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Pensar o Sistema Único de Saúde do século XXI: entrevista com Lígia Bahia

Pensar o Sistema Único de Saúde do século XXI: entrevista com Lígia Bahia

Autores:

Lígia Bahia,
Marcos Cueto,
Jaime Benchimol,
Luiz Antonio Teixeira,
Roberta C. Cerqueira

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000100005

ABSTRACT

This interview with Lígia Bahia explores evaluations of the first 25 years of Brazil’s Sistema Único de Saúde (SUS) and analyzes the project’s progress, impasses, and missteps. Bahia is critical of both tendencies currently found within SUS: the one that sees the system as aimed at equity and the other posing equality as its goal. She criticizes the ambivalence that various spheres of government have displayed in their decisions regarding large corporate groups and private health insurance plans, which conflict with the ideas of SUS. She evaluates the participation of doctors and other healthcare professionals in the system. Lastly, she analyzes the emergence of identity politics, which are missing from the public health reform project, whose emphasis was on equality.

Key words: Lígia Bahia (1955- ); Sistema Único de Saúde (SUS); public health reform; equity; equality

 Qual é a sua avaliação sobre os balanços que foram feitos para comemorar os 25 anos do SUS? Há consenso ou você percebeu muitas visões divergentes sobre esse período?

Tivemos muitos balanços. Mas, por incrível que pareça, não houve um debate aprofundado. Virou comemoração, como se o SUS fosse uma espécie de monumento, e não um processo em curso que precisamos debater. O início da avaliação é: houve avanços e impasses. A tentativa mais abrangente de avaliação que conheço está num artigo do Jairnilson [Silva Paim] publicado em Cadernos de Saúde Pública com um conjunto de debates que poderiam ter sido mais aprofundados. 1 Chama a atenção sobre a história, mas não faz uma avaliação política dos 25 anos do SUS. A polêmica epistemológica do Gilberto Hochman, que é historiador, foi a mais importante. 2 Mas o Gilberto não se propõe a ser exatamente um mudancista. Já que a gente americanizou, já que estamos em outra sociedade, é importante que o conflito de interesses fique em cima da mesa, não é? A gente não está num outro mundo? O muro de Berlim não caiu? Eu nem sei como é que muitos de nós estamos vivos. Ontem eu conversava com um amigo do PCB que quer fazer campanha. Falei: “Para com isso. Acabou. Você não entendeu que nós somos uma geração que viu ruir o muro de Berlim.” A gente tem que dar graças a Deus de estar vivo, de não termos dado um tiro na cabeça, nós que acreditávamos que ia ter socialismo etc.

Que nada! Na semana seguinte às manifestações de rua você estava lá na Ensp [Escola Nacional de Saúde Pública] puxando as manifestações...

Eu fui às manifestações de rua, mas acho que elas não mudaram a nossa cabeça. Nossa cabeça hoje é muito governamental. Estamos pouco nos lixando para o que está se passando na rua.

Já que você falou do balanço e do texto do Jairnilson... Nesse balanço você faz um comentário ao texto dele bem interessante. Quando você discute o comentário de Jairnilson, que diz que estamos fazendo políticas mais focais e esquecendo a questão do resguardo social. Como você avalia isso?

Temos dois fatos interessantes que podem ser vetores que fundamentam, de alguma maneira, a hipótese que eu vou apresentar. Um deles é que o pessoal da saúde do PT que estava nas prefeituras do PSB deixou seus cargos. Esse é um fato interessante porque nós, do movimento sanitário, sempre propusemos participar de qualquer governo, progressista etc., porque nossa pretensão, nosso éthos ou, enfim, o personagem que inventamos para nós mesmos era um personagem multipartidário. E o fato de pessoas do PT – do movimento sanitário ou que nós julgamos que são do movimento sanitário – saírem das prefeituras e das Secretarias de Saúde após a candidatura do Eduardo Campos (PSB) é inédito. Outro fato inédito é que parlamentares do PT estão claramente contra esse processo de se obter mais recursos para a saúde.

Por quê? Como assim?

Pois é... Esta é uma pergunta que eu também me faço: como assim? Como que, por exemplo, o deputado Rogério Carvalho 3 e o senador Humberto Costa 4 são os relatores do projeto “Saúde Mais Dez” 5 , que obriga a União a investir na saúde pública 10% de sua receita corrente bruta? Claramente estão relatando contra esse projeto de lei de iniciativa popular! Vejam: estou primeiro apresentando os fatos, mas o debate que acho importante sobre o SUS é que, de fato, tem-se com esse sistema duas vertentes, da equidade e da igualdade.

A reforma sanitária é construída com base na igualdade, e as políticas sociais do PT, na equidade. Não é à toa que essa vertente da equidade se torna hegemônica. Então, são dois processos: a equidade e a participação popular, que para nós era um elemento essencial da reforma. Refiro-me à participação popular de verdade, democrática, através de conselhos. Não à participação popular instrumental que temos hoje.

Os movimentos populares se engajavam na causa da saúde?

Vou pegar como exemplo a composição da oitava Conferência Nacional de Saúde: grande parte era de representantes da Igreja católica. Mas tinha também um movimento minoritário de bairros e poucas associações sindicais. Havia movimento de bairros em todo o Brasil, mas não há a menor possibilidade de um bairro inteiro só discutir saúde. Então esse movimento era interessante para nós, que tínhamos o conceito ampliado de saúde, aquele que conseguimos inscrever na Constituição: saúde é lazer, habitação, direito ao trabalho. Mas esse movimento popular não resistiu ao neoliberalismo, às ONGs. Quase todas essas lideranças se tornaram diretores de ONGs.

