versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.10 Rio de Janeiro out. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.20302016
Em nossa cultura, casar-se e ter filhos são etapas no processo de desenvolvimento do ser humano que têm amplo significado social e psicológico e ser pai/mãe é uma fase que traz mudanças significativas tanto para a família quanto para os seus membros, altera a dinâmica familiar, que obriga seus membros a uma adaptação à nova realidade, alterando os papéis, as relações e os vínculos afetivos existentes1-3.O tornar-se pai, assim como tornar-se mãe, é o momento mais desafiante do ciclo de vida familiar e individual4.
De acordo com Krob et al.5, homens vivenciam a gestação com sentimentos intensos de alegria, ansiedade, conflito, preocupações com a saúde da mãe e do bebê, experimentam sentimentos de exclusão no período pré e pós-natal, têm expectativas acerca do papel paterno relacionadas a serem pais participativos e presentes na vida dos filhos.
Teykal6 enfatiza que o tornar-se pai envolve duas dimensões da identidade do indivíduo: a física, com a participação do homem na geração do filho; e a moral, que exige dele os recursos para sustentar e educar os filhos. E no papel que tradicionalmente, vem sendo difundido nas sociedades contemporâneas, o pai assume a função de provedor e a mãe de cuidadora. De acordo com Darling et al.7, os homens/pais têm sofrido pressões para assumirem mais responsabilidades nos cuidados dos filhos e com a casa. Para Levandowski e Piccinini8, os pais estão procurando ser mais presentes e participativos quebrando o monopólio materno sobre a criança. Entretanto, o sentir-se pai não depende somente da constatação da gravidez como acontece com a maternidade, é um sentimento que se desenvolve na relação do pai com o filho intermediado, muitas vezes, pela relação que o pai tem com a mãe9.
Fonseca10 afirma que “enquanto as mulheres querem nenês, os homens querem família”, demonstrando assim claramente as diferenças culturais. A literatura tem mostrado a importância do envolvimento paterno para o desenvolvimento e o funcionamento da família, pois a adaptação a esta nova fase depende da complementaridade de papéis entre os genitores11.
No entanto, pode haver elementos complicadores no que concerne ao exercício da maternidade e da paternidade. Mães e pais de pessoas com doenças crônicas, deficiências e outras condições não predizíveis têm sua vivência do papel materno e paterno acrescida de dificuldades. A família tem que entrar em contato com o diagnostico e o prognóstico da doença, muitas vezes carregado de desesperança e desinformação12. Este que deveria ser um momento especial torna-se um evento traumático e desestruturador e assim como acontece com as mães ocorre a desconstrução da imagem do filho ideal abalando os pais e interferindo na concepção que possuem de paternidade2,13. O prognostico faz com que se deparem com a perspectiva da morte, não apenas da morte física de um de seus membros, mas com as mortes subjetivas, ou seja, a morte do filho esperado/idealizado, das expectativas, do desenvolvimento normal vivenciando assim o processo de luto antecipatório14,15.
A literatura16-21 aponta que a maioria dos estudos que abordam a temática da família na área da deficiência, fazem-no sobre a mãe e a figura materna, e que há poucos estudos que abordam a figura do pai. Este, quando aparece, é juntamente com a figura materna, utilizando o termo “pais” e nunca separadamente como tema e objeto de estudo principal.
Apesar do número de estudos acerca da paternidade ter aumentado na última década, Cunniff22 salienta que ainda são poucos os estudos que versam sobre o ajustamento dos pais na presença da deficiência ou de uma de uma doença crônica, especialmente na Distrofia Muscular de Duchenne (DMD).
A DMD é uma doença crônica e degenerativa que acomete crianças do sexo masculino e que se manifesta em idade precoce. Trata-se de distúrbio geneticamente determinado, na qual o gene afetado é recessivo e ligado ao cromossomo X, causando problemas na codificação da distrofina, proteína responsável pela manutenção das células musculares, com incidência aproximada de um em 3.500 meninos23. Os meninos nascem saudáveis, avançam no desenvolvimento como todas as outras crianças, geralmente no início da segunda década de vida ocorrem inúmeras perdas funcionais, a fraqueza muscular progride, perdem a capacidade de deambulação, ficando confinados a cadeiras de roda e vão a óbito com cerca de 20 anos de idade, em decorrência de complicações cardiorrespiratórias, pois a musculatura destes sistemas também é afetada. Até o momento não há cura da DMD, toda a família sofre e precisa aprender a lidar com as reações e os sentimentos despertados pela doença, cuja presença interfere no exercício da paternidade e da maternidade.
