versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.3 São Carlos jul./set. 2018
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1184
O ambiente domiciliar é onde ocorre a realização de tarefas rotineiras e cotidianas que incluem a preparação de refeições, limpeza e reparos domésticos, o cuidado com os objetos pessoais e com aqueles comuns ao grupo familiar, bem como atividades de auxílio aos demais membros da família. O aprendizado e sucesso na participação dessas tarefas, por sua vez, é resultado das interações entre as características da criança, do ambiente e da tarefa (LAW et al., 1996; ROGOFF, 2003). Dessa forma, a participação constitui-se em um importante indicador de como as relações entre pessoa, ambiente e tarefa estão acontecendo e de como esses fatores se configuram em barreiras ou facilitadores no processo de preparação da criança para uma vida independente.
O desempenho regular das tarefas domésticas possibilita o desenvolvimento de habilidades necessárias para uma maior independência na vida diária e na comunidade, estimulando habilidades que favorecem a autodeterminação, o planejamento, a tomada de decisões e a resolução de problemas (DUNN, 2004). Essas características são estimuladas pelos desafios e oportunidades vivenciadas no dia a dia, que otimizam a aprendizagem de tarefas através da transferência gradual de responsabilidade passada de pais para seus filhos (GOODNOW, 1988; ROGOFF, 1996; HARR; DUNN; PRICE, 2011).
A participação em tarefas domésticas é um tema que vem sendo estudado ao longo dos últimos trinta anos por pesquisadores das áreas da psicologia e das ciências sociais (GOODNOW, 1988, 1996; ROGOFF, 2003). Inicialmente, esses pesquisadores tinham por objetivo investigar a participação da criança em casa e como isso afetava o seu desenvolvimento (WHITE; BRINKERHOFF, 1981; GOODNOW, 1988; GOODNOW et al., 1991; BOWES; FLANAGAN; TAYLOR, 2001). Posteriormente, as investigações se estenderam também ao campo da saúde, para compreender como as diversas condições interfeririam no processo de aprendizagem das tarefas domésticas (DUNN, 2004; DUNN et al., 2009a, 2009b; DUNN; GARDNER, 2013).
No caso de crianças com desenvolvimento atípico, como no Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o processo de ensinar e aprender as tarefas domésticas tende a ser um pouco diferente, sendo a transferência de responsabilidade altamente guiada pelos pais, cuidadores ou profissionais de saúde (DUNN, 2004). Em geral, essas crianças têm menos oportunidades de participar das tarefas domésticas, em comparação a crianças com desenvolvimento típico (DUNN, 2004). Uma das razões para essa realidade pode estar relacionada à falta de tempo dos cuidadores para acompanhar as crianças em processo que demanda repetição e reforços, ou mesmo pela crença de que seus filhos não são capazes de realizá-las (HARR; DUNN; PRICE, 2011).
Estudos compararam os padrões de participação de crianças com desenvolvimento atípico (DUNN; GARDNER, 2013), tais como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (DUNN et al., 2009a, 2009b), Síndrome de Down e Paralisia Cerebral (AMARAL et al., 2014) ao de crianças com desenvolvimento típico. Esses estudos demonstraram que o desempenho das tarefas ocorre de modo semelhante, no entanto, as crianças com TDAH tendem a ser mais dependentes de assistência dos pais quando comparadas com seus pares. Fatores particulares da criança e socioambientais como a idade, presença de um irmão mais velho e a importância dada pelos pais ao envolvimento na rotina familiar foram preditivos de aumento no desempenho nas tarefas domésticas (DUNN et al., 2009b).
Crianças com TDAH podem apresentar dificuldades em iniciar e manter a realização de tarefas de cuidado pessoal, de cuidados domésticos e de socialização (ENGEL-YEGER; ZIV-ON, 2011; GARNER et al., 2013). A presença de prejuízos em mais de um ambiente, tais como escola e casa, é uma característica essencial para diagnóstico de TDAH (AMERICAN..., 1994). Dessa forma, a compreensão de como se dá a participação no ambiente doméstico pode ser informativo sobre a sua funcionalidade, bem como sobre as acomodações e estratégias realizadas pela família para possibilitar o engajamento dessas crianças na rotina familiar. O acesso às tarefas, a quantidade de assistência disponibilizada e o quanto a criança é responsabilizada por tarefas de natureza pessoal ou familiar são aspectos que podem se tornar também marcadores importantes do processo de desenvolvimento da criança e sobre o curso de seu diagnóstico.