E isso alterou totalmente o quadro?

Sim, porque essas ONGs passaram a ser financiadas pelas instituições internacionais. Ou seja, perdemos a condição de ter um agente social (não gosto da expressão ator social) que não era especializado em saúde. O que nós propusemos eram Conselhos autônomos, e os Conselhos se tornaram governamentais. O que nós queríamos eram Conselhos deliberativos e não fiscalizadores ou apoiadores do governo, como são hoje. Nossa proposta era que houvesse uma tensão permanente entre sociedade, governo e Estado. Vejam que interessante, atualmente todo mundo denomina o Estado de governo. Não há mais nenhuma diferença entre governo e Estado. Hoje o que se tem talvez seja um governo ampliado.

O que dava coerência a esse processo eram os médicos, era o movimento sanitário. Mas esses médicos foram todos absorvidos pelo aparelho... ou já vinham sendo...

Não só isso. Naquele momento achava-se que os médicos iam ser assalariados...

Rumo à proletarização...

Exatamente. Havia um movimento chamado Reme (Movimento de Renovação Médica), de médicos assalariados, sediado aqui no Rio de Janeiro e que não tinha ninguém de São Paulo. Por que no Rio? Porque aqui tinha muitos hospitais públicos, ou seja, havia mesmo esse processo de assalariamento, tipo: “É assim que é. Nós vamos ter um sistema em que todo mundo vai ser funcionário público.”

Esse movimento, Reme, tinha uma certa hegemonia ideológica, programática...

Ideológica. Mas, no momento seguinte da Constituição, o que eles conseguiram foi o duplo vínculo para médicos. Então, acabou, arrebentou. A ideia era que os médicos fossem dedicados ao serviço público... Eu era do Partido Comunista, briguei com o pessoal do Partido Comunista do sindicato porque eles diziam que médicos e professores têm direito de ter duplo vínculo. E estamos assim hoje... Médicos e professores, com o sistema que temos, podem ter quinhentos vínculos.

Pegando por esse viés... De uns tempos para cá houve a tendência, em todas as instituições públicas, médicas públicas, de formar cooperativas, o que não deixa de ser uma certa privatização dentro da estrutura assistencial pública. Você considera isso um importante fator de erosão da ideia do SUS? Dentro das instituições públicas, valoriza-se cada vez mais a precarização.

Alguns autores consideram o SUS uma proposta de iluministas. De verdade, não tínhamos uma base, ou seja, o PCB não tinha uma base operária nos sindicatos de funcionários públicos. O que foi acontecendo? O SUS é irmão do Regime Jurídico Único; havia quinhentos milhões de regimes de trabalho. Pensou-se então: vamos unificar! Mas não houve debate, e o que aconteceu foi um total desastre, porque a unificação dos regimes de trabalho na saúde significa que médicos e enfermeiros ganham igual. Isso não existe em sistema de saúde nenhum do mundo.

Qual o critério para a unificação?

A escolaridade. Quem tem nível superior ganha a mesma coisa. Médicos, enfermeiros, farmacêuticos etc. E isso originou uma monstruosidade. Por quê? Hoje o SUS é muito bom para algumas categorias profissionais e péssimo para médicos.

Pode explicar isso melhor?

Por exemplo: farmacêuticos ganham muito bem e têm valorização social, mas não como médicos. Não fazem vestibular tão difícil; não estudam durante seis anos; não se submetem depois à residência... e vão ter o mesmo salário do médico. Então, para um farmacêutico, o SUS significou importantíssima ascensão social. Para enfermeiros, odontólogos, fisioterapeutas, também, e estão todos no SUS. Ao mesmo tempo, os médicos saíram do SUS porque esse sistema os repele.

Isso é uma das forças que leva a esse processo crescente e generalizado de cooperativização?

Não, isso já havia. As cooperativas médicas são de 1967, surgiram por incentivo do regime militar; é um sistema bem brasileiro, mas nós acreditávamos que o SUS poderia acabar com isso. Só que não só não acabou como ajudou a se modernizar, se reorganizar. E o que temos hoje no país é um sistema que distingue claramente médicos e não médicos. O “Mais Médicos” evidencia isso, porque mostra que médicos não querem trabalhar no sistema público, há um rompimento. Nunca mais se conseguiu conversar com esses médicos. Agora, com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), estamos fazendo um esforço danado de aproximação que não tem sido muito bem-sucedido porque nos havíamos retirado desse debate, paramos de conversar, fomos para o governo, e retomar não é fácil.

E isso significou mudanças na escola de medicina, na educação médica...?

Penso que essas mudanças são cosméticas, mas o pessoal que estuda isso não concorda comigo. Mas sou apenas uma espectadora desse tema.

Você falou “nós”, inicialmente, se referindo ao movimento sanitário, ao Partido Comunista, a você naquelas mobilizações, e recentemente você falou nós Abrasco. Abrasco ainda hoje é o núcleo pensante?

Acredito que procura ser, mas também com muitas dificuldades, porque na realidade existe um processo de renovação muito grande na pesquisa da saúde coletiva e uma renovação... geracional, intelectual. Hoje a preocupação é com o publicável, com a “minha pesquisa”, a “minha inserção”, o “meu projeto”. É ótimo que todos tenham projetos, pesquisas etc., mas há uma nítida fragmentação do campo.

