versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.3 São Paulo 2018 Epub 17-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018rw4175
O advento dos medicamentos biológicos revolucionou o tratamento de diversas doenças. Seu processo de produção é complexo e oneroso, uma vez que é baseado em organismos vivos que produzem grandes e complexas estruturas moleculares, e pequenas alterações na concepção e execução do processo podem afetar diretamente seu perfil de eficácia e segurança.(1) O processo é tão crítico para o produto final que a maioria das empresas obtêm patente do processo de produção e não necessariamente do próprio medicamento biológico.
O término do período de proteção de patentes de vários medicamentos biológicos permite que diversas empresas desenvolvam e comercializem tais produtos. Devido às particularidades do processo de produção, que não é totalmente compartilhado e divulgado pela empresa originadora, a concepção de uma cópia idêntica é praticamente impossível, tornando, assim, a experiência adquirida com os medicamentos genéricos (obtidos por síntese química) não aplicável aos medicamentos biológicos. Este cenário origina questionamentos e preocupações relevantes relacionadas com a eficácia, a segurança e a imunogenicidade destes produtos.(1-3)
Como os medicamentos biológicos consomem parte substancial dos orçamentos nacionais de saúde, é alta a pressão financeira para se adotarem cópias muito semelhantes, denominadas biossimilares.(3) Diante destes fatos, agências reguladoras e associações médicas de todo o mundo enfrentam o desafio de estabelecer regras para a determinação do grau de similaridade de um biossimilar com seu produto de referência, de forma a assegurar que apresentem o mesmo perfil de qualidade, eficácia e segurança, permitindo sua aprovação e comercialização.
A fim de discutirmos os tópicos mais relevantes sobre as particularidades referentes à introdução de biossimilares no mercado brasileiro, foi realizada uma pesquisa qualitativa nas principais bases de dados de artigos científicos publicados (PubMed e LILACS) e de organizações da saúde e autoridades sanitárias nacionais e internacionais (Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA -, Ministério da Saúde, Organização Mundial da Saúde - OMS -, Food and Drug Administration - FDA - e European Medicines Agency - EMA).
Em 2009, a OMS publicou o Guidelines on evaluation of similar biotherapeutic products (SBP),(4) que é utilizado por diversas agências reguladoras como base para elaboração de suas regulamentações. Para avaliar a similaridade, a primeira etapa são as caracterizações físico-química e biológica completas do biossimilar, em uma comparação direta com o produto de referência.
Por outro lado, além desta caracterização físico-química, ligações com receptores celulares são avaliadas, com base em ensaios e estudos com animais, incluindo farmacodinâmica e toxicidade. Os métodos usados para determinar a comparabilidade entre os biossimilares e seu produto de referência devem ser suficientemente seletivos e específicos para detectar diferenças entre os dois. A importância de tais diferenças só pode ser verificada em estudos pré-clínicos e clínicos. Com isso, uma abordagem baseada no risco tem sido recomendada para avaliação da biossimilaridade,(5) quando esse é diminuído ao se pré-fixar, com relativa proximidade, a estatística de comparação entre o inovador e o biossimilar. Mais ainda, diferenças em relação ao produto inovador devem ser detectadas por estudos independentes de desfecho de fase III, precedidos de estudos clínicos obrigatórios de farmacocinética e de farmacodinâmica, em formato de fase I.(5) Por fim, a via de administração e a posologia de um biossimilar também devem ser as mesmas que as do produto de referência.
O biossimilar deve ter eficácia e segurança semelhantes às do produto referência, que são demonstradas pela realização de estudos clínicos randomizados, duplo-cegos e controlados (com o produto referência). O desenho preferido para a comparação dos dados em tais estudos é o de ensaio de equivalência (com determinação de limites comparativos, superior e inferior). Em outras circunstâncias, no entanto, justifica-se um ensaio de não inferioridade.(5)
A margem de equivalência/não inferioridade deve ser previamente especificada e justificada às autoridades reguladoras, com base na relevância clínica, e as diferenças detectadas nos efeitos do tratamento devem ser aceitáveis para a comunidade médica, sem qualquer impacto negativo no atendimento ao paciente.
Os agentes biológicos são, muitas vezes, imunogênicos. Isto torna necessária a avaliação do potencial de imunogenicidade de um biossimilar e, consequentemente, de sua segurança e eficácia, com a devida determinação da prevalência de anticorpos antidroga. Tal avaliação deve ocorrer também com o produto de referência.(6)
Após a comprovação de biossimilaridade, ainda restam algumas questões controversas, como a extrapolação de indicações, a nomenclatura da nova medicação e a intercambialidade, todas baseadas no fato de os produtos não serem moléculas idênticas.