É relativamente comum que crianças com TDAH apresentem comorbidades psiquiátricas associadas, cujos sintomas podem agravar ainda mais os prejuízos funcionais e ser um fator limitante para o acesso dessas crianças às oportunidades de participação no ambiente domiciliar (MENDES et al., 2016). Além disso, pais de crianças com TDAH são mais susceptíveis a desenvolver problemas psiquiátricos como depressão e ansiedade, e também apresentar quadro clínico de TDAH, o que pode impactar diretamente as relações entre a criança e seus cuidadores, favorecendo o uso de estratégias ineficientes e estilos parentais inconsistentes (CUSSEN et al., 2012). Por fim, sendo a casa um contexto de referência primária de participação infantil (AMARAL et al., 2012) e em se tratando do TDAH, com toda sua complexidade e vulnerabilidade aos fatores ambientais, a informação sobre a participação doméstica e a relação entre criança e cuidador pode nortear ações de intervenção importantes nessa população.
Diante do exposto, buscou-se realizar uma revisão sistemática da literatura para investigar o conhecimento científico acerca da participação doméstica de crianças e adolescentes com TDAH e implicações na prática clínica.
Foi realizada uma revisão sistemática seguindo as etapas de construção previstas: definição da pergunta norteadora da pesquisa, estratégia de busca para seleção e extração dos dados, avaliação da qualidade metodológica, síntese dos dados, avaliação da qualidade das evidências e redação dos resultados (PEREIRA; GALVÃO, 2014). As questões norteadoras desta revisão foram: Como acontece a participação em tarefas domésticas de crianças com TDAH? Quais são as potenciais implicações desse tema para a prática clínica? Para a busca, foram utilizados o descritor presente no Medical Subject Headings (MeSH): “attention deficit disorder with hyperactivity”, e as seguintes palavras-chave consideradas relevantes para busca dos artigos relacionados ao tema: “ADHD”, “household chores” e “household task”. Todos os descritores e palavras-chave usados em língua inglesa e foram combinados segundo os operadores AND e OR, nas respectivas plataformas PubMed e base de dados Scopus (Tabela 1). Os critérios de inclusão foram: estudos sobre participação doméstica de crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH, idade entre 6 e 17 anos, em inglês, indexados nas bases Scopus e no PubMed. Não houve delimitação de ano de publicação. Foram excluídos estudos que não estavam disponíveis em suas versões completas.
Tabela 1 Estratégias de busca.
Base de dados/ Plataforma | Estratégia de busca |
---|---|
PUBMED | (“attention deficit disorder with hyperactivity”[MeSH Terms] OR “attention deficit disorder with hyperactivity”[All Fields] OR “ADHD”[All Fields]) AND (“household chores”[All Fields] OR “household task”[All Fields]) |
SCOPUS | ALL ((“attention deficit disorder with hyperactivity” OR “attention deficit disorder with hyperactivity” OR “ADHD”) AND (“household chores” OR “household task”)) |
Todos os artigos identificados pelas estratégias de busca foram avaliados pela leitura de seu título, resumo e, quando necessário, pela leitura do conteúdo, para auxiliar na seleção de artigos que fossem elegíveis conforme os critérios de inclusão adotados previamente. O mesmo procedimento foi realizado por dois pesquisadores independentes, que após a inclusão dos estudos para síntese compararam seus achados. Havendo discordância entre dados, um terceiro pesquisador foi eleito para juiz da seleção final dos estudos. Para os estudos elegíveis foram obtidos textos completos.
