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Pelos caminhos da diversidade sociocultural: diálogos entre Terapia Ocupacional, África e Etnografia

Pelos caminhos da diversidade sociocultural: diálogos entre Terapia Ocupacional, África e Etnografia

Autores:

Marina Di Napoli Pastore,
Miki Takao Sato

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional

versão On-line ISSN 2526-8910

Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.4 São Carlos out./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoarf1240

1 Introdução

A terapia ocupacional social tem desenvolvido, ao longo dos anos, discussões, temáticas de pesquisas e publicações importantes sob a ótica de várias interfaces e tem se deparado com dinâmicas da contemporaneidade em diferentes contextos. O presente trabalho debruça-se sobre a questão da diversidade cultural no contexto da pesquisa da terapia ocupacional no Brasil e a temática africana. Os terapeutas ocupacionais têm se voltado para questões sobre políticas públicas, modos de vida, culturas infantis, economia e protagonismo feminino, religiosidade, mobilidade, entre outros temas, buscando trazer novas reflexões e olhares para a temática, procurando superar a discussão do exótico e do tradicional, de discussões reducionistas e simplistas que muitas vezes são associadas aos temas da África e africanos/as.

Assim, o presente trabalho apresenta um breve panorama de publicações da terapia ocupacional social na interface com a temática da África, para, então, propor uma discussão da necessidade de alargar os olhares sobre novas formas de pesquisas, práticas e projetos que dialoguem com a valorização das culturas, diferentes modos de vida, necessidades intrínsecas a cada grupo estudado. A metodologia empregada para a produção do artigo foi uma revisão bibliográfica nos periódicos nacionais de terapia ocupacional1 disponíveis em meio eletrônico e no portal de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), utilizando as seguintes palavras-chave: “terapia ocupacional e África”; “terapia ocupacional and Africa”; “terapia ocupacional e migração”; “terapia ocupacional and migração”; “estudos africanos e terapia ocupacional”. Além disso, buscamos também nos anais de congressos específicos de terapia ocupacional no Brasil disponíveis em meio digital.

O artigo propõe uma discussão sobre como as ferramentas de pesquisa do trabalho etnográfico têm sido enriquecedoras para o debate da pesquisa acadêmica na terapia ocupacional social no que diz respeito aos trabalhos e pesquisas realizados sob a ótica da diversidade cultural.

2 Histórico de Pesquisa em Terapia Ocupacional e Áfricas no Brasil

A temática das Áfricas e das migrações africanas para/no Brasil vem ganhando espaço ao longo dos últimos anos nas pesquisas e ações de terapeutas ocupacionais2, com produções de fontes de reflexão e preposições teóricas na produção do campo, em parceria com a Casa das Áfricas - Núcleo Amanar3. A Casa das Áfricas vem, nos últimos anos, dedicando-se a estudos e pesquisa sobre essas interfaces da terapia ocupacional com as Áfricas.

Dentro da complexidade das abordagens teórico-práticas-reflexivas das ações da terapia ocupacional social, o foco da práxis tem sido também nas “possibilidades de ação em contextos marcados por práticas culturais diferenciadas, pluritécnica, de coabitação religiosa e multirracial” (BARROS; GALVANI, 2016, p. 102), no qual

[...] diversos terapeutas ocupacionais têm estado atentos às questões de África, seja por meio de estudos, seja em trabalhos de ação - e sua pertinência para ampliação da visão de mundo e da contribuição da terapia ocupacional (BARROS; GALVANI, 2016, p. 104).

Em parceria com perspectivas interdisciplinares, os trabalhos surgem como marcos na profissão, numa preocupação sobre saberes, culturas e sociedades africanas em áreas rurais, urbanas, em questões religiosas, de acessos a direitos, migração e mobilidade, práticas de suportes social, educacional e cultural, criando interconexões e possibilidades de trabalhos entre terapia ocupacional social e os trabalhos em contextos africanos, assim como discutir sobre Áfricas no Brasil (PIEROTE-SILVA et al., 2014; BARROS; GALVANI, 2016).

