versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.21082018
Os discursos sobre o cuidado em saúde são cada vez mais dominados por uma linguagem gestionária, que enfatiza as dimensões organizacionais ligadas ao “sistema de saúde”. Os impactos da globalização neoliberal fazem-se, assim, sentir de formas diferenciadas: na retracção das políticas públicas, na expansão do ideal do homo economicus a todas as esferas do social e do político, no obscurecimento de subjectividades, interacções múltiplas e formas de resistência.
Deste modo, torna-se pertinente encontrar formas de leitura problematizadoras que permitam revelar a complexidade de actores e fluxos que sustentam o cuidado em saúde. O artigo de Breno Fontes sublinha a importância do “paradigma das redes” para responder a este desafio. Eu acrescentaria a contribuição de uma outra abordagem – a do “paradigma do cuidado”.
A opção pelo “paradigma do cuidado” implica reconhecer que este é transversal na vida e no quotidiano de todas as pessoas e não só dos/as doentes. Vários desafios se impõem ao fazermos esta opção1: reconhecer a vulnerabilidade de todos/as nós, ao longo do ciclo de vida2,3; reconhecer que quem é cuidado também cuida4; prestar atenção aos detalhes da vida5; construir uma linguagem diferente, que ultrapasse os modelos tradicionais da bio-medicina e da assistência social, que compartimentalizam as necessidades e objectificam os sujeitos.
A conjugação desta abordagem com uma perspectiva reticular apresenta diversas potencialidades heurísticas: permite olhar simultaneamente para a forma e o conteúdo das relações sociais; permite colocar o sujeito no centro, adoptando a integralidade como princípio norteador6; permite questionar conceitos como o de “governança”, revelando a complexidade de articulações entre actores, entre público e privado, entre Estado, mercado e sociedade civil.
O trabalho de Esping-Andersen – The Three Worlds of Welfare Capitalism (1990)7 – marcou grandemente as reflexões sobre a produção de bem-estar nos finais do século XX. O seu conceito central é o de “desmercadorização”, ou seja, a capacidade que o sistema confere ao indivíduo de aceder a condições de vida razoáveis sem ter que vender a sua força de trabalho no mercado. O autor agrupa os países industrializados em três modelos: o regime liberal/residual (que inclui os Estados Unidos, Canadá e Austrália), no qual o grau de desmercadorização é escasso; o regime conservador-católico/corporativista (que inclui Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália e França), que se caracteriza por um nível moderado de desmercadorização; e o regime social democrata/universalista (que corresponde aos países do Norte da Europa e à Suécia em particular), no qual o nível de desmercadorização é elevado.
As críticas à tricotomia de Esping-Andersen são inúmeras e diversificadas. Não cabe aqui o seu exame exaustivo, para uma síntese das críticas ao trabalho de Esping-Andersen cf. Arts e Gelissen (2002). No entanto, uma das linhas de discussão revela-se pertinente para o presente debate. A tipologia dá escassa atenção aos países do Sul da Europa, tratando-os como “mistos”. Em oposição a esta perspectiva, diversos autores defenderam que certas características destes países, permitem identificar um quarto tipo de regime – um “Modelo do Sul” (no qual se enquadram Portugal, Itália, Espanha e Grécia). Ferrera8 caracteriza-o através de quatro traços fundamentais: 1) um sistema altamente fragmentado e corporativista, onde coexiste uma protecção generosa para alguns sectores da população com a ausência total para outros; 2) o estabelecimento de um Sistema Nacional de Saúde fundado sobre princípios universalistas; 3) uma baixa penetração do Estado na protecção social com uma complexa articulação entre actores e instituições públicas e privadas; 4) a persistência do clientelismo no acesso à protecção social do Estado.
Relativamente à família, a excepcionalidade do Modelo do Sul situa-se no facto de a manutenção dos modelos tradicionais parecer ser mais uma questão de sobrevivência do que de escolha – na escassez de alternativas, a família é o recurso a que se pode sempre apelar9,10.
O trabalho de Gough et al.11 permite mostrar como os países europeus partilham muitas das características com os países do hemisfério oposto, ampliando o conceito de “sul” utilizado nas análises de carácter eurocêntrico. A contribuição de Barrientos12 sobre a América Latina analisa as reformas levadas a cabo em diversos países do continente sul-americano, identificando uma passagem de um regime “conservador-informal” para um regime “liberal-informal”. O autor identifica formas de articulação entre Estado, mercado e família que se aproximam bastante dos países do sul da Europa.
Em geral, na saúde, a tendência predominante na definição de cuidado constrói-se em torno da oposição entre cuidado formal e informal13. Um olhar mais atento relativiza esta distinção. No quotidiano, a diferenciação faz-se pelo tipo e a intensidade de cuidados prestados, que revelam níveis de envolvimento distintos entre cuidadores/as formais e informais1. Os estudos são claros neste domínio: quanto mais grave for a situação de dependência e mais exigentes forem as necessidades, maior é o envolvimento da família13,14. Especificamente, nos países do Sul, quanto mais exigente é o tipo de apoio, menos respostas existem, e maior é a responsabilização da esfera informal15.
O trabalho que tenho vindo a realizar nas áreas da doença e da deficiência permite verificar que, quando observamos as trajectórias de vida das pessoas e analisamos a sua rede social, vemos na família o principal prestador de cuidados: na procura de informação, na busca de um diagnóstico, na construção de itinerários terapêuticos, no cuidado quotidiano, permanente e de longa duração1,16,17.
A prestação formal de cuidados apresenta, muitas vezes, um quadro de intervenção que revela escassa capacidade para integrar as especificidades individuais, produzindo uma atenção normalizada e normalizadora, que dificilmente atende às circunstâncias de vida das pessoas com algum diagnóstico ou doença. A atenção da família tende a contrariar este modo de agir. O cuidado prestado pela rede familiar, parte das necessidades de quem é cuidado15. Se o cuidado biomédico tem dificuldades em lidar com as especificidades, o cuidado familiar, ao assentar na atenção à singularidade, permite integrar a diferença e responder-lhe adequadamente1.
Como sublinha o texto de Breno Fontes, uma abordagem reticular à provisão de cuidados de saúde faz emergir a importância de um conjunto vasto de actores (doentes, famílias, profissionais de saúde, profissionais da assistência social, associações, Estado, mercado, comunidade), de saberes (leigos e científicos), de práticas (formais e informais) e de relações (sociais, materiais e simbólicas).
Olhar para o “Modelo do Sul” tem diversas vantagens heurísticas: permite complexificar as abordagens, dando conta de um campo reticular onde circulam actores e fluxos múltiplos; visibiliza um modelo hoje sujeito a fortes constrangimentos, devido às pressões demográficas, económicas e políticas; ao revelar a importância dos laços de parentesco, torna necessária a preocupação sobre o cuidado dos “sem família”. A crise trouxe para o centro dos debates políticos e sociais a questão da partilha de responsabilidades entre as solidariedades públicas e privadas e, como tal, a (re)descoberta da importância da família como esfera de protecção social. As virtualidades do cuidado familiar não podem ser uma desculpa para a retracção da provisão estatal, nem para um recuo dos sujeitos do espaço da cidadania para o espaço doméstico.
Estas pistas de reflexão remetem-nos para a importância de (re)pensarmos a racionalidade política estatal moderna, a construção do indivíduo, a macropolítica e a micropolítica, o governo dos outros e o governo de si – não serão estes bons motivos para abandonarmos o conceito de governança e recuperarmos o conceito de governamentalidade18,19?