A extrapolação para uso nas demais indicações é um procedimento permitido pelo FDA e EMA, desde que o mecanismo de ação seja o mesmo nas indicações consideradas, e a indicação extrapolada não inclua população pediátrica. No entanto, isto causa diferentes posições entre os países, já que a maioria das doenças tratadas com medicamentos biológicos não apresenta patogenia totalmente conhecida, impossibilitando a demonstração de que o mecanismo de ação é o mesmo nas diferentes indicações.(7,8)
A farmacovigilância após comercialização também é fundamental para identificar e monitorar eventos adversos raros ou incomuns, além de questões relacionadas à eficácia do produto. No entanto, o processo de farmacovigilância pode ser bastante afetado pela não definição da nomenclatura dos produtos biossimilares. A utilização do nome do princípio ativo (como é feito com os medicamentos genéricos) não se aplica aos biossimilares, que são moléculas muito semelhantes, porém, não idênticas. Atualmente, para contornar esta questão, tanto a OMS quanto o FDA recomendam que seja adicionado um qualificador biológico (BQ - biologic qualifier) ao nome genérico do produto de referência, possibilitando a distinção entre a referência e o biossimilar em questão.(6,9,10)
A comprovação da biossimilaridade não indica, no entanto, que o produto seja intercambiável e ainda não há definições estabelecidas pelas agências reguladoras sobre o tema. Tal fato fez com que a EMA deixasse a decisão para cada um de seus países-membros, de maneira autônoma, uma vez que isto pode afetar a prescrição do médico. Por outro lado, o FDA vem exigindo mais dados para sua aprovação.
Além disso, também existe a chamada “substituição automática”, que ocorre no momento da dispensação do medicamento. Se aprovada, ela permite a substituição de um medicamento por outro, sem que haja o conhecimento do prescritor e do paciente, dificultando imensamente a identificação do produto causador de possíveis eventos adversos ocorridos ao longo do tratamento.(11)
Apenas em 2010, a ANVISA publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 55/2010, que aborda este assunto, estabelecendo critérios para a aprovação de biossiomilares no país. Anteriormente, os produtos eram aprovados sem regulamentação específica, e, a partir de 2002, as autoridades passaram a exigir a realização de estudos clínicos para renovação de registro de produtos biológicos em comercialização.(12) A RDC 55/2010 prevê duas vias para a aprovação de biossimilaridade: uma denominada “comparabilidade” e outra, “desenvolvimento individual”.(13)
Nesta mesma resolução, a nomenclatura utilizada para os biossimilares, ao contrário da maioria dos estudos científicos, chama o biossimilar de “produto biológico” e o produto de referência “biológico novo”, o que gera confusões.(13) A via comparativa é quase idêntica àquela descrita no documento da OMS, que classifica um Produto Bioterapêutico Similar (PBS), ou seja, é mais rigorosa e requer estudos comparativos de fase I e III em relação ao Produto Bioterapêutico de Referência (PBR), além de permitir a extrapolação para outras indicações. A via de “desenvolvimento individual” dispensa exercício de comparabilidade com dossiê reduzido, o que gera preocupação com relação à sua utilização, principalmente na regulamentação dos biossimilares de anticorpos monoclonais. Porém, a extrapolação das indicações, um importante e polêmico ponto sobre biossimilares, não é permitida por esta via.
Assim, as cópias que são licenciadas usando o caminho de comparabilidade podem ser realmente denominadas “biossimilares”.(13) O tabela 1 demonstra um comparativo geral entre as vias pela RDC 55/2010 e aquelas recomendadas no documento da OMS.