Com base nessas reflexões e possibilidades de ações são produzidos, no âmbito da pesquisa acadêmica em terapia ocupacional, trabalhos crítico-reflexivos que envolvem não somente questões específicas de cada população e sociedade, mas percepções diferenciadas sobre uma terapia ocupacional que é, ao mesmo tempo, étnica, política e cultural. Em uma perspectiva histórica dos trabalhos desenvolvidos no Brasil, temos Barros (2004) como pioneira, com sua tese de doutorado sobre “itinerários da loucura em território Dogon”, no qual busca interpretações acerca da loucura segundo uma ótica da sociedade Dogon, uma sociedade negro-africana da África do Oeste. Retratada em contos, a autora traz um conjunto de histórias que mostram como a sociedade busca resolver uma situação conflituosa e de transtornos psíquicos, que precisa ser explicada e tratada, de uma maneira que é, ao mesmo tempo, singular e coletiva, cultural, plural e contextualizada, abrindo um leque de reflexões e preposições sobre a atuação em contextos e questões relativas à saúde mental e implicações na vida individual e na social. A partir desse trabalho, originou-se, também, o artigo intitulado “Loucura na sociedade Dogon, República do Mali”, de 2002, publicado na Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo (BARROS, 2002).

Miki Sato, em 2003 e 2004, fez uma pesquisa sobre a presença de africanos nos albergues de São Paulo, onde foi observado um aumento significativo do número de imigrantes africanos em situações de albergues. Tal documento, posteriormente revisado, foi publicado em 2004, originando também um artigo, em 2007, intitulado “Da África para albergues públicos: africanos na Casa do Migrante em São Paulo”, publicado na revista Afro-Asiáticos (SATO; BARROS; SANTOS, 2007).

Entre 2003 e 2005, Talita Vecchia trabalhou com Denise Dias Barros no projeto “os fios que nos unem”, numa parceria entre Casa das Áfricas e associação Songho Dewe wo Dere, num projeto de apoio à produção tecelã local Dogon, valorização da língua songhoy, alfabetização e formação em projetos de audiovisual com jovens e adultos, surgidos da demanda dos moradores da comunidade songho. Reconfigura-se, a partir de 2005, com a parceria com uma associação dos próprios moradores locais, com produção de uma cartilha para valorização da língua local, apoio à alfabetização, apoio às atividades culturais e esportivas, apoio às organizações de jovens e às atividades artesanais locais e trabalho audiovisual (BARROS; GALVANI, 2016). Em 2011, o debate é reacendido com o início do Círculo Áfricas4, surgido num contexto em que o Brasil passa a receber um número significativo de estudantes africanos por meio de intercâmbios universitários, possibilitando, num trabalho em parceria com a Casa das Áfricas, a ampliação e a sensibilização da percepção da população brasileira e dos muitos imigrantes que vivem no Brasil. Com temáticas envolvendo a intolerância religiosa, a discriminação racial e a xenofobia no Brasil, tal ação constituiu-se em um exercício e projeto para “a construção de uma sociedade mais aberta à diversidade e à diferença”, favorecendo

[...] espaços de debate sobre os sentidos da diversidade e sobre as políticas de inclusão e de participação. Trata-se de criar espaços para que as diferenças coexistam e partilhem da dinâmica do processo social (BARROS; GALVANI, 2016, p. 104).

No âmbito de pesquisas de pós-graduação em terapia ocupacional no Brasil, tem-se, a partir de 2012, a entrada de Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo, de Burkina Faso, antropólogo que finalizou seu mestrado (SAVADOGO, 2014) em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)5 sobre a temática de mobilização estudantil dos jovens burquinabeses para o Mali.

Em 2013, a terapeuta ocupacional Marina Di Napoli Pastore iniciou seu mestrado6 sobre a temática da infância, dinâmicas culturais e universos infantis em uma comunidade na periferia de Maputo, Moçambique, discutindo as percepções sobre as crianças, responsabilidades cotidianas e conceituação do termo infância, com base na etnografia, em contextos de diversidade sociocultural e atuação na terapia ocupacional, retomando os estudos na sua pesquisa de doutorado7 numa discussão sobre as crianças enquanto produtoras de cultura e saberes infantis em comunidades moçambicanas. Deste trabalho, tem a produção de um blog intitulado “Moça de Bique”8 e os artigos acadêmicos “a cultura do brincar e a socialização infantil: percepções sobre o ser criança numa comunidade moçambicana” (PASTORE; BARROS, 2015) e

[...] a infância e o ser criança em uma comunidade moçambicana: dinâmicas de socialização, culturas e universos infantis a partir de uma vivência etnográfica (PASTORE; BARROS, 2016).

Também entre 2013 e 2014, o terapeuta ocupacional Valdir Pierote Silva, na temática da migração africana na cidade de São Paulo, desenvolveu sua pesquisa9 sobre a violação de direitos humanos que afligiam os imigrantes africanos em São Paulo, numa discussão sobre as políticas públicas, migração africana e garantia de direitos humanos, com foco na atuação sobre o balcão de atendimentos da Comissão Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura da cidade. Essa pesquisa originou o texto “a contemporânea migração africana para a cidade de São Paulo: garantia de direitos, políticas públicas e diversidade” (PIEROTE-SILVA, 2014).