Os textos disponíveis foram lidos criteriosamente e analisados minuciosamente, conforme o modelo do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses - PRISMA (LIBERATI et al., 2009; GALVÃO; PANSANI; DAVID, 2015). Foi elaborado um banco de dados que serviu para categorização das informações dos artigos, seguindo a mesma sequência de numeração dos estudos selecionados (Tabela 2). As informações foram divididas nas categorias: amostra, objetivos, resultados principais e implicações para a prática clínica (Tabela 3).
Tabela 2 Estudos selecionados para revisão sistemática.
TÍTULO | AUTOR(ES) | MEIO DE PUBLICAÇÃO | |
---|---|---|---|
1 | Validation of the CHORES: a measure of school-aged children’s participation in household tasks. | Dunn (2004) | Scandinavian Journal of Occupational Therapy |
2 | Household Task Participation of Children With and Without Attentional Problems. | Dunn et al. (2009a) | Physical and Occupational Therapy in Pediatrics |
3 | Factors Associated with Participation of Children With and Without ADHD in Household Tasks. | Dunn et al. (2009b) | Physical and Occupational Therapy in Pediatrics |
4 | Household task demands for quiet and focused behavior facilitate performance by ADHD youth. | Mendes et al. (2016) | Arquivos de Neuro-Psiquiatria |
Tabela 3 Categorização para análise dos estudos.
Amostra | Objetivos | Resultados principais | Implicações para a prática clínica | |
---|---|---|---|---|
1 | 19 crianças sem deficiência e 13 crianças com deficiências físicas, de aprendizagem (incluiu crianças com TDAH) ou de comportamento, com idade entre 6 e 11 anos | Avaliar as propriedades de medição do instrumento Children Helping Out: Responsibilities, Expectations, and Supports (CHORES) se são adequadas para medir a participação doméstica de crianças na idade escolar. | CHORES é um instrumento que tem forte confiabilidade e validade. A variação no desempenho das tarefas das crianças e os níveis globais de assistência apoiam a utilidade desta medida para captar as diferenças entre as crianças na extensão da sua participação. Resultados sugerem que crianças sem deficiência participam de mais atividades e são mais independentes do que crianças com deficiência. A maioria dos pais considerou a participação doméstica importante e estavam satisfeitos com o desempenho dos filhos em casa. | Uma avaliação de contexto domiciliar, no que tange à realização das tarefas domésticas, é importante para promover discussão entre famílias, crianças e profissionais em torno das expectativas, apoios e barreiras existentes nesse contexto. Além disso, ajuda os profissionais e as famílias com a concepção e planejamento de intervenção para uma vida futura mais independente dessas crianças. |
2 | 22 crianças com TDAH e 22 crianças sem TDAH, na idade entre 9 e 11 anos. | Examinar os padrões de participação nas tarefas domésticas de crianças com e sem TDAH. | A média dos escores de desempenho nas tarefas domésticas não distinguiu entre os grupos. Para a assistência, pais de crianças com TDAH reportaram maior necessidade de ajuda para a realização das tarefas domésticas, em comparação ao grupo sem TDAH. Em relação a tarefas que as crianças realizam mais independentemente, por iniciativa própria ou supervisão, conforme avaliado pelo CHORES, crianças sem TDAH desempenharam mais tarefas em comparação ao outro grupo. Essas crianças também desempenharam mais tarefas de cuidado próprio, comparadas a tarefas de cuidado familiar. O mesmo padrão foi observado no grupo com TDAH, mas essa diferença não foi significativa estatisticamente. | A participação das crianças nas tarefas domésticas é uma área valiosa de desempenho ocupacional para os terapeutas explorarem com as famílias. Intervenções que abordam estratégias e apoios para promover a participação de crianças com TDAH em tarefas domésticas e rotinas familiares merecem atenção. Discussões sobre rotinas pessoais e familiares podem ser úteis para entender como as mães se adaptam para dar conta das demandas dos filhos no dia a dia |