Tabela 1 Comparação das recomendações da Organização Mundial da Saúde e as exigências brasileiras, nas duas vias de aprovação para biossimilares
Organização Mundial da Saúde | Brasil - via individual | Brasil - via da comparabilidade | |
---|---|---|---|
Química, manufatura e controle de documentação | Somente dados comparativos | De acordo com os padrões de desenvolvimento | Somente dados comparativos |
Estudos pré-clínicos | Somente dados comparativos com o produto de referência | Dados comparativos, com algumas exceções | Dados comparativos com o produto de referência |
Estudos clínicos em fase I | Dados comparativos de farmacocinética | Não há exigência de ser comparativo | Dados comparativos de farmacocinética |
Estudos clínicos em fase III | Dados comparativos de eficácia e segurança, teste em uma doença considerada modelo de sensibilidade para fins comparativos | Dados comparativos, com algumas exceções | Dados comparativos de eficácia e segurança, similar às orientações da Organização Mundial da Saúde |
Extrapolação de indicações | Sim | Não | Sim |
Intercambialidade | Sugere avaliação de dados para intercambialidade | Não | Não se manifesta |
Nomenclatura de biossimilares | Sugere Denominação Comum Internacional seguido de quatro letras aleatórias | Não definido | Não definido |
Sistema de farmacovigilância | Robusto, similar ao do produto de referência | De acordo com os padrões de desenvolvimento | Robusto, similar ao do produto de referência |
Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) é um programa entre laboratórios públicos nacionais e laboratórios detentores de tecnologia, sejam nacionais ou estrangeiros, com a finalidade de obtenção de conhecimento, capacitação profissional e transferência de tecnologia, para produção local, de medicamentos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS) a um custo reduzido.(14)
Recentemente, em 2013, o programa foi ampliado com a aprovação de diversas PDP de produtos biológicos de alto custo, com a possibilidade de preço inferior ao praticado no mercado privado. O regulamento do programa de PDP foi aprimorado em 12 de novembro de 2014, por meio da publicação de uma nova portaria, a de número 2.531 de 2014, que redefiniu os critérios e as regras para o estabelecimento e monitoramento de PDP.(15)
Estima-se que os benefícios financeiros deste programa sejam enormes, visto que 50% do orçamento público anual de medicamentos do Ministério da Saúde são consumidos por este grupo de medicamentos (como adalimumabe, etanercepte e infliximabe, em ordem decrescente), atendendo a um número bem menor de pacientes quando comparados a medicamentos para diabetes e hipertensão.(16)
As propostas do PDP são elaboradas em conjunto entre a empresa detentora da tecnologia e o laboratório público, sendo apresentadas pelo laboratório público ao setor de insumos do Ministério da Saúde (Secretaria de Ciência Tecnologia e Insumos Estratégicos) em períodos específicos do ano. Os projetos incluem informações sobre os participantes, o produto, seu histórico de desenvolvimento, processo produtivo e tecnologia empregada, assim como os investimentos necessários.(15)
O processo decisório é realizado por meio de um rito descrito na portaria 2.531, que inclui análise técnica, feita por um Comitê Técnico de Avaliação, com relatório encaminhado para aprovação pelo Conselho Deliberativo, e cujos resultados são anunciados em reuniões do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS).(15) De acordo com a portaria 2.531, a duração da PDP não pode exceder 10 anos. Um ponto importante é que a portaria também determina a obrigatoriedade da transferência do banco de células mestre do produto original à instituição pública participante na PDP, para armazenamento e futura utilização na manufatura do produto.(15)
Para que a instituição pública no Brasil tenha acesso a toda a tecnologia e o apoio necessário para a fabricação do biológico, o Ministério da Saúde irá adquirir o biológico pronto, exclusivamente do fabricante, como parte do desenvolvimento do projeto da PDP, incluindo o registro na ANVISA. A primeira aquisição é iniciada após a execução do contrato de transferência de tecnologia entre a empresa detentora e o laboratório público, e aquisições subsequentes podem ocorrer somente após comprovação do início da transferência de tecnologia para o laboratório público.
Dessa forma, as PDP parecem oferecer um acordo de vantagens mútuas, tanto para o governo quanto para o laboratório privado. Ao primeiro, estabelece-se um fluxo de desenvolvimento biotecnológico, que possibilita a potencial redução de custos e a autossuficiência na produção, enquanto, ao segundo, garante-se a exclusividade da venda do produto durante a transferência da tecnologia no prazo estabelecido.