Este é um estudo exploratório, descritivo, de natureza qualitativa que teve por objetivo conhecer a vivência da paternidade de homens, pais de filhos com diagnóstico de Distrofia Muscular de Duchenne (DMD). Participaram deste estudo oito pais de meninos diagnosticados com Distrofia Muscular Duchenne (DMD) há pelo menos dois anos, com idade igual ou superior a dez anos e estes critérios foram utilizados para garantir um tempo maior de convivência com a doença. Trata-se de uma amostra de conveniência e os participantes foram contatados na Associação de Distrofia Muscular de Ribeirão Preto e no ambulatório de Neurologia Infantil do HCFMRP onde seus filhos eram atendidos. Em função da natureza do estudo, baseado em síndrome rara, e de poucos participantes, os resultados obtidos não são passiveis de generalizações. Optou-se pelo uso da entrevista semiestruturada com temas que eliciassem a verbalização do modo de pensar ou de agir dos participantes sobre: a gestação, a paternidade, o diagnóstico, as mudanças percebidas após diagnóstico da doença e a rotina de cuidados para com o filho.
As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra, buscando o máximo de precisão e fidelidade quanto ao seu conteúdo, tendo sido realizadas nas residências dos participantes. Os dados obtidos foram analisados sob a perspectiva da análise de conteúdo24,25 e, como referencial para interpretação e compreensão dos dados, foi adotada a teoria psicodinâmica26.
A leitura do material transcrito permitiu um mergulho nas falas desses pais, buscando os sentidos e as significações subjetivas que emergiram espontaneamente em suas verbalizações, e seguiu as fases propostas para este método, a saber: pré-análise, a exploração do material e a análise do discurso24,25. A análise foi norteada pelas seguintes categorias; Paternidade, Diagnóstico, Significado Atribuído à Doença e Luto. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em pesquisa do Hospital das Clinicas da FMRP/USP.
A idade dos pais variou de 35 a 65 anos e apresentavam renda salarial entre 3 e 10 salários mínimos vigentes na época e, em sua maioria (sete), o trabalho dos pais era a única fonte de renda da família. Em relação ao número de filhos, sete deles tinha dois, sendo que para dois pais ambos com DMD, um dos pais possuía quatro filhos e todos os pais eram casados.
Os pais deste estudo verbalizaram sentimentos de satisfação sobre a paternidade, bem como por estarem seguindo o “curso natural” da vida Eu sempre quis, né, seguir a ordem natural das coisas, sempre quis ter filhos (P3). De acordo com Krob et al.5, mesmo quando a paternidade não foi planejada, sentem satisfação e prazer em serem pais.
Para eles, o tornar-se pai possui uma função identitária, O homem vira homem quando ele é pai (P3), e a paternidade tem uma função social, com um papel bem definido. Primeiro é prover o sustento do lar, né? [...] o pai é aquele que tem mais que colaborar na família, e ele tem que ser [...] o exemplo da família (P4).
Os relatos enfatizaram o quão significativa é a paternidade para estes pais que mostraram perceber que são inerentes a este papel as funções de prover o sustento, promover a educação e a formação em várias dimensões, da educação formal à espiritual e a participação ativa nos relacionamentos e no lar, estes resultados estão em consonância com os estudos de Brasileiro et al.27 e Krob et al.5.
As concepções dos pais acerca da paternidade demonstraram que, para alguns deles, a transição para a paternidade, o tornar-se pai, foi um momento de reelaboração da identidade masculina, fato este preconizado por Teykal6. Os pais sentem-se mais gratificados e contribuindo para a adaptação da família à doença, quando participam dos cuidados e estão mais presentes, ao mesmo tempo em que se sentem culpados quando não conseguem atender ao que consideram ser a função paterna. A participação direta nos cuidados com o filho e na divisão de tarefas domésticas é um comportamento expresso pelos pais deste estudo, que exibem o exercício de uma paternidade menos tradicional, num padrão reconhecidamente mais participativo e afetivo, revelando um modelo de paternidade que busca o diálogo e a responsabilidade distante da ideia de um pai autoritário, como descrito por Ceverny e Chaves28 e Levandowski e Piccinini8. A função do provedor é muito importante, mas não garante a satisfação com o papel paterno, sendo que a pouca disponibilidade paterna para a participação da vida familiar mostrou-se negativamente relacionada com o exercício almejado da paternidade, gerando frustração e sentimento de culpa nos pais que participaram deste estudo. Henn e Piccinini29 e Teykal6 apontam para o fato dos homens sentirem-se frustrados e culpados quando não conseguem exercer o papel de pai que idealizaram e que almejaram para si.