Podemos ampliar essa conversa para Abrasco e Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], vistos como motores pensantes da reforma sanitária. O que você acha que os inviabiliza de botar a reforma à frente?

Ao nos aproximar de governos que governam pragmaticamente, durante quatro anos etc., nós teríamos rebaixado as imagens e os objetivos da reforma sanitária. Por outro lado, essa aproximação com o governo foi fundamental para que o campo tivesse esse crescimento. Por exemplo, a Fundação Oswaldo Cruz ganhou nos governos democráticos dimensão que não tinha anteriormente. Como foi essa colagem da saúde coletiva no governo? (E repara que é uma colagem interessante, porque alavancou a produção de medicamentos, de vacinas, a pesquisa etc.) Nossa área se beneficiou muito em termos de pesquisa nesses governos democráticos. O principal financiador de pesquisa é o Ministério da Saúde. Como, então, os pesquisadores vão ser contra o Ministério da Saúde? Pode parecer uma armadilha, mas eu acho que essa concepção de armadilha, como se fosse um crime maquiavélico, é pobre.

Você está falando que perdeu a vitalidade e o vigor ideológico, e recentemente houve esse afloramento de insatisfações sociais em que a questão da saúde foi muito enfatizada. Ouço dizerem que isso, em parte, é um subproduto do sucesso do SUS. O crescimento do SUS teria levado à internalização da ideia de que a saúde é direito de todos, o que levou a essa legítima cobrança por mais resultados. Então, tem uma contradição aí; tem uma tensão. Eu queria que você se colocasse em 1987 e em 2013 e comparasse essas duas realidades. Apesar das críticas houve enorme transformação para o bem e para o mal, porque na verdade há duas dinâmicas contraditórias: dinâmica privatizante e o SUS. O SUS virou uma coisa portentosa e ineficiente. Mas, por outro lado, eu não sei se quem olha para trás percebe um enorme progresso. Estou assombrado, por exemplo, com o recente movimento de empresas internacionais comprando planos de saúde, laboratórios, hospitais.

Não acho que tenha um progresso linear e nem acho que o SUS é mais portentoso do que antes. Não concordo com isso. Esse é o meu campo de estudo. Olho muito o sistema pela privatização. Acho que o SUS está cada vez menor. Sobre a diferença entre 1987 e 2013, é que em 1987 pensávamos que o SUS ia dar certo e em 2013 que não dará. Não há dúvida que não dará. Quem disser que o SUS vai dar certo é mentiroso, porque o SUS hoje não tem a menor condição de ser SUS. Não tem financiamento, gestão, utopia, ninguém que acredite nisso. Acabou. Acreditávamos que haveria um sistema público, universal, de qualidade e que seríamos atendidos por esse sistema público. Estávamos lutando em causa própria. Era um “SUS para chamar de meu”. E agora não. Agora é uma conversa da boca para fora. Todo mundo é a favor do SUS, contanto que eu não seja atendido no SUS, que, minha mãe não seja atendida no SUS.

Deveria ter uma lei que obrigasse todo ocupante de cargo público, todo dirigente a se tratar no SUS...

Sim, mas que nos obrigasse também, nós funcionários públicos, a nos tratar no SUS. Porque quando falamos ocupante de cargo público é como se tivéssemos raivinha dos políticos. Eu quero ser atendida e morrer no SUS, de preferência em casa. Sinceramente.

Mas é verdade também que se a gente quiser morrer no SUS a gente vai morrer mais rápido...

Não, não vai! Não é a realidade, porque nós somos pessoas diferenciadas. Quando digo “eu quero morrer no SUS”, não é porque eu quero sofrer, é porque eu vou ser atendida diferenciadamente. Eu falo português corretamente. Sou médica, entendeu? Sabe, é o fim da picada! As pessoas não entenderem sequer isso. Um exemplo: o Arouca... Eu quase conversei sobre isso com ele, mas não tinha intimidade suficiente para falar. Se ele morresse no SUS, teria sido diferente, ao menos no plano simbólico. Mas, os médicos que o atenderam e colegas da própria Fundação Oswaldo Cruz nem cogitaram essa hipótese e fariam pressão ao contrário. “Ah, como é que se poderia deixar ele ser maltratado no SUS”. Entendeu?

O que você acha do programa “Mais Médicos”?

Penso que é um programa baseado nesse princípio da equidade. É um programa para pobres e foi, em geral, muito bem aceito assim, até por parcela considerável do movimento sanitário. Mas poderia até ser interessante se houvesse uma tensão em relação à ampliação da rede pública de formação de profissionais de saúde. Mas como a tendência é apoiar e querer ser o primeiro a apoiar, não conseguimos mais transformar uma política residual em ações estruturantes.

Você acha que o “Mais Médicos” desnuda a dificuldade que o SUS teve de absorver esse rompimento entre a profissão médica e o SUS?

É um sintoma. Nenhum médico brasileiro hoje concordaria em trabalhar num SUS universal; ao contrário, o desejo, a perspectiva hoje de quem estuda medicina é não trabalhar no SUS. Não se deseja mais demonstrar “nós temos uma importância social”. Eu achava que ia trabalhar no SUS. Tanto que eu trabalho no SUS. Minha turma inteira trabalha no SUS. Isso não existe mais. Luiz Carlos Prestes foi a nossa formatura. Nós nos formamos em pleno regime militar, e Luiz Carlos Prestes estava presente em nossa formatura.