3 | 22 crianças com TDAH e 22 crianças sem TDAH, na idade entre 9 e 11 anos. | Investigar fatores da criança, ambiente e da tarefa associados com o desempenho nas tarefas domésticas e assistência requerida para realização dessas tarefas. | A idade da criança e a importância dada pelos pais sobre a rotina familiar foram associadas positivamente com o número de tarefas desempenhadas pela criança, sendo esse último relacionado especificamente com o desempenho em tarefas de cuidado familiar. A presença de um irmão mais velho foi associada ao aumento do número de tarefas de cuidado próprio e na quantidade de assistência requerida para realização das tarefas, tanto familiares quanto de cuidado próprio. Ser do grupo TDAH, o nível de estresse pessoal dos pais e o nível de estresse relacionado ao comportamento dos filhos foram associados com relatos de aumento da assistência requerida para realização das tarefas domésticas. | Os resultados desse estudo ressaltam o valor de se explorar a participação na rotina domiciliar e, especificamente, tarefas domésticas no contexto de famílias de crianças com TDAH ou semelhantes condições de saúde. O uso de uma avaliação das tarefas domésticas pode promover a exploração e discussão sobre as expectativas das famílias em relação a suas crianças e como elas adaptam sua rotina pessoal e dos membros da família para suportar a participação das mesmas. Além disso, o envolvimento nas tarefas domésticas pode beneficiar essas crianças no que tange ao desenvolvimento pessoal, de responsabilidade social e senso de pertencimento. |
4 | 67 crianças e adolescentes com o diagnóstico de TDAH, com idade entre 6 e 14 anos. | Avaliar associações entre os sintomas (desatenção, hiperatividade/impulsividade e opositores) e fatores de confusão, como a idade, sexo e inteligência, com o desempenho de crianças com TDAH nas tarefas domésticas e a quantidade de assistência disponibilizada pelos cuidadores. Este estudo também procurou identificar fatores preditivos da participação em tarefas domésticas. | Sintomas de hiperatividade/impulsividade foram associados significativamente com assistência em tarefas de cuidado próprio e tarefas de cuidado familiar, e entre sintomas de oposição e assistência em tarefas de cuidado próprio. Os coeficientes dessas associações foram negativos e de magnitude moderada. Idade foi associada com o desempenho e assistência disponibilizada pelo cuidador e ambas as tarefas, de cuidado próprio e cuidado familiar; crianças mais velhas desempenharam mais tarefas e se mostraram mais independentes do que crianças mais novas. Inteligência avaliada no estudo não teve associação significativa com os desfechos de participação doméstica. Maior número de sintomas de oposição foi preditivo do aumento na assistência disponibilizada em tarefas de cuidado próprio. | O papel dos sintomas de TDAH e oposição no envolvimento dos cuidadores pelos jovens deve ser entendido em combinação com as características da família e do ambiente familiar, o que inclui os tipos e a qualidade das interações pai-filho, bem como a orientação e o apoio prestados pelos cuidadores. Além disso, a organização e estruturação da rotina diária da família, os tipos de demandas de tarefas e a coerência com que o envolvimento das crianças e adolescentes no domicílio são necessários parecem ajudar a estimular e/ou restringir sua participação em casa. |
As estratégias de busca adotadas levantaram um total de 43 estudos, sendo apenas quatro incluídos na revisão (Figura 1).
Figura 1 Diagrama de fluxo dos estudos filtrados, avaliados para elegibilidade, incluídos e excluídos.
Em relação à nacionalidade dos estudos, um deles é brasileiro e os demais são americanos, publicados nos anos de 2016, 2009 e 2004 respectivamente. A falta de estudos faz com que o conhecimento em relação ao contexto cultural brasileiro seja ainda pequeno e possamos generalizar menos sobre o papel da participação doméstica nas crianças com TDAH.