A paternidade de um filho “especial” foi considerada como oportunidade de crescimento pessoal, de serem escolhidos por Deus, de serem “pais especiais”, [...] eu acho que fui escolhido, eu tenho uma função para alguém especial, [...] Faz crescer muito...(P1). Consideram a paternidade em si como oportunidade de crescimento pessoal, pois, de acordo com eles, tornaram-se mais responsáveis e amadurecidos após a experiência de ser pai. Estes resultados também foram encontrados no estudo de Lemay et al.30.
Ser pai de um filho com deficiência rara mostrou ser um fator que exerceu impacto positivo sobre o desenvolvimento pessoal dos pais, como retratado por Povee et al.31, que estudaram o funcionamento de famílias com crianças com síndrome de Down.
Os pais participantes deste estudo falaram sobre a importância de manterem-se fortes diante da adversidade, para dar bom exemplo aos familiares, muito embora percebam que fraquejam em alguns momentos, mas que isto não pode ser revelado à família. O imaginário social atribuído ao homem de força e vigor foi aqui desafiado: Eu nunca demonstrei fraqueza diante deles, eu nunca fiquei [...] sabe, às vezes, eu tava chorando, [...] eu nunca falava [...] Sempre dando aquela força (P4). Revela-se a exigência de encarar todos os desafios, sem refutar a luta, tipificando o comportamento esperado para o gênero masculino, como descrevem Bruschini e Ricoldi32 e Nolasko33. A ideia de não poder demonstrar fraqueza diante das dificuldades diz respeito às atribuições usuais de gênero e com a figura do pai patriarcal e o estereótipo do masculino latino33-35; porém, há que se refletir sobre os prejuízos que sofrem os homens ao se conformarem com essas atribuições: não poder demonstrar fraqueza, não poder demonstrar os sentimentos, não poder ter uma relação próxima com os filhos.
Alguns homens relataram que a busca pelo diagnóstico médico aconteceu após perceberem diferenças no desenvolvimento dos seus filhos quando comparados a outras crianças ou quando alguns sinais evidentes, como o aumento da panturrilha e o agravamento dos problemas motores apareceram: quando ele fez quatro anos que a panturrilha dele começou a aumentar e nós percebíamos que criança mais nova subia na cadeira, ele não subia, ele caía com facilidade, e a gente começou a ficar preocupado (P4).
A “demora” e o longo tempo entre a percepção dos sintomas e o diagnóstico, aliados aos diversos exames pelos quais a criança tem que passar, geram ansiedade, angústia e incertezas, tanto nos pais quanto nas mães, que necessitam de respostas. Na literatura, Moreira e Araújo36 e Petean2 apontam para a necessidade de que o diagnostico e, portanto, as informações, sejam oferecidos após pais o mais breve possível, diminuindo assim as angustias geradas pela longa espera.
Um desenvolvimento que acontece fora do esperado – como é o caso do aparecimento de uma deficiência rara de expectativa de vida limitada – desencadeia no pai o processo de luto do filho imaginado, semelhante ao que ocorre com as mães, experimentam a angústia e a incerteza sobre o futuro deles e do próprio filho. Segundo Goes37 e Krobet al.5, a deficiência do filho elicia dificuldades psíquicas nos pais e mães, pois estes não conseguem encontrar, no filho real, traços do filho ideal, dificultando o processo de identificação. Os pais deste estudo já haviam se defrontado com o filho real, em relação ao qual tanto o advento da doença como a percepção do desenvolvimento diferente do esperado acabam por remetê-los ao mesmo processo de perda do filho esperado.
