versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.1 São Paulo 2019 Epub 07-Mar-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018222
O autismo é definido por dificuldades sociais, linguísticas e comportamentais.
A comunicação das crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) envolve o foco nos diferentes subsistemas da linguagem, mas as inabilidades de comunicação funcional, ou seja, de competência pragmática é uma das áreas que está sempre alterada nessas crianças(1-3).
As primeiras definições de linguagem pragmática referiam-se ao uso da linguagem em contexto, abrangendo os aspectos verbais e não-verbais(4-6). Atualmente, definições contemporâneas refletem a compreensão de que no desenvolvimento das habilidades pragmáticas de comunicação, os aspectos sociais e emocionais estão interligados. Esses aspectos envolvem o desenvolvimento de competências sociais as quais auxiliam os indivíduos a interpretar e resolver problemas, informações sociais e expectativas situacionais, através do uso de estratégias em contextos espontâneos(7). Nesse sentido, cabe lembrar que o desenvolvimento da competência pragmática não se refere apenas ao contexto imediato, conforme proposto por Bronfenbrenner (7), e sim a uma hierarquia de contextos que influenciam o comportamento humano.
A pragmática pode ser considerada um aspecto ou o núcleo da linguagem(8-10) que organiza a estrutura da língua; ou seja, não é suficiente que a criança fale palavras e frases morfológica e gramaticalmente corretas, com fonologia e semântica apropriadas, é preciso que toda essa composição seja condizente com a intencionalidade do falante e coerente com o contexto social e comunicativo.
A maneira como um interlocutor é percebido influencia decisivamente as escolhas linguísticas, tanto no nível formal como funcional, que são usadas durante a interação. Portanto, a comunicação que se estabelece entre duas pessoas qualifica, valoriza ou, pelo contrário, desqualifica futuras opções interativas (9,11,12). Sabe-se que a família é o primeiro grupo social da criança. Os pais representam a cultura social e também são o primeiro vínculo afetivo da criança. A forma como eles percebem e interagem com seus filhos reflete em sua estrutura psicossocial e processo de inclusão social(13).
A habilidade de uma criança em realizar suas intenções de forma a ser compreendida pelo outro e de compreender as intenções do mesmo, é fundamental para a comunicação e pode ser reconhecida antes de um ano de idade. Assim, as habilidades pragmáticas emergem com a intenção do bebê e a reciprocidade do cuidador para o compartilhamento de afeto, aperfeiçoamento de combinações de olhares (seguir, responder, alternar) e o desenvolvimento de gestos que envolvem modificações de expressões faciais e corporais direcionados ao interlocutor; essas habilidades são essenciais para avaliação de situações do ambiente através da compreensão das referências sociais(9,14,15).
No curso natural de desenvolvimento, antes dos 18 meses as crianças chamam atenção dos outros para si, protestam, solicitam pedidos (de conforto, ação, objeto, informação, rotina social, etc.), imitam e compartilham a atenção, com propósito comunicativo. Nesse período, destaca-se a habilidade de atenção compartilhada, como precursora de desenvolvimento de linguagem. A atenção compartilhada envolve a criança e o adulto em mútuo engajamento com foco em dividir uma situação relacionado a um terceiro objeto, pessoa ou evento. O termo atenção compartilhada(12) também tem sido usado para se referir a um conjunto complexo de comportamentos sócio cognitivos, que emergem no final do primeiro ano de vida (por exemplo, referenciamento social, observar e apontar)(16,17). Prutting e Kirchner(15), afirmaram que o envolvimento entre o cuidador e o bebê funciona como base e molde para aquisição de conhecimento de si, do outro e do mundo.
Progressivamente, as vocalizações que envolvem vogais e/ou consoantes que precedem ou seguem as vogais, podem estar associadas aos gestos no esforço da criança em fazer comentários e indicações sobre seu foco de interesse. Com o surgimento de palavras ou aproximação de palavras, as crianças passam a especificar suas vontades, pois além das funções anteriores, com o surgimento de multipalavras e combinação delas, as crianças usam a linguagem para cumprimentar, nomear espontaneamente, responder mediante perguntas, solicitar ações e respostas, expressar e explicar seus sentimentos e relatar experiências e histórias. Conforme a criança vai se desenvolvendo, seu entendimento adquire níveis mais sofisticados de representação e assim, não são exatamente o número de funções que aumentam, mas a habilidade comunicativa e linguística para expressá-las(9,10,18,19).
Em uma recente revisão sistemática(20) de intervenções de habilidades pragmática para crianças com TEA foram identificadas 20 efetivas intervenções para indivíduos com TEA e os resultados revelaram que as abordagens mais promissoras foram em grupos e aquelas que incluíram a participação ativa da criança e dos seus cuidadores durante o processo de intervenção .
A colaboração entre o fonoaudiólogo e os cuidadores de crianças com TEA é uma importante parceria considerando a linguagem como principal mediador social(13,21-23). Em geral, os membros da família são as pessoas mais próximas e que estão engajadas com a criança nas atividades diárias. Assim, considerar a percepção dos mesmos para compreender a perspectiva de funcionamento comunicativo da criança é também incluir os espaços e contextos para além da intervenção(22,24,25).