Os congressos da Abrasco são lotados, vem gente dos mais remotos rincões do Brasil...

Tudo bem, mas praticamente sem médicos. Somos agora um movimento da reforma sanitária sem médicos. Houve uma valorização imensa de psicólogos, farmacêuticos etc. A rede é tocada por eles, que acabam por defender também suas próprias corporações. O que se tem é um condomínio de corporativismos. Cada um no seu quadrado. O Conselho Nacional de Saúde expressa isso claramente. Chegou a ponto de expulsar os médicos do Conselho.

Os Conselhos Regionais e Nacionais de Medicina e Sindicatos também são totalmente alheios a essa questões?

Sim, mas é claro que tem uma crise. Acho que é aí que você está querendo chegar: tem uma tensão. Eu acho que o movimento “Mais Médicos” expressa também essa perspectiva de tensão. Porque, na realidade, o sistema privado – esse é o meu ponto – não responde, e nós, da saúde pública, não acreditamos nisso, adoramos o sistema privado. Somos atendidos pelo sistema privado! Isso é conflito de interesse. Temos que ser atendidos pelo sistema público. Nós temos que acreditar, que conhecer o sistema público! Não pode ter uma impressão de que dá errado, entendeu? Não pode ser assim.

O que é o Sistema Público de Saúde hoje?

É o que ele sempre foi; está de pé. Sofreu transformação, mas não as que eram necessárias para ele ter esse formato. Sofreu transformações para pior, é o que todo mundo comenta: “O Hospital da Lagoa era ótimo”. “O Hospital dos Servidores era ótimo”. Em qualquer lugar você vai ouvir essa sessão nostalgia, não só na saúde. O sistema público era melhor.

Mas cresceu muito...

A perda de qualidade é real; a democratização produz esse sentimento da perda de qualidade. E outra sensação é de que a qualidade está no serviço privado.

É uma falácia?

Não, mas é uma sensação forte. Não é assim? Não é à toa que todo mundo tem plano privado de saúde. Todo mundo quer sair do SUS.

Mas há um descontentamento dos médicos que estão na rede privada também.

E dos pacientes.

E há um descontentamento da maior parte dos médicos com o que se paga e com o material e suas condições de trabalho na rede privada.

Acho que nós temos que navegar aí! Porque não há crítica de nossa parte ao sistema privado. Não estamos criticando o sistema privado! Repara a pesquisa que vocês estão fazendo. Por que vocês não estão estudando, de cara, a conglomeração? Por que vão fazer uma volta ao mundo para chegar no que é o fenômeno mais importante, uma conglomeração co-financiada com política pública? Até vocês entenderem isso vai demorar cinco anos, porque vocês estão pegando o objeto de cabeça para baixo. Não se faz pesquisa, não se critica o sistema privado de saúde. Ao nos aproximar do governo nos tornamos também uma franja do governo. Nós consentimos em não criticá-lo. Esse é o pacto. Crescemos muito, muito, mas não criticamos. O que está ocorrendo é uma vergonha, é um descalabro. Com a entrada desse capital estrangeiro etc. É tudo política pública. Ou acreditamos que seja o tal mercado? Óbvio que não. Não tem mercado no Brasil. O que tem é Estado.

O que você vem acompanhando dos latino-americanos nesse debate? Minha impressão é de que há muita confusão e novos conceitos, como asseguramento universal em saúde.

Eu tenho acompanhado... Agora tenho duas alunas de doutorado que estão fazendo teses sobre o tema, analisando a privatização no Chile, na Colômbia, no México, no Peru e na Argentina. Esse olhar é importante, porque não é um olhar pelo ângulo governamental. O mercado existe construído pelo Estado. O mercado não frutifica espontaneamente, sem política pública. Quais são as políticas, então? E tem sido bem interessante mapeá-las, mas estamos no início. Nos outros países – Colômbia, Chile etc. – não existe movimento sanitário como o nosso. Não houve esse processo de pessoas que se reuniram, que formularam, que tinham uma teoria de reforma sanitária com base num processo de transformação mais radical da sociedade. E as reformas são bastante diferentes, não é? Mesmo no Chile, a esquerda não acredita que seja possível ter um sistema público universal. Nem o pessoal da Colômbia, que é mais à esquerda, pensa como eu penso. Talvez pense como a nova geração brasileira pensa, de maneira mais pragmática. Vai ter que ter um sistema para pobres; afinal de contas, o que importa é a equidade, não é a igualdade. Mas estamos estudando ainda.

Lígia, então, você vê o processo sob o ângulo da privatização. Você pode falar um pouco sobre isso?

Gostaria de não estar vendo o aumento da privatização, mas o que eu vejo, o que já vi, é uma sucessão de governantes que pensam que o SUS é para pobres. E, já que o SUS é para pobres, tem que desonerá-lo de quem pode pagar; esse discurso está sempre presente. Fernando Henrique Cardoso falou isso com todas as letras. Lula falou isso com todas as letras. Dilma falou isso com todas as letras. Os governadores falam, e a gente não quer acreditar. Enfim, não é que esteja escondido, nem é uma política subreptícia. Vai ter Sistema de Saúde Pública para pobres, para quem não pode pagar, para não pagantes.

Esse é o espelho do pensamento da classe média.