A participação doméstica tem sido um tema incipiente nos últimos dez anos, no entanto, já se sabe que ela é influenciada pelo conjunto de fatores da própria criança e do meio em que ela vive. Mais precisamente no contexto brasileiro, ainda é um tema recente, que nos últimos seis anos tem sido explorado por pesquisadores da área da terapia ocupacional. O estudo de Amaral et al. (2014) investigou as diferenças nos perfis de participação entre crianças com e sem deficiência, mais especificamente crianças com paralisia cerebral e Síndrome de Down. Todavia pouco se sabia sobre o perfil de participação e fatores relacionados das crianças com desenvolvimento típico. Por isso, em 2015, o estudo de Drummond et al. (2015) investigou os fatores que impactam a participação doméstica de crianças brasileiras, particularmente no que tange às tarefas de cuidado familiar, contribuindo para novos segmentos na área.
Por outro lado, mesmo sendo as tarefas domésticas um assunto tão comum no dia a dia das pessoas e reportado pelas famílias como algo importante, isso nem sempre condiz com a satisfação destas em relação ao desempenho atual das crianças, como demonstrado em Drummond (2014). Esse distanciamento parece perpassar pela necessidade de que as crianças tenham acesso aos meios para participar, bem como da dificuldade dos pais em acompanhar a execução das tarefas e atribuir responsabilidades para que o aprendizado de fato ocorra (DRUMMOND, 2014).
Desse modo, conhecer como as crianças participam em casa podem trazer informações valiosas sobre quão aliada ou não está a expectativa da família ao que realmente acontece. É possível que diante de uma condição de saúde específica, como o TDAH, a criança pode não corresponder às expectativas dos pais por não ter no ambiente condições para tal, ou simplesmente não ter oportunidade de fazer, pelos pais acharem que ela pode não dar conta.
Em relação à amostra dos estudos, um deles incluiu crianças com deficiências físicas e de comportamento, além do TDAH (DUNN, 2004), enquanto os demais avaliaram especificamente a participação doméstica no contexto do TDAH (MENDES et al., 2016) ou comparando com crianças com desenvolvimento típico (DUNN et al., 2009a, 2009b).
Em relação aos instrumentos utilizados para avaliar a participação doméstica de crianças e adolescentes com TDAH, todos os estudos selecionados utilizaram o mesmo instrumento: o Children Helping Out: Responsibilities, Expectations and Supports (CHORES), que recentemente foi traduzido para o português por pesquisadores da área da terapia ocupacional. Através desse instrumento, é possível compreender o envolvimento das crianças na rotina das tarefas domésticas e documentar mudanças ao longo do tempo, sendo de grande utilidade na prática clínica por possibilitar um acompanhamento da funcionalidade da criança no contexto domiciliar e avaliar resultados de intervenções com crianças com deficiências nos mais diversos cenários (AMARAL et al., 2014; MENDES et al., 2016).
O CHORES é hoje um dos instrumentos mais utilizados para avaliar a participação em tarefas domésticas de crianças em idade escolar, entre 6 e 14 anos, e as mudanças ao longo do tempo, considerando os valores das famílias e suas atividades (DUNN, 2004). É importante ressaltar que esse instrumento não visa descrever tarefas que são realizadas eventualmente pela criança, mas sim aquelas que são responsabilizadas pelos pais para que elas realizem frequentemente. Por isso, a consideração dos valores e expectativas dos pais é que determina quais tarefas ocorrem e a quantidade de ajuda necessária para sua execução O engajamento nas tarefas domésticas é reportado sob a perspectiva dos pais, em duas subescalas: cuidado próprio (incluem as tarefas relacionados a interesses pessoais da criança, como guardar a própria roupa, guardar os brinquedos depois que brinca) e cuidado familiar (incluem as tarefas relacionadas a interesses comuns da família, como guardar a roupa da família, arrumar uma área compartilhada com os outros) (DUNN, 2004).
Um dos estudos objetivou avaliar as propriedades psicométricas desse instrumento (DUNN, 2004). Os resultados apontaram a medida como capaz de captar diferenças entre as crianças na extensão de sua participação, suportado pelos níveis globais de assistência avaliados, e revelou forte confiabilidade e validade.
Os estudos de Dunn et al. (2009a, 2009b) revelaram que crianças com TDAH apresentaram desempenho semelhante ao de crianças com desenvolvimento típico, diferenciando apenas na quantidade de assistência disponibilizada pelos cuidadores. Esses resultados sugerem que o diagnóstico de TDAH é um fator que influencia a participação, no que tange à assistência disponibilizada pelos cuidadores.