Por fim, a terapeuta ocupacional Miki Sato desenvolveu, no mestrado acadêmico (SATO, 2017)10, uma pesquisa sobre o protagonismo econômico das mulheres migrantes africanas na cidade de São Paulo. Por meio da pesquisa de recorte etnográfico, acompanhou narrativas de mulheres africanas que migraram para a capital paulista e desenvolvem algum tipo de atividade econômica, propondo uma discussão dessas experiências enquanto produção de sentido, emancipação, diálogo intercultural e agenciamentos coletivos. Dessa pesquisa, resultou o artigo “Cultura, mobilidade e direitos humanos: reflexões sobre terapia ocupacional social no contexto da política municipal para população imigrante”, publicado nos Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional (SATO; BARROS, 2016).

Nessa perspectiva interdisciplinar, tem-se, desde 2011, a parceria do Núcleo Amanar com o Projeto Metuia (USP), que tem conduzido, no campo da cultura, da educação e dos direitos humanos, diferentes iniciativas de estudos, extensão universitária, formação e debates sobre mobilidade humana, diversidade cultural, artes e migração africana em São Paulo. A partir de 2016, essa parceria ganhou novos contornos, com condução de pesquisas, cursos de extensão, extensão universitária e produção acadêmica também com o Projeto Metuia/Terapia Ocupacional do Núcleo da Universidade Federal de São Paulo11. Os trabalhos têm pautado a necessidade de discussão e projetos de enfrentamento da questão da diferença, da diversidade, do combate ao racismo e da afirmação dos direitos humanos, com base no reconhecimento dos pertencimentos e valores multiculturais (GALVANI et al., 2015; TANGERINO et al., 2015).

A pesquisa em terapia ocupacional, as metodologias, as práticas e a interconexão com as Áfricas trazem uma exigência na reflexão teórico-prática, principalmente no que diz respeito aos estudos e às práticas desenvolvidas nas ações da terapia ocupacional social, em que é preciso construir um caminho epistemológico aberto ao diálogo com pesquisa histórica e a antropológica, para se repensar e abrir caminhos para um trabalho que seja cultural, social, múltiplo, diverso, contextualizado, histórico e político.

O atual panorama nos traz o desafio de criar novas proposições que abarquem novas culturas, novos modos de vida, rearranjos, religiosidades, estéticas e fazeres plurais, nas quais seja necessário acompanhar a diversidade cultural intrínseca às questões da contemporaneidade, propondo um diálogo atento, aberto e em constante movimento, com uma metodologia que também dialogue com as questões apresentadas e com formas de fazer que tragam para a cena o Outro, as culturas e os meios de produção a partir de um olhar “de dentro e de perto” (MAGNANI, 2002).

3 Diversidade Cultural e Etnografia: Trilhando Percursos na Terapia Ocupacional Social

Dentro dos princípios e declarações oficiais da World Federation of Occupational Therapists (WFOT), destacam-se diversidade e cultura, direitos humanos, deslocamento humano e riscos de desastres, entre outros. A WFOT reforça a necessidade de respeito e de se considerar os valores, crenças, diversidade cultural, em consonância com aspectos sociais, psicológicos, biológicos, econômicos, políticos e espirituais de cada indivíduo e sua participação social (WORLD..., 2014). Enfatiza como desafio a atuação nesses diferentes contextos culturais e propõe estratégias para o trabalho nos papéis da vida diária, desempenho ocupacional e atividades na comunidade, além da incorporação desses princípios na prática profissional, na educação e na pesquisa (IDEM).

Com a cultura, a WFOT tem trabalhado a definição de que compreende não somente como apenas um sistema de ideias e conceitos partilhados, de regras e significados que perpassam e são expressados nos caminhos em que os seres humanos vivem, mas também no modo como é contextualizada histórica e socialmente, passando, também, por questões étnicas e raciais, políticas e ambientais, não sendo estática, evoluindo e modificando-se no decorrer do tempo e espaço, em que, enquanto técnicos, só acessamos “a ponta do iceberg”, ou seja, aquilo que nos é permitido acessar (WORLD..., 2009, tradução nossa).