Não acho que a classe média pensa assim; ela não é burra. A classe média sabe que se tivesse um sistema público de qualidade seria melhor. Não é à toa que foi para as ruas (em junho). Não sei se fica claro isso para vocês, mas para mim é claríssimo. Não tinha nenhum lumpenproletariado na rua, mas tinha a classe que sabe que não vai ter o plano do Sírio Libanês.

Mas você não acha que essa força da classe média seja capaz de fazer com que o SUS tenha um outro caminho?

Acho capaz, mas eu preciso reconhecer que existe uma confusão entre a vontade e a realidade; temo meu próprio voluntarismo. Me parece, aliás, que o jogo eleitoral está embaralhado, o que é muito positivo para o SUS. Se soubermos, se tivermos fôlego, capacidade de articulação etc. podemos fazer com que o SUS apareça nas eleições. Entretanto, a maior probabilidade não é essa, é nos aliar de cara com a candidatura do PT. Então, sim, tem potencial, mas o mais provável é que se faça uma leitura muito ligeira desse movimento de rua, tipo “não tem liderança”. Claro que tem. Só que não são as lideranças tradicionais. Não sou eu a liderança do movimento. Não é por isso que não tem liderança. Enfim, acredito que o movimento de rua embaralhou o jogo eleitoral. Agora, se nós trabalharmos com a ideia de que a reforma sanitária não é unipartidária, nós poderemos reapresentar o SUS para a sociedade brasileira; a perspectiva do SUS; o SUS que não é para pobre.

Geralmente as palestras de pessoas relacionadas à reforma sanitária (por exemplo, o ex-ministro José Gomes Temporão) apresentam o SUS como um sistema grandiloquente. Parece que não vai mudar. Como você acha que o SUS deveria ser apresentado?

Com suas contradições; isso ajudaria. Eu faço uma apresentação do SUS mais polêmica, o que me tira do âmbito governamental. Temporão apresenta assim porque tem que apresentar assim, e não porque não entende as contradições. Me parece que ambos temos razão, mas há um divórcio total dessa apresentação grandiloquente, como você está dizendo. As pessoas ficam sem entender nada. E vão dizer: “É louco?”; “É uma pessoa louca que está falando que o SUS é uma maravilha?”; “E por que você não é atendido nessa maravilha?”. É o SUS maravilhoso. Deu tudo certo etc. etc. Então, está bom, “Seu filho é atendido no SUS?”; “Sua esposa é atendida no SUS?”. Simples assim. Temos um problema moral e ético, que pouco temos debatido. Não sei se fica claro assim... Fizemos uma opção que fez com que a gente crescesse muito. É difícil negar essa opção.

Ligia, as Conferências Nacionais deixaram de cumprir o papel estratégico que deveriam ter. Viraram também aplausos e grandiloquência? Essa nota da contradição, da crítica, ela não aparece em nenhuma dessas instâncias? Você frequenta, você observa?

Participei bastante dessas instâncias. Talvez devêssemos estudá-las sob outro ângulo, porque elas não são aquelas instâncias que propusemos; são muito ricas porque têm forte possibilidade de formular políticas identitárias – saúde dos negros, dos deficientes físicos, dos celíacos... – dimensões que não estavam presentes em nosso pensamento e são fundamentais. Elas não têm o efeito que eu queria que elas tivessem. Eu queria que elas formulassem a política nacional de saúde, que democracia brasileira fosse uma democracia com participação. Então, o documento da Conferência seria o documento mais importante, não é? O ministro não poderia fazer nada que não tivesse sido decidido pela Conferência. Não é assim! O que a Conferência faz é um festival de identidades. Então, não são os indígenas, mas alguns indígenas, que conseguem se representar, vão ali e apresentam algumas demandas, mas elas dizem alguma coisa, é interessante à beça. Os renais crônicos dizem alguma coisa. Como trabalhar com essa política de identidade... não estava no nosso radar. Era igualdade e ponto. Muito padrão. Pelo menos para mim era algo bem socialista: as crianças iam nascer, e todas teriam o mesmo enxovalzinho. Bem soviético... Com a mesma arquitetura, sabe? Eu imaginava isso. Como atender travesti... isso não estava presente como um desafio para a concepção de saúde-doença. O que é saúde pensada com obesos? Com pessoas que vivem muito tempo? No nosso tempo, por exemplo, uma pessoa com síndrome de Down morria cedo. Atualmente, não; isso mudou. As Conferências e os Conselhos são muito ricos em relação a isso. É fantástico.

Agora, é um discurso fragmentado; essas pessoas também têm medo do governo, porque todas são dependentes do financiamento; algumas têm interesses; por exemplo, os doentes são financiados pelos laboratórios. Uma enorme confusão. Mas deveria ser motivo de estudo e não do que fazemos, que é uma avaliação assim... sabe... de narizinho para cima?

Lígia, voltando ao tema da privatização, de que maneira ela impacta, por exemplo, o SUS?

É muito interessante entender isso. Em 1988, quando o SUS foi aprovado, uma lei permitia desconto no imposto de renda para pessoas que até então pagavam plano de saúde. Com a aprovação do SUS, essa lei foi suspensa durante nove meses. Nesse intervalo, ele foi considerado a política pública do país. Quer dizer, a Constituição foi aprovada e imediatamente os próprios governantes começaram a discuti-la e, nove meses depois, essa lei, que é uma lei antiprivatização, foi reintroduzida. Passou-se de novo a poder ter desconto no imposto de renda. Então, é muito interessante esse pequeno intervalo. Penso que é quando o SUS ia dar certo. Não se podia fazer nada contra ele.