No CHORES, as tarefas são pontuadas conforme relato dos pais, e uma pontuação para cada item é somada, gerando escores totais e parciais de desempenho e assistência nas subescalas de cuidado próprio e de cuidado familiar. Escores elevados de desempenho no CHORES indicam que a criança realiza um número grande de tarefas de casa. EmDunn et al. (2009a, 2009b), as médias de desempenho nas tarefas de cuidado próprio e cuidado familiar de crianças com TDAH variaram entre 11,2 (com desvio padrão de 1,6; máximo possível =12) e 12,0 (com desvio padrão de 3,0; máximo possível = 21) (DUNN et al., 2009a, 2009b), respectivamente. No que tange ao tipo de tarefas realizadas, identificou-se que crianças, de ambos os grupos, desempenhavam mais tarefas de cuidado próprio em comparação a tarefas de cuidado familiar. As médias de assistência disponibilizada pelos cuidadores reportadas foram de 80,5 (com desvio padrão de 9,7) para as tarefas de cuidado próprio, e 76,9 (com desvio padrão de 9,9) para tarefas de cuidado familiar. Quanto maior esses escores, menos é assistência disponibilizada pelos cuidadores, indicando maior independência da criança nas tarefas.
Por outro lado, em Dunn (2004), os resultados de uma pequena amostra, comparando crianças com e sem deficiência, dentre elas o TDAH, demonstraram que crianças com desenvolvimento típico desempenhavam mais tarefas quando comparadas a seus pares com deficiência. As médias de desempenho nas tarefas de cuidado próprio e cuidado familiar de crianças com TDAH variaram entre 9,72 (desvio padrão = 2,44; máximo possível =12) e 10,16 (desvio padrão =3,19; máximo possível= 21) (DUNN, 2004), e 11,2 (com desvio padrão de 1,6) e 12,0 (com desvio padrão de 3,0) (DUNN et al., 2009a, 2009b) respectivamente. Em relação à assistência, nas tarefas de cuidado próprio e cuidado familiar, as médias encontradas foram de 7,72 (com desvio padrão de 2,22) e 8,67 (com desvio padrão de 2,93) (DUNN, 2004), respectivamente.
Sabendo que ter o diagnóstico de TDAH é um fator de impacto para a assistência disponibilizada pelos cuidadores (DUNN et al., 2009a, 2009b), o estudo brasileiro avaliou os fatores relacionados ao diagnóstico que poderiam influenciar a participação doméstica da criança, investigando elementos como número de sintomas de TDAH (desatenção, hiperatividade/impulsividade) ou de comorbidades (sintomas do Transtorno Opositivo Desafiador, TOD) (MENDES et al., 2016). Os resultados revelaram que quanto maior o número de sintomas de hiperatividade/impulsividade e de oposição, maior é a assistência disponibilizada pelos cuidadores. Dessa forma, a sintomatologia do TDAH e de comorbidades associadas, como do Transtorno Opositivo Desafiador (TOD), traz um impacto importante no ambiente domiciliar, no que tange às relações entre criança e cuidador para realização das tarefas.
Sobre os fatores pessoais que influenciam a participação, os estudos encontrados apontaram a idade da criança como fator preditivo do aumento de participação nas tarefas domésticas realizadas, independentemente do diagnóstico de TDAH (DUNN et al., 2009b; MENDES et al., 2016). Em adição, o estudo de Mendes et al. (2016) apontou a idade, nas crianças com TDAH, também como preditiva de menos assistência disponibilizada pelos cuidadores. Esses resultados corroboram a literatura que já apontava a influência da idade nas crianças com desenvolvimento típico. Segundo Goodnow (1996), é esperado que a participação nas tarefas domésticas tenha início entre 4 e 6 anos, momento em que os pais transferem aos filhos a responsabilidade de tarefas relacionadas ao cuidado próprio. Entre 11 e 14 anos, outras responsabilidades diárias de tarefas mais complexas são transferidas, relacionadas ao cuidado de outros membros da família e de áreas comuns (GOODNOW, 1996). Observa-se que o número de atividades aumenta com o passar do tempo e consequentemente os pais disponibilizam menos assistência para a criança realizar as tarefas, algo que ocorre mesmo nas crianças com diagnóstico de TDAH (DUNN et al., 2009b; MENDES et al., 2016). Com o aumento da idade, é esperada uma redução dos sintomas de hiperatividade, tão marcantes nas crianças mais novas (HARPIN, 2005). Isso pode ter um impacto positivo para aumentar o acesso dessas crianças à participação doméstica, justificando o efeito da idade, mesmo com o diagnóstico.