Os relatos mostram que alguns pais não se sentiram suficientemente esclarecidos sobre o diagnóstico, tal como ocorre com mães e famílias2,13,14,38. O momento da notícia, a “escuta” do diagnóstico desencadeou diversos sentimentos que dificultaram a compreensão e a assimilação das informações médicas. Os pais falaram sem clareza sobre o momento do diagnóstico, acho que o médico também disse (P2) e revelam que é preciso um tempo para a assimilação das informações, o que sugere a emergência de defesas do psiquismo. Diversos estudos2,39-44 mostram que ao receber o diagnóstico de doenças crônicas, graves ou que tenham impacto importante sobre a saúde do filho, tanto os pais quanto as mães, experimentam reações intensas que acabam interferindo no modo como compreendem estas informações.
A forma como o diagnóstico foi informado e o momento em que foi feito foram lembrados pelos pais que estavam presentes na consulta juntamente com as mães, como um momento doloroso. [...] eu acho que o filho da senhora tem uma doença assim, [...] falou uma bomba [...] a gente falando em distrofia muscular a pessoa abria o livro e fechava o livro.(P1).
Nota-se que os profissionais da saúde, no intuito de conscientizá-los sobre a gravidade da doença, adotam uma postura baseada no conhecimento científico, procurando reforçar a cronicidade e a letalidade da DMD, temendo que valores e crenças religiosos possam legar a esses pais a expectativa de uma cura ilusória; Não adianta fazer promessa, entendeu? Não acha que vai levar no centro espírita e vai resolver, não vai, entendeu? Nem lá em Aparecida, não vai resolver o problema (P1). Cabe o questionamento sobre este proceder no momento doloroso da “escuta” da notícia, visto que a religiosidade é uma das poucas fontes de esperança e de suporte disponível aos pais nesta hora. A forma como o diagnóstico é informado interfere na aceitação ou rejeição da criança e na adaptação da família à doença, sendo necessárias medidas de humanização nos serviços de saúde e conhecimento dos profissionais da área acerca das reações e mecanismos de defesa que vigoram neste momento38,40,44.
A reação de choque frente ao diagnóstico foi relatada como grande sofrimento, acompanhada de sentimentos de impotência e de confusão, O choque foi quando fomos em São Paulo [...] quando deu a notícia que eles realmente tinham distrofia, [...] foi um choque muito forte (P3).
A reação de choque foi a mais verbalizada pelos pais deste estudo, semelhante ao que ocorreu no estudo de Petean2 realizado com mães, e nos estudos de Camargo e Londero40, Poysky e Kinnett41 e Cavalcante38 realizados com famílias, o que demonstra que as reações dos pais não diferem das mães. Outras reações podem estar associadas como reações de surpresa, dúvida, negação e revolta. Kluber-Ross45 descreve a reação de choque que é eliciada pela notícia de uma doença grave ou frente às perdas significativas como uma reação temporária e que dará lugar a outras defesas posteriormente. Esta reação está relacionada com o conteúdo da notícia, no caso o diagnóstico, mas também com a forma como esta notícia foi dada.
É provável que em virtude da vivência dolorosa causada pelo diagnóstico, os pais tenham desencadeado um processo defensivo da negação, pois acreditam que a criança possa melhorar e vão em busca de tratamentos miraculosos e da cura. Estes processos, a negação dos pais e a busca de cura, não diferem do que ocorre com as mães como aponta a literatura2,14,44. Neste sentido, Camargo e Londero40 afirmam que os pais, ao tentarem melhorar as condições de saúde do filho sem terem recebido as devidas orientações, ou sem as terem compreendido, acabam tomando iniciativas próprias que, ao invés de melhorar, podem ser prejudiciais à saúde da criança.
A notícia de deficiência da criança, de uma doença crônica ou de outras condições que interferem no seu desenvolvimento saudável, carece de esclarecimentos e informações precisas nesta hora, com linguagem simples, para que o casal (pai e mãe) possam assimilar o que foi dito e elaborar o luto do filho ideal perdido38-43. Diante da dor causada pela confirmação do diagnóstico da DMD, os pais deste estudo ficaram atônitos, não conseguindo exibir qualquer comportamento, pois receberam a notícia abruptamente, segundo a sua percepção.
Sentimentos de desespero, impotência e desesperança também foram relatados, bem como o desejo da própria morte. Frente ao diagnóstico de uma doença crônica incurável, reações como estas são esperadas e têm sido descritas na literatura2,14 nos estudos realizados com mães, demonstrando assim que ambos, pais e mães, sofrem e reagem de maneira semelhante.