Na realidade, a privatização não é oriunda de políticas só da saúde. Ela é especialmente oriunda de políticas do Ministério da Fazenda, do Ministério do Planejamento, das áreas econômicas – que tratam de fazer com que as empresas cresçam, porque é um ideário já presente no regime militar, pois a ideia era fazer com que o Brasil crescesse a partir dos empresários. Então, o incentivo às empresas de medicina de grupo e às cooperativas, a que você se refere, era uma ideia-força do regime militar. O governo queria muitos empresários e muitas empresas no Brasil na área da saúde. No período da ditadura militar, qual era a política? Era repassar dinheiro da Previdência Social para que as empresas empregadoras repassassem para as empresas de medicina de grupo e para as cooperativas. Depois da ditadura, não haveria mais nenhuma possibilidade de uma política assim, e ela foi revogada. Então, não havia mais incentivo público para alguém ter plano privado de saúde. Mas isso durou muito pouquinho. Depois já voltou a lei que permitia às pessoas físicas e jurídicas deduzir do imposto de renda seu plano privado de saúde. Esse é o principal sustentáculo do plano privado de saúde, não é?

A tese é: quem trabalha no Brasil tem que ter plano privado de saúde. Que os trabalhadores não podem ser atendidos no sistema público, essa é uma noção muito presente em nossa sociedade. Afinal de contas, é uma população diferenciada, que era exatamente o pilar da ruptura do SUS com a seguridade social. Porque o que propusemos não foi o SUS. Propusemos o sistema de seguridade social. Qual era ideia? Da desmercadorização. Mas o que é desmercadorização? Não é não ter empresa privada. Desmercadorização significa o direito fora do mercado de trabalho. O conceito de desmercadorização é isso. Quer dizer, terá direito quem quer que seja, independente de seu vínculo laboral etc. Era isso, mas nós não conseguimos. O vínculo laboral voltou a ser estruturante para a política de saúde.

Por que o vínculo laboral?

Porque a política era conceder isenção de imposto para o empregador dar plano de saúde a seu empregado. É o vínculo laboral de quem paga imposto de renda, e quem paga imposto de renda no Brasil é o trabalhador de classe média. Por isso o vínculo laboral. A política passa a ser diferenciada para os trabalhadores formais. São duas políticas: uma para pobre, outra para trabalhador. E ai vai se construindo um monte de políticas diferenciadas para trabalhadores e para pobres. O Bolsa Família, o Programa de Saúde da Família é para pobres, e a isenção de contribuições e impostos para instituições que se dizem filantrópicas, mas não atendem ninguém do SUS; é claramente uma política de subsídio aos mais ricos. São políticas. A entrada do capital estrangeiro, que intensifica a conglomeração, a verticalização. Política de crédito... Atualmente o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) oferece crédito a essas empresas. Como o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) fez no regime militar. Todas as nossas teses mencionam o FAS. Era um fundo de apoio social da Caixa Econômica Federal que deu na privatização que temos hoje. Isso em 1970. Hoje temos política de crédito, e ninguém fala, ninguém critica. Como se: “Ah, bom, o FAS foi horrível”. E a política de crédito atual, vai dar no quê? Privatização, não é não?

Então, temos três pilares: política fiscal, política para privatização e política de crédito. Fechou o círculo. E temos Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] etc., que apoiam a conglomeração. Então, hoje a gente está diante de um setor capitalista moderno na saúde.

E tem essa conexão promíscua do setor privado com SUS, de a pessoa fazer os exames mais caros pelo SUS, buscar internações pelo SUS.

Isso. Eu diria assim: quanto mais rico for atendido no SUS, melhor; quanto menos o SUS for um sistema para pobre, melhor. Esse é o problema, esse é o fio da navalha. O SUS só deveria atender quem não tem... Não! Não! Põe rico sendo atendido no SUS, porque a única possibilidade de o SUS ser universal é que o diabo dessa chamada classe média entenda isso, que na realidade quando o bicho pega a gente é atendido pelo SUS.

Então essa nova classe média pode ser um fator de mudança?

Não, acho que essa nova classe média seja em si um vetor de mudança. São novos trabalhadores como outros quaisquer, não necessariamente portadores de mudança. Nem são reacionários, nem são fantasticamente revolucionários.

Lígia, se permanece essa adesão maciça da classe média, dos ricos aos planos de saúde, como é que você explica o fato de os planos de saúde não oferecerem mais planos individuais, só por empresas?

Não é verdade que eles não oferecem mais planos individuais. Claro que tem plano individual! Só que é um plano falso coletivo, que a gente tem procurado denunciar. É o Estado que cria o mercado. Houve uma normatização para que pudesse ter esse plano falso coletivo. E quem fez a lei conseguiu emplacar o presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS), que veio da Qualicorp, que é a empresa que faz essa intermediação. Costumo dar esse exemplo porque é muito didático. Primeiro veio a lei, depois a empresa. A lei criou a empresa.

Você não tem plano de saúde?

Eu sou médica, não preciso ter plano de saúde. Minha filha tem plano de saúde. Médico no Brasil é profissional com muita distinção. Enfim, eu acho ruim. Não é à toa que uma das manifestantes contra o “Mais Médicos” disse que a médica cubana parece empregada doméstica. Que bom! Porque nós queremos é que nossos médicos se pareçam com nossa população. Então, médico não paga médico e sempre será muito bem atendido em qualquer lugar. Sem problema. Estudantes de medicina também. Temos um estudante de medicina pobre – dos raros estudantes de medicina pobres – que ficou internado quatro meses no Sírio Libanês, de graça, internado pelo pai de um colega dele que trabalha lá.