Entre as preocupações ético-metodológicas, pensamos numa leitura adotada com base na noção de direitos humanos em consonância com a Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO..., 2009), que preconiza como um dos direitos fundamentais o acesso à vida cultural na comunidade, às artes e ao progresso científico. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estabelece que a diversidade cultural é direito, na perspectiva do patrimônio comum da humanidade e do pluralismo cultural, sendo ainda fator de desenvolvimento (ORGANIZAÇÃO..., 2002). Ainda sob a ótica dos direitos humanos, Boaventura Souza Santos (1997) assinala que só com o diálogo histórico e intercultural é possível pensar em novas possibilidades para as exigências emancipatórias:

No caso de um diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis (SANTOS, 1997, p. 23).

Também, na terapia ocupacional - enquanto campo -, diferentes identidades necessitam co-existir. A co-habitação de identidades é aqui a recusa do achatamento ao discurso e ao pensamento único. Se aceitarmos tal leitura, estaremos concordando que existe também para o terapeuta ocupacional a exigência de habilitar-se para trabalhar problemáticas que surgem dos paradoxos de uma sociedade marcada pelas desigualdades (BARROS; ALMEIDA; VECCHIA, 2007, p. 133).

A temática da África vem sendo campo de estudo e pesquisa de um grupo de terapeutas ocupacionais brasileiros preocupados com as migrações, diásporas, vulnerabilidades de africanos no Brasil e no continente africano, como também com as produções culturais, intelectuais, artísticas e vivências outras experenciadas por estes e, que na maioria das vezes, são negadas no meio acadêmico. Sob diferentes óticas, propõe-se uma diversidade de temas e perspectivas que ressaltam a pluralidade e perspectivas de diversidade socioculturais.

Não se trata de conceber o terapeuta ocupacional como aquele que estabelece programas de ação do alto de seu conhecimento técnico, pois existem desconhecimentos mútuos que precisam diminuir para que se definam programas de ação em terapia ocupacional. É imperativo estabelecer um diálogo, isso significa que terapeuta ocupacional e usuário precisam aprender... Na ação, é preciso que o técnico saiba redimensionar o próprio saber, saiba transitar em relações de alteridades sociais e culturais (BARROS, 2004, p. 95).

A diversidade cultural se torna um imperativo ético na pesquisa, entendendo que as diferentes vivências, histórias e saberes, tanto do pesquisador quanto dos interlocutores, podem ser compartilhadas em relações de trocas e de superação da lógica da pesquisa unilateral. Na interlocução com as proposições da terapia ocupacional social, o conceito de dialogia e processo é fundamental para essa reflexão no contexto do ensino e da pesquisa (BARROS, 2004). Paulo Freire (2003) contribui para a reflexão do conceito de diálogo, que consiste nas práxis e na maneira como o homem transforma o mundo, onde “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo”. Para o autor, só na relação dialógica a prática da liberdade é concretizada. No contexto da pesquisa, faz-se necessário estabelecer um olhar de descentramento do saber técnico, de alteridade e de abertura para novas formas de estar em campo.

Partindo da dimensão da cultura, temos mais um eixo organizador das reflexões e metodologias de ação e construção de conhecimentos em terapia ocupacional. É necessário transcender a reflexão para além de uma visão reducionista e carregada de estereótipos. Achille Mbembe, pesquisador, historiador e cientista político camaronês, traz elementos para essa discussão, sobre a necessidade de outras buscas e inserções das temáticas em África, com uma reflexão crítica sobre a falsa existência de uma única e simplista identidade africana e a necessidade de superação da lógica da igualdade e da neurose pela vitimização, para a possibilidade de formas culturais diversas dentro da mesma humanidade e dentro de uma relação de alteridade (MBEMBE, 2001).

As pesquisas em temáticas africanas têm possibilitado o descentramento para novas formas de olhar e o deslocamento da pesquisa para sujeitos, grupos e comunidades com saberes e fazeres múltiplos e plurais, numa dimensão que também busque o diálogo, trocas e experiências compartilhadas com o campo. Enquanto metodologia que capta as diversas nuances e interfaces da diversidade cultural, entendemos que a etnografia se configura como um recurso valioso ao campo, que pode dialogar com a terapia ocupacional, uma vez que permite um olhar “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002). É possível pensar que ferramentas do trabalho etnográfico possam subsidiar não só a pesquisa, tornando-a mais rica, plural e numa relação dialógica entre o pesquisador e o campo vivenciado, mas trazer para a prática profissional novas formas de fazer com e pensar em possibilidades de coabitações de mundos e diferenças.

A etnografia enquanto metodologia de diversas pesquisas vem sendo desenvolvida ao longo dos anos pela antropologia, mas coloca-se como um desafio também para outras áreas, como a sociologia, a história e, igualmente, para a terapia ocupacional, enfaticamente no campo social. Magnani (2002) assinala em relação a esse propósito que:

Desde as primeiras incursões a campo, a antropologia vem desenvolvendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as inúmeras revisões, críticas e releituras (quem sabe até mesmo graças a esse continuado acompanhamento exigido pela especificidade de cada pesquisa) constituem um repertório capaz de inspirar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais (MAGNANI, 2002, p. 11).

