito, ultrapassar sua especificidade reprodutiva, e assumir abordagem ampliada de saúde. A humanização do parto se situa no marco mais geral dos direitos sexuais e reprodutivos, os quais incluem a garantia à maternidade segura, à contracepção e ao aborto 12.
A saúde é central na agenda feminista, questionando-se a biomedicina, que fornece as bases para justificar relações hierárquicas de gênero. As lutas têm se concretizado na ocupação de instâncias de controle social e monitoramento de políticas públicas e na atuação militante em postos de gestão 12.
Todavia, registra-se o crescimento da ação organizada de forças conservadoras e religiosas, no Parlamento e sobre o Governo, ameaçando a laicidade do Estado. No Ministério da Saúde, a influência desses grupos tem resultado em recuo político e fortalecimento do chamado materno- infantilismo 13.
A adoção da estratégia de Rede Cegonha representa simbólica e materialmente o encolhimento da agenda feminista e de construção do SUS. Carrega no nome a dessexualização da reprodução, conferindo ênfase ao concepto 13. Desvincula a atenção ao parto da Política Nacional de Assistência Integral à Saúde das Mulheres (PNAISM) e reforça o materno-infantilismo na definição de prioridades políticas. Obscurece o aborto inseguro em contexto de redução marcante da fecundidade.
A dimensão simbólica não é questão menor, se mantido o atual modelo de financiamento público. A redução da pobreza promove a inclusão de segmentos sociais, ansiosos pelo consumo de bens e serviços, a exemplo do parto cesáreo. As distorções podem se acentuar pela incorporação de “novas consumidoras”, que percebem o acesso à tecnologia como sinal de prestígio social e modernidade 11.
Estão em disputa diferentes projetos de sociedade, quanto à construção do SUS e à equidade de gênero em saúde. Em tal cenário se inserem as oportunidades de mudança da atenção ao parto. As soluções não são apenas técnicas, mas essencialmente políticas. Não há como alcançar transformações sem retomar o projeto de SUS democrático e os pressupostos da Reforma Sanitária de universalidade, integralidade e equidade, que a Constituição incorporou. É imprescindível defender a laicidade do Estado democrático e plural e ressaltar a intersecção entre gênero, classe social, raça/etnia e sexualidade na produção/reprodução de desigualdades sociais em saúde. É imperativo assegurar a humanização da atenção baseada em evidências científicas, mas também baseada em direitos das mulheres, redefinindo práticas e relações interpessoais 2.
É inspirador revisitarmos os anos 1980 e sua radicalidade, repolitizando as necessidades de saúde e voltando a ampliar a agenda para a elaboração e implementação de políticas públicas voltadas às mulheres.