Mas essa burocracia pública que o SUS criou também não gera uma cultura própria, algo assim?

Acho que é uma boa pergunta que teria que ser respondida apropriadamente sem pressa, não pode ser ligeira. Você tem toda razão. Uma burocracia imensa e deve ser muito interessante estudar. A resposta não é uma cultura pública universalista. Por quê? Porque essas pessoas querem ter plano privado de saúde. Estou fazendo um contra-ataque, mas acho que seria importante ter isso como um tema de investigação.

Por outro lado, você acha que pelo menos nos centros urbanos mais importantes a população introjetou a ideia de que a saúde é um direito de todos?

Eu acho que a população introjetou a ideia de que tem direitos e que esses direitos podem ser priorizados de maneira diferentes. O que observei é que o SUS tinha desaparecido do discurso governamental e ele voltou na rua com uma conotação positiva, porque ninguém mais falava em SUS. A Dilma só falava em Programa Saúde da Família, Rede Cegonha, porque os marqueteiros tinham constatado que a palavra SUS tinha conotação negativa.E os governantes só falam o que o pessoal do marketing manda.

Uma coisa que todo mundo sinaliza – uma característica desse surto de movimentação social no Brasil e em outros países – é a importância das redes sociais. Por isso é que eu lhe perguntei se era possível reproduzir com os mesmos meios a mobilização que se fez nos anos 1980. Será que as cabeças pensantes não deveriam usar outros instrumentos para poder interferir no debate público? Será que tão importante quanto construir teses densas, textos caudalosos, artigos complexos etc. não seria você produzir pequenos textos, palavras-chave e disseminá-las, e gerar capacidade de mobilização nas redes sociais?

Sem dúvida. Claro que sim. Mas, para isso, não podemos ter uma relação hierárquica com o pessoal mais jovem. E a relação que nós temos é hierárquica.

O SUS tem jeito?

Ah, tem. Claro! O que não tem jeito é o mercado. É sério isso. Sinceramente, eu acho que são duas utopias. O mercado é uma utopia e tem gente que acredita piamente que tudo tem que ser pelo mercado. Na saúde esse pensamento não tem a menor sustentação, porque, no mínimo, a saúde é o mercado imperfeito. Não tem um pensador, nenhum pensador sério, dos mais ortodoxos ao mais, digamos, progressistas, que concorde que a saúde possa ser uma atividade de mercado. Então, eu diria que o SUS é o jeito, e não o SUS tem jeito. Até os Estados Unidos reconheceram que não dá para seguir organizando o sistema de saúde pelo mercado. No Brasil, não. Ainda estamos embevecidos com as possibilidades do mercado, achando maravilhoso o capital estrangeiro, a conglomeração, grandes empresas, como se fosse um sinal de progresso. Mas é sinal de retrocesso, porque as empresas na saúde não são inovadoras, não jogam o Brasil na fronteira da pesquisa, do desenvolvimento. Ao contrário. É um vetor de involução. Não são empresas que acrescentam, que agregam valor – nessa terminologia que eles adoram. Elas estão integradas marginalmente no circuito financeiro; são intermediárias. Mas, volta o pensamento da ditadura militar: se tivermos empresas somos modernos.

E tem essa dimensão da regulação estatal também, que é muito ruim, não é?

Muito ruim. Alguns autores estão dizendo que o problema é a existência da agência de regulação. Eu não concordo com isso.

Por que eles acham isso?

Porque a agência de regulação põe uma pá de cal no que seria um Sistema Único de Saúde. Se tem uma agência de regulação é porque o sistema não é único. Eu não concordo com isso. Eu acho que o problema não é a existência de uma ou outra instituição. O problema é a natureza da instituição; o que essa instituição faz. Mas alguns institucionalistas acham que o problema é a existência da ANS [Agência Nacional de Saúde] e da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], porque naturalmente serão capturadas pelos órgãos para cuja regulação elas foram criadas. Não acho isso. Acho que elas obedecem a uma determinada política e, se a política mudar, elas mudam. Mas, no momento atual, elas estão bastante capturadas. Estou tentando estudar se tem diferença entre ANS e Anvisa; um pouco da formação, dos alicerces, o papel relativo, como é que foi essa arquitetura; o que tem acontecido...

Esses institutos que envolvem altas tecnologias são instituições públicas? Como é a relação do público e privado nessas estruturas?

O SUS não se organizou assim. Não era essa a nossa concepção de arquitetura das instituições do SUS. Não queríamos ter serviços especializados. Pensávamos que eles seriam especializados territorialmente e não por especialidades médicas, o que é totalmente diferente. Então, o que temos? Temos um Instituto [Nacional] de Traumatologia [e Ortopedia – Into] no Rio de Janeiro, porque nosso secretário estadual de Saúde é ortopedista, o que nos remete a oitenta anos antes. É o problema do planejamento. Por que um Instituto de Traumatologia? Por que não ter traumato-ortopedia nos hospitais gerais? É isso que tem que ser ou temos que ter gente que no hospital geral atenda traumatologia de todo mundo, mas vai ter um campus no norte fluminense... Como é que é isso?

Você acha que é um fator decisivo para esse tipo de projeto as empresas que fornecem alta tecnologia?

