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Parto e nascimento: saberes, reflexões e diferentes perspectivas

Parto e nascimento: saberes, reflexões e diferentes perspectivas

Autores:

Luiz Antônio Teixeira,
Andreza Rodrigues Nakano,
Marina Fisher Nucci

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.25 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702018000500002

Este dossiê coloca em foco o processo de medicalização do parto e suas consequências. A partir das últimas décadas do século XIX, o parto ingressou no âmbito da medicina e, aos poucos, foi se transformando em um evento completamente medicalizado. Esse processo histórico se ampliou fortemente no decorrer do século XX, em diversas regiões do globo, trazendo consigo importantes vantagens relacionadas, principalmente, à diminuição dos índices de mortalidade materna e neonatal. No entanto, a intensificação da medicalização dos nascimentos também aponta para problemas, à medida que a excessiva tecnologização tem gerado críticas e insatisfações principalmente no que concerne às consequências clínicas, físicas e emocionais do excesso de intervenções.

No Brasil, desde o final do século XIX, quando a medicina deu início à escalada de medicalização dos nascimentos, um dos principais problemas relacionados ao parto se inscreveu nos diferentes tipos de cuidados ministrados às gestantes pobres e às mais abastadas. As primeiras, na maior parte das vezes, tiveram pouco acesso a cuidados médicos e hospitalares; as últimas tinham seus filhos no conforto de suas casas com médicos e serviçais, a quem era confiado o cuidado. Tal problema persiste até os dias de hoje, apesar da descomunal ampliação do acesso aos serviços médicos e das políticas públicas direcionadas a garantir às mulheres direitos reprodutivos e cuidados humanizados.

A medicalização também se traduziu em tensões e controvérsias no que tange às técnicas e tecnologias que aos poucos passaram a fazer parte da cena do parto. O uso inadequado ou desnecessário de diversos procedimentos cada vez mais é discutido por profissionais de saúde e mulheres na busca de um equilíbrio na utilização de intervenções e tecnologias no processo de nascimento. A cesariana é o maior exemplo desse problema. Desde 2013, mais da metade dos nascimentos no país foram feitos por meio dessa cirurgia. Embora a Organização Mundial de Saúde postule que a cesárea deva ser empregada em índices entre 10 e 15% da totalidade dos nascimentos (Betrán et al., 2015; WHO, 2018), a espantosa incidência da cirurgia no Brasil tem inquietado diversos setores da sociedade, gerando múltiplos posicionamentos entre atores de diferentes campos profissionais e de usuários do sistema de saúde.

Não só a cesariana tem se mostrado como problema em relação ao parto medicalizado. O excesso de intervenções, tão criticado por diversos grupos de mulheres, é a contraface da falta de assistência adequada às mulheres mais pobres. Se as mulheres de classe média discutem a forma mais confortável ou “humanizada” de terem suas crianças, as mais pobres muitas vezes ainda têm dificuldades de acesso a analgésicos e anestésicos que diminuiriam seu sofrimento na hora de parir.

A organização do sistema de saúde, das práticas profissionais e dos movimentos sociais, bem como a forma de incorporação de tecnologias médicas pelos sujeitos são algumas das dimensões do processo de medicalização do parto no Brasil. Essa complexidade requisita olhares de diferentes disciplinas e metodologias para explorar a questão. Tais aspectos vêm sendo cobertos por diferentes estudos direcionados às práticas de parto, aos usos e abusos da cesariana, às questões referentes à escolha da via de parto e à violência obstétrica. Entre elas destaca-se a pesquisa “Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre parto e nascimento”, realizada pela Fiocruz, com o objetivo de conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas no parto.1 O estudo trouxe à luz o complexo quadro de iniquidades relacionadas à medicalização do parto no Brasil, sendo crucial para a reflexão sobre as transformações nas práticas de parto e sobre a utilização cada vez mais intensa de intervenções.

Compartilhando as inquietações acima observadas, e buscando se integrar ao esforço de trazer novas perspectivas para a questão do parto e de seu processo de medicalização,2 o grupo interdisciplinar de pesquisadores do projeto Medicalização dos Nascimentos no Brasil (COC/Fiocruz) lançou a chamada para os artigos que compõem este número especial. Agradecemos aos autores que responderam e compartilham conosco o objetivo de subsidiar reflexões múltiplas sobre o assunto.

No mesmo esforço de reunir variadas perspectivas sobre a temática, realizamos, nos dias 22 e 23 de outubro de 2018, no auditório do Museu da Vida (Fiocruz, Rio de Janeiro), o seminário internacional “Medicalização do Parto”. O seminário contou com a participação de pesquisadoras de diferentes cidades do Brasil e do mundo e com a presença de diferentes profissionais da assistência e representantes de movimentos de mulheres, que debateram a situação atual da assistência ao parto no Brasil. Em breve os temas discutidos no seminário serão organizados na forma de livro.

Para relembrar a historiadora Maria Lúcia Mott – homenageada em nosso dossiê –, “o nascimento não se restringe a um ato fisiológico, mas testemunha por uma sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior” (Mott, 2002, p.399). A medicalização dos partos, dos nascimentos e da vida é parte da nossa sociedade, e olhar para essas questões é uma das formas de transformá-la.

REFERÊNCIAS

BETRAN, Ana Pilar et al. What is the optimal rate of caesarean section at population level? A systematic review of ecologic studies. Reproductive Health, v.12. Disponível em: <. Acesso em: 19 nov. 2018. 2015.
MOTT, Maria Lucia. Parto. Revista Estudos Feministas, n.2, p.399-401. 2002.
WHO. World Health Organization. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization. 2018.