Quando questionados sobre o futuro, os pais falaram pouco sobre as expectativas de vida dos filhos, demonstrando a dificuldade em lidar com a previsão da morte inerente a este diagnostico; sentem-se emocionados e confusos ao falar sobre o assunto. O que eu encaro com o Renato não é um problema, de jeito nenhum, o que tiver que acontecer, vai acontecer e ponto. O que eu sei [pausa]... difícil falar [choro] (P7). Os pais, homens e mulheres, cujos filhos são portadores de doenças degenerativas com prognostico de letalidade vivenciam o processo de luto antecipatório14,15, uma realidade que os impede de terem expectativas e sonhos sobre o futuro do filho.
Apesar do conhecimento científico sobre a causa da DMD, os pais sentiram necessidade de encontrar uma justificativa, um sentido para a doença do filho, confrontando e até mesmo colocando em dúvida a explicação científica que receberam.
Minha opinião é que foi uma mutação genética, eu não acho que a minha esposa é portadora. A outra opinião é a religiosa que eu tenho, de que nada acontece por acaso. (P4)
Para alguns pais, a doença passou a ter o significado de missão a ser cumprida por eles ou pelo próprio filho, designada por Deus.
Então eu fui escolhido.[...] tô vendo Deus falando assim, eu vou te dar esse para você cuidar. (P1)
Os relatos mostram que o significado da doença está permeado pelo sistema de crenças e valores dos pais e, de modo especial, pela sua religiosidade que, neste estudo, atuou como fator facilitador ou de proteção, ajudando-os a enfrentar a doença e o cotidiano. Quando atribuíram o significado de missão a ser cumprida, os pais conseguiram não somente aplacar os sentimentos de raiva dirigidos a Deus como também atenuar a noção de que a doença do filho foi-lhes imposta como uma punição. Desse modo, reconciliam-se com Deus, salvaguardando-o com uma imagem de “Pai” protetor e justo, a quem podem recorrer nos momentos de dor. Admitida a impossibilidade de se proceder à cura por meios científicos, a religiosidade é a única fonte de esperança destes pais. Assim como estes pais, as mães também apresentam crenças e valores que as ajudam a significar a doença e também se utilizam da religião como mecanismo de enfrentamento2,13,14. Na literatura37,46, a religião mostrou-se como um instrumento que ajuda a explicar e a dar significado às experiências de doença e morte, auxilia a família na aceitação, na adaptação e no ajustamento.
O relato dos pais mostrou o processo da perda do filho idealizado, do seu desenvolvimento normal, que se inicia com a percepção dos sintomas e se confirma pelo diagnóstico e curso da doença. A expectativa deles era de ser uma criança normal, uma criança que corresse, jogasse bola, que brincasse. Eu jamais imaginei que eu ia ter um filho com uma doença degenerativa. (P4)
Os pais, neste estudo, demonstraram a dificuldade em lidar com as perdas funcionais que acontecem no curso da doença, em especial o momento da perda da capacidade de deambulação: é muito feio quando eles começam a parar de andar, meu filho começou a andar de uma forma, é terrível, caía, rachava a cabeça, cortava o queixo, se arrebentava inteiro, anda igual um pato, parecia um pato, entendeu? (P5).
Os pais demonstraram que conhecem o curso da doença, sabem das etapas subsequentes, as perdas funcionais e progressivas que acometem as crianças e, por isso, não conseguem verbalizar sobre o futuro. Sabem o que está por vir, estão cientes da necessidade de preparar-se para isto, mas evitam falar sobre o assunto que gostariam de não saber. Percebe-se o conflito existente na esfera afetiva, pois os conhecimentos objetivos acerca do prognóstico da doença, o falar sobre o prognóstico os fazem entrar em contato com uma realidade temida que não querem ver se concretizar. Como expõe Kluber-Ross45, o processo de luto implica fases que se processam, não de modo linear. Apesar de demonstrarem em seus depoimentos que estão enfrentando e se adaptando à realidade da doença, quando questionados sobre o futuro, o processo defensivo da negação torna a revelar-se.