Não, o fator decisivo para esse projeto é a ambição do secretário estadual de Saúde.

O Into tem um grande número de pacientes que vem de fora, que pega ônibus, viaja tantas horas...

Isso. E aí essas pessoas acham sensacional porque vão ser operados pelo médico que se considera o melhor. Não tem nenhuma importância o transtorno que se causa na vida do paciente, entendeu? Não era assim. A ideia era que o sistema não pode ser centrado na especialidade do gestor de plantão. O sistema tem que ser centrado no paciente, nas necessidades da população.

Houve avanços no processo de desospitalização? Isso pode ser contabilizado como um dos ganhos?

Sim, houve. Eu acho que pode ser contabilizado como ganho do PT, porque esse é um processo interessante. Temos três movimentos: o da reforma sanitária, o da reforma psiquiátrica – que não é PC, não é PT – e o do HIV-Aids – que nem é PC, nem PT, é ONG. São três movimentos. Eu diria que os dois bem-sucedidos são da reforma psiquiátrica e do HIV-Aids. O malsucedido, por todos os motivos do mundo, é o nosso. Mas movimento da desospitalização, o movimento antimanicomial é muito bem sucedido. Já o das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) é malsucedido porque pretende tirar as pessoas dos hospitais e na realidade se torna uma barreira de acesso, ao passo que a Saúde da Família é bem-sucedido. O problema nosso não é ser contra o hospital. Somos contra a medicalização. Achamos que a saúde não é um problema médico, é um problema social, que tem determinação social. Então, não é para ser resolvido por médico. Alguns problemas precisam ser resolvidos no hospital. Outros não. Por exemplo, a questão da obesidade infantil. Como se resolve isso? Não há médico que dê conta disso. Obesidade infantil é problema que se enfrenta como determinação social ou não tem jeito. Em relação ao câncer, há muitos agentes ambientais que causam o câncer, como se resolve isso? O médico de família não pode significar o retorno a um sistema médico centrado. Essa não era a nossa intenção.

Mas há outros atores, agentes que foram enredados nessa estrutura. Agentes comunitários...

Mas todos com essa coisa muito normativa, pouco emancipatória. E esse componente emancipatório, para nós, tinha e tem a maior importância.

Mas você começou nossa conversa lamentando profundamente que o SUS é um SUS sem médicos.

Sim, mas o médico não é esse médico normativo. Teria que ser um médico emancipatório. Teria que ser um médico como acreditávamos que os médicos seriam.

Você, então, defende a liderança dele nesse processo?

Não existe sistema de saúde sem médico. Mas não pode ser com médicos que pensem que saúde é mercado, é mercadoria. Tem que ser um sistema de saúde liderado por médicos que pensem de modo diferente.

Para fechar... você falou que o SUS tem jeito. Qual o jeito e quais os caminhos?

O jeito é pensar o SUS do século XXI. Estamos num outro mundo, e o SUS tem que ser repensado porque o projeto ficou de pé, mas não andou. Estamos propondo repensar a administração, especialmente no que se refere à contratação de pessoal, de ter carreiras para o SUS. Não uma carreira, não um RJU [Regime Jurídico Único], mas uma possibilidade de ter várias carreiras para o SUS. A proposta de um novo SUS é uma proposta de regionalização, mas essas regiões de saúde têm que ser, de fato, construídas. De outro lado, é fundamental que o SUS seja adequadamente financiado. O senso comum generalizado acredita que o SUS tem dinheiro a rodo, que o problema do SUS é a corrupção. Penso que precisamos responder a isso com métodos de administração mais modernos de prestação de contas, de transparência etc. Vamos ter que contornar esse senso comum e demonstrar que existe falta de recurso para o SUS. Esses dois desafios estão colocados e eles estão mais claros. E, se estão mais claros, nós temos o que dizer. Penso que podemos ter uma incidência no debate eleitoral sobre saúde nessas eleições de 2014.

Edição de texto: Amelia Gonzalez

Professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, graduada em medicina pela mesma universidade, com mestrado e doutorado em saúde pública obtidos na Fundação Oswaldo Cruz, Lígia Bahia é uma das defensoras mais incansáveis do Sistema Único de Saúde (SUS), de seus princípios fundadores, na sala de aula, em variados auditórios e em incontáveis artigos científicos, matérias na grande imprensa, entrevistas... Onde houver uma tribuna ou trincheira essa especialista em saúde pública estará fustigando os que ameaçam, sabotam ou deturpam a criação talvez mais bem sucedida dos movimentos sociais que empolgaram multidões à época da ditadura militar e nas primeiras horas da redemocratização. Militante do MR8 e do Partido Comunista Brasileiro, Lígia Bahia participou então ativamente dos movimentos estudantis, foi uma das delegadas da histórica oitava Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e uma das lideranças mais ativas do movimento pela reforma sanitária, que resultou na aprovação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Congresso Constituinte reunido em 1988. Nossa entrevistada foi também diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), um dos núcleos pensantes da reforma sanitária, e integra a diretoria de outra grande alavanca daquele movimento, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), e representou ainda a comunidade científica no Conselho Nacional de Saúde. Lígia Bahia é provocadora, combativa e polêmica em tempos de pouca fibra, de muitas e decepcionantes conversões do pensamento crítico a chapa-branca, de renúncia à postura ética e militante pelos pragmáticos oportunismos eleitoreiros. Por isso é essencial escutar o que ela tem a dizer.

Jaime L. Benchimol