A presença de um irmão mais velho também foi identificada como fator preditivo do aumento da quantidade de assistência disponibilizada (DUNN et al., 2009b). O TDAH é uma condição de saúde heterogênea e susceptível ao desenvolvimento de comorbidades associadas ao diagnóstico, podendo tornar o perfil de funcionalidade da criança cada vez mais complexo (ENGEL-YEGER; ZIV-ON, 2011; KAWABATA; TSENG; GAU, 2012). Da mesma forma, essa população pode apresentar perfis distintos de participação doméstica, tendo em vista essas variáveis.
Em seu sentido mais amplo, alcançar a saúde, bem-estar e a participação na vida por meio do envolvimento na ocupação é o que descreve o domínio e o processo de terapia ocupacional (CAVALCANTI; DUTRA; ELUI, 2015). A compreensão de como se dá a participação de crianças com TDAH em tarefas no ambiente doméstico traz informações importantes sobre o desempenho atual dessa criança, facilitadores e dificultadores para o engajamento, bem como da dinâmica familiar e relações que se fazem nesse contexto.
Temos instrumento disponível em português que pode ser um aliado importante para a avaliação ocupacional dessas famílias e crianças, tendo em vista a especificidade em mensurar desempenho de tarefas e assistência dos cuidadores. Da mesma forma, essa avaliação tem potencial de promover discussões entre as famílias e profissionais acerca da rotina diária de seus filhos, oportunidades de participação, demandas das tarefas e o uso de estratégias para apoiar e favorecer o melhor desempenho dessas crianças em casa.
Por outro lado, sabemos que nem sempre os ganhos motores, cognitivos, sensoriais e psíquicos percebidos na terapia são vivenciados em casa, não havendo necessariamente uma generalização das vivências no setting terapêutico para o ambiente familiar (DRUMMOND, 2014). Dessa forma, uma melhor compreensão de como essa criança/adolescente desempenha as tarefas domésticas pode contribuir para que o terapeuta identifique possíveis barreiras que dificultem a generalização para o contexto real da criança, minimizando assim as inconsistências que tendem a ocorrer entre o desempenho observado nos contextos terapêutico e de casa.
Considerando a heterogeneidade do TDAH, os poucos estudos envolvendo crianças com essa condição não permitem a generalização para crianças e adolescentes com esse diagnóstico. Especialmente no contexto brasileiro, faz-se necessário o desdobramento das pesquisas desenvolvidas até o momento, e estudos com crianças com TDAH com amostras maiores e representativas. A partir desta revisão, entendemos que o engajamento dessas crianças nas tarefas domésticas sofre um impacto significativo de fatores do contexto onde elas vivem e do próprio diagnóstico, que implica especificamente maior quantidade de assistência por parte dos cuidadores. Outros estudos serão necessários para explorar outros fatores do ambiente familiar que podem restringir ou facilitar a participação doméstica das crianças, sendo importantes para ampliar o conhecimento sobre perfis distintos e determinar intervenções ocupacionais específicas para essa população.
No âmbito da terapia ocupacional, os resultados desta revisão contribuem para o aprofundamento desse campo de conhecimento, no contexto do TDAH, ainda tão pouco explorado, contribuindo também para fortalecer o foco da profissão para a relação pessoa-ocupação-contexto, em vez das análises da patologia (DRUMMOND, 2014).