O primeiro anticorpo monoclonal a fazer parte de uma PDP e de uma transferência de tecnologia tem como parceiros o laboratório privado Janssen-Cilag Farmacêutica Ltda., que é detentor da tecnologia, a Bionovis S.A., uma empresa privada produtora nacional de biotecnologia, e o laboratório público Bio-Manguinhos. O produto biológico é o Remicade® (infliximabe), que já está no mercado brasileiro desde 1998.(17) Segundo dados do próprio Bio-Manguinhos, mais de 80% dos frascos de infliximabe adquiridos pelo Ministério da Saúde em 2015 vieram por meio deste programa, o que se reflete em um total aproximado de 180 mil frascos, a um custo de R$175 milhões.(17)
A Bionovis SA. ficará responsável pela produção no setor privado. Esta empresa é uma joint venture entre os laboratórios Aché, EMS, Hypera Pharma e União Química Farmacêutica Nacional S.A, em uma fábrica em construção na cidade Valinhos (SP). Deve-se chamar a atenção ao fato de que o mercado de escolha do tratamento sofrerá grandes transformações com o advento dos biossimilares e das pequenas moléculas de uso por via oral (terapias alvo), uma vez que tais medicações já estão incluídas ou, ao menos, sendo consideradas para inclusão nos chamados Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT).(17)
Outros produtos biológicos, também sujeitos a uma PDP, são biossimilares de biológicos inovadores amplamente utilizados e estabelecidos no mercado brasileiro. Eles incluem o rituximabe e o adalimumabe, para os quais foram estabelecidas PDP entre outros laboratórios públicos e empresas detentoras de tecnologia e seus parceiros privados nacionais.(16) É o caso da empresa nacional Orygen Biotecnologia, outra joint venture, entre a Eurofarma e Biolab, que tem como parceiro na transferência de tecnologia o laboratório Pfizer, e a participação dos laboratórios públicos nacionais Bahiafarma (infliximabe e rituximabe) e Bio-Manguinhos (adalimumabe). Além das PDP já citadas, há outra voltada ao bevacizumabe, um importante produto oncológico, também em parceria com Bio-Manguinhos.(17)
O primeiro biossimilar a ser comercializado no Brasil foi o do anticorpo monoclonal infliximabe, com o nome Remsima, disponível desde 2016, porém sem acesso ao mercado público por meio de PDP. Apesar de ter sido o primeiro biológico com bom perfil de eficácia e segurança em indicações nas áreas da reumatologia, dermatologia e gastrenterologia, sua indicação pelos especialistas vem sofrendo sensíveis quedas, tanto no Brasil como no exterior, possivelmente devido à administração por acesso endovenoso.
O biossimilar de etanercepte desenvolvido sob o rigor das agências regulatórias de excelência FDA e EMA já está aprovado na Europa sob o nome comercial Benepali, e como Brenzys no Canadá, Austrália e Coreia.(18,19) Ao contrário das intenções de cópias presentes em outros mercados latino-americanos (Etanar e Infinitam), este biossimilar deve ser introduzido no Brasil pelo laboratório Samsung-Bioepis, uma joint venture de origem coreana, europeia e norte-americana, com expectativa de distribuição no Brasil pelo laboratório Merck Sharp & Dohme. No entanto, devido a acordos comerciais globais entre os produtores originais e seus parceiros, o biossimilar para etanercepte atualmente não integra o programa de PDP e pode ser disponibilizado para o mercado público por meio das vias comuns de licitações e compras, como ocorre com os demais produtos não integrantes do programa de PDP.
As características inerentes dos produtos biológicos não permitem que a experiência adquirida com os medicamentos genéricos seja utilizada na disponibilização das “cópias”, denominadas de biossimilares. Diversas questões e preocupações surgiram ao longo do tempo, algumas ainda pendentes e não claramente resolvidas. Enquanto se espera que a comercialização dos biossimilares reduza os custos usualmente altos dos tratamentos com produtos biológicos, esta deve ser feita de maneira que não haja impacto negativo para o paciente, em termos de segurança e eficácia. Um processo de farmacovigilância após a comercialização, possibilitando a diferenciação e os efeitos dos produtos utilizados, referência ou biossimilar, é fundamental para este objetivo.
As agências reguladoras estão se adaptando conforme mais dados ficam disponíveis, e o Brasil também vem atualizando suas regulamentações, não sendo muito diferente das internacionalmente implantadas. Além das regulamentações para aprovação e monitoramento, o Ministério da Saúde desenvolveu um plano para melhorar o acesso aos produtos, em que a nacionalização da produção de um biológico poderá trazer economia ao país, possibilitando sua aquisição a um preço reduzido. Potencialmente, tal fato tem boas chances de causar um efeito positivo sobre a balança comercial brasileira, gerando impostos e divisas ao país.
Mais importante ainda será o impacto sobre a cadeia produtiva, envolvendo fornecedores de insumos, matérias-primas, equipamentos, geração de empregos, qualificação de mão de obra local para garantir a qualidade na produção do medicamento, bem como investimentos em infraestrutura.
A introdução recente de biossimilares criou um novo contexto, exigindo o desenvolvimento de novas regulamentações e processos comerciais. Várias questões ainda estão pendentes, e as autoridades reguladoras devem monitorar cuidadosamente e adaptar seus procedimentos, por conta do surgimento de novos dados. Atualmente, a situação no Brasil se encontra harmonizada com a mundial.