A etnografia (GEERTZ, 1989; GONÇALVES et al., 2012; OLIVEIRA, 2000) fornece ferramentas de pesquisa de campo que dialogam com as reflexões propostas pela terapia ocupacional social no que diz respeito também a um trabalho realizado sob a perspectiva da diversidade cultural. Há possibilidade de diálogo, do exercício etnográfico, dos acompanhamentos e vivências nas situações cotidianas das pessoas ou grupos estudados, o compartilhamento das experiências, a construção de um campo relacional, a relação de alteridade e diálogo. São modos múltiplos de fazer, ser e estar em campo que estão em pautas de discussão na pesquisa. A metodologia exige um trabalho relacional entre o pesquisador e seus colaboradores, no qual entrar em relação com o Outro se dá mediate o encontro e os modos de desconstruir os diversos momentos desse processo, abrangendo dificuldades teóricas e o aprendizado de técnicas e reflexões específicas, a partir de uma perspectiva permeada pela diversidade sociocultural presente.

Embora cada autor citado e discutido tenha perspectivas teórico-metodológicas diferentes, propõem leituras múltiplas e ferramentas para a discussão de modos de fazer pesquisa, que também são pensados na terapia ocupacional e tem sido utilizados nos trabalhos e estudos teórico-metodológicos desenvolvidos principalmente por terapeutas ocupacionais no campo social, subsidiando a reflexão do exercício etnográfico na terapia ocupacional, das possibilidades de diálogos interculturais, processos de participação e reflexão na pesquisa, mediação com o campo etnográfico, entre outras discussões.

Paulo Freire, embora não tenha uma discussão específica na etnografia, nos dá ferramentas para a reflexão da relação dialógica, do processo de relação estabelecido e do conhecimento e experiências de cada um nesse processo. Nesse processo dialógico, ou seja, em que há construção de conhecimento dentro de relações horizontais entre as pessoas implicadas entre si e em suas relações com o mundo: “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo” (FREIRE, 2003), valoriza-se o saber de todos. Na teoria freiriana, o conhecimento emerge em um processo relacional e de rompimento da “cultura do silêncio” para a participação na construção do próprio destino pessoal e da supressão do colonialismo. Assim, o conhecimento se faz dentro de contextos e cenários que lhe conferem características originais, diversas e culturais.

A etnografia tem permitido, nas pesquisas e pensamentos crítico-reflexivos produzidos na terapia ocupacional, a produção de práticas cuja perspectiva da diversidade sociocultural não só está presente como atua em cenários muitas vezes marcados por exclusões e privações a acessos aos bens e direitos sociais e culturais, como é o caso das migrações africanas e os estudos mencionados, como a negação de uma infância outra, de protagonismos femininos, de direito à educação e à mobilidade, da inteligibilidade e produção intelectual dos africanos, entre outros. Possibilitar a abertura de caminhos para essas questões, tão presentes nos dias atuais e que permeiam também as práticas da terapia ocupacional no Brasil, é permitir uma ação que é, também, política, de resistência e de luta.

4 Considerações Finais

Assim, pensar em pesquisa em terapia ocupacional e Áfricas na perspectiva da diversidade cultural, com a etnografia enquanto metodologia, é colocar em questão o descentramento do saber técnico, permitir a escuta sensível ao outro, a abertura de possibilidades de modos diversos de viver imbricados na diversidade cultural.

As várias ferramentas do fazer etnográfico têm subsidiado a terapia ocupacional social a construir novos percursos que dialogam com a discussão do conceito de diversidade cultural e suas implicações. O presente trabalho enfatiza que o debate em torno da temática africana na terapia ocupacional, nessa perspectiva, é possível e necessário, trazendo novos diálogos e interlocuções com o campo.

Propõe-se, aqui, uma reflexão da terapia ocupacional social e a temática da África, reforçando a importância das sociedades africanas, em suas várias interfaces - religiosa, cultural, de gênero, infância, mobilidade, direitos humanos, entre outras -, sinalizando para um debate que possibilite diálogos interculturais e amplie os horizontes, sejam de pesquisa, de projetos ou ações. A perspectiva da pesquisa em terapia ocupacional, na dimensão adotada neste trabalho, visa fortalecer os caminhos já trilhados e abrir novos horizontes para que os debates sobre África sejam cada vez mais potencializados.

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