A impossibilidade de cura e o prognóstico de degeneração progressiva e letal acarretam frustração e angústia nos pais, que se veem impotentes e subtraídos de qualquer poder para minorar a situação, visto que não há tratamento possível até o momento que possa conter o curso da doença e a perspectiva de morte do filho ainda na juventude. Pangalila et al.47, em seu estudo com homens, pais de adultos com DMD, demonstraram que, apesar da sobrecarga sentida por eles, consideram que cuidar do filho é importante e gratificante.
Uma doença crônica ou degenerativa como a DMD deflagra com seu diagnóstico o processo de luto antecipatório, pois tanto os pais quanto as mães, cientes do curso da doença, já se veem perdendo as possibilidades de ver suas expectativas em relação ao desenvolvimento normal do filho se esvanecer. Conforme Rolland48 salientou, a cada marco da evolução da doença, confirmando o seu curso progressivo e letal, as famílias enfrentam o sofrimento antecipado diante das incapacidades e da morte iminente. O processo do luto antecipatório pode ocorrer durante um longo período, iniciando quando as perdas funcionais são percebidas. Essas perdas carecem de elaboração, seja por parte do doente seja por parte dos familiares, e despertam em todos uma gama de sentimentos dolorosos49. De acordo com Kovacs50, um processo longo de luto acarreta desgaste físico e psíquico nos que nele estão implicados, ou seja, pais e mães.
É doloroso, tanto para os pais quanto para as mães, pensar na morte do filho, que neste caso em especial, chega lenta e inexoravelmente. Os pais que participaram deste estudo demonstraram estar conscientes das etapas esperadas da progressão da doença, e que, a cada involução que o filho apresenta, confirma-se a iminência da morte. É uma ruptura enorme no curso esperado da vida, que pressupõe a morte dos pais precedendo sempre a dos filhos49,51.
Alguns deles falaram sobre a morte e relatam que temem não só a morte do filho, como a deles próprios e das mães. Ver o filho morrer, que mãe que vai suportar ver o filho morrendo pouquinho a pouquinho. (P5)
O vínculo estreito estabelecido por estes homens com seus filhos, pela sua grande dependência de cuidados, faz os pais sentirem que a vida deles e das esposas ficará sem sentido, pois há um enorme investimento de recursos físicos, afetivos, financeiros para mantê-los vivos. De acordo com Cunha et al.52, a relação próxima entre cuidador e doente faz aumentar o vínculo entre eles durante o adoecimento. O cuidador percebe-se cada vez mais envolvido e responsável para atender às necessidades do doente, respondendo sempre prontamente para aliviar seu sofrimento e diminuir sentimentos de culpa em relação ao enfermo. Visto que a maior parte das atividades dos pais e mães envolve o cuidado do filho, pensar em sua morte implicará também a perda do papel de cuidador.
A proposta deste estudo foi de conhecer a vivência da paternidade de homens, pais de filhos com diagnóstico de Distrofia Muscular de Duchenne (DMD) e, embora não se possa fazer generalizações, os resultados mostram que:
A forma como os pais vão agir está relacionada com o significado que a DMD tem para eles, seus preconceitos, valores morais e religiosos, não diferindo da forma como agem as mães. Os pais vivenciam os mesmos sentimentos que as mães, mas diferente da mulher, o papel de cuidador e provedor se sobrepõe dificultando, por vezes, a manifestação e a elaboração destes sentimentos. Vê-se aqui outro diferencial de gênero, o quanto os homens expõem pouco os seus sentimentos. Estes pais e mães vivenciam um processo de luto antecipatório, que se assevera com as sobrecargas física e emocional advindas do adoecimento do filho.
A paternidade de um filho com deficiência fez com que eles se sentissem “pais especiais”, promovendo o amadurecimento e o crescimento pessoais, e foi considerada como a missão a ser cumprida e este significado foi permeado pelo sistema de crenças e valores religiosos, da mesma forma que as mães como demonstrado na literatura2. Os pais tanto quanto as mães sofrem com o diagnóstico da doença e necessitam de apoio social e profissional para lidar com ela.
Os resultados deste estudo trouxeram informações importantes e abriram o caminho para outros, objetivando conhecer as implicações da paternidade de um filho com doença crônica e os fatores psicossociais nela envolvidos. É fundamental abrir espaços para que os homens/pais compartilhem mais suas vivências e experiências favorecendo a elaboração de perdas e ganhos no curso de doenças crônicas degenerativas.