Miilher(10) relatou que durante a interação social, os interlocutores consolidam sua competência comunicativa. E, tal competência possui estreita relação com o aumento da sensibilidade em relação ao ouvinte e as condições sob as quais os atos comunicativos ocorrem e são considerados apropriados ou não. No entanto, alguns cuidadores enfrentam desafios para reconhecer e compreender o conjunto de fatores que envolvem as habilidades e competências comunicativas(13).
Portanto, a hipótese desse estudo é que o Programa de Orientações sobre Comunicação para Cuidadores (POCC) de crianças com TEA contribui para mudanças na perspectiva com que pais de crianças com TEA percebem a comunicação de seus filhos.
Assim, o objetivo do presente estudo foi analisar a percepção dos cuidadores de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo quanto ao perfil funcional da comunicação de seus filhos em três momentos (marco zero, intervalo de cinco meses e intervalo de oito meses), antes e depois das orientações.
Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo sob o protocolo número 383/14. Todos os sujeitos estavam cientes dos procedimentos dessa pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
Participaram dessa pesquisa cuidadores de 62 crianças com Transtornos do Espectro do Autismo, diagnosticados por médicos neurologistas, neuropediatras, psiquiatra e psiquiatra infantil, segundo os critérios estabelecidos pela CID - 10 ou pelo DSM - IV, assistidos no sistema de rede privada, em clínica particular, ou rede pública, na, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, no estado do Rio Grande do Sul – Brasil.
Como critérios de inclusão foram considerados: cuidadores de crianças com TEA entre dois e doze anos de idade, com disponibilidade para participar das intervenções propostas. Os fatores excludentes considerados foram: ausência dos cuidadores em mais de dois encontros de orientação ou terapia fonoaudiológica.
Os cuidadores foram divididos em três grupos. A amostra foi realizada por conveniência. Assim, a formação dos grupos e a distribuição dos participantes não foram controladas, ocorreram de acordo com os atendimentos recebidos e disponibilidade dos serviços participantes. Nesse sentido, para esta pesquisa os três grupos de sessões de orientações foram nomeadas de intervenções e as sessões de terapia fonoaudiológica foram nomeadas de tratamento fonoaudiológico.
A seguir será possível visualizar com detalhamento a caracterização da amostra nos três grupos de intervenções.
Grupo 1: Este grupo recebeu o Programa de Orientação Comunicativa para Cuidadores de indivíduos com TEA em grupo e as crianças receberam terapia fonoaudiológica individual. O grupo foi composto por 15 cuidadores sendo 3 (20%) do sexo masculino e 12 (80%) do feminino. A idade média foi 31,7 anos, sendo a mínima de 19 anos e a máxima 56 anos. Quanto à escolaridade: seis (40%) indivíduos possuíam ensino fundamental e nove (60) ensino médio. As crianças eram 13 (86,7%) meninos e duas (13,3%) meninas, com idade média de sete anos, mínima de quatro anos e máxima de 12 anos;
Grupo 2: Este grupo recebeu o Programa de Orientação Comunicativa para Cuidadores de indivíduos com TEA em sessões individuais e as crianças também receberam terapia fonoaudiológica individual. O grupo foi composto por 24 cuidadores sendo nove (37,5%) do sexo masculino e 15 (62,5%) do feminino. A idade média foi 38,4 anos, sendo a mínima de 26 anos e a máxima 48 anos. Quanto à escolaridade: três (12,5%) indivíduos possuíam ensino fundamental, 15 (62,5%) ensino médio e seis (25%) ensino superior. As crianças eram 18 (75%) meninos e seis (25%) meninas feminino, com idade média de cinco anos e dois meses, mínima de dois anos e máxima de 12 anos;
Grupo 3: Este grupo, de crianças cujos pais estavam em fila de espera para atendimento fonoaudiológico para seus filhos, recebeu o Programa de Orientação Comunicativa para Cuidadores de indivíduos com TEA em grupo. O grupo foi composto por 23 cuidadores sendo dois (8,7%) do sexo masculino e 21 do (91,3%) feminino. A idade média foi 33,7 anos, sendo a mínima de 21 anos e a máxima 49 anos. Quanto à escolaridade: três (13%) indivíduos possuíam ensino fundamental, 17 (74%) ensino médio e três (13%) ensino superior. As crianças eram 20 (87%) meninos e três (13%) meninas, com idade média de cinco anos, mínima de dois anos e máxima de oito anos.
O instrumento de avaliação utilizado foi o Perfil Funcional da Comunicação - Checklist (PFC-C) para a investigação dos aspectos funcionais, derivado do Protocolo de Registro da Pragmática(26). Esse questionário investiga os meios comunicativos, sendo eles: meio verbal (quando a emissão possui pelo menos 75% dos fonemas da língua), meio vocal (quando as emissões não atingem 75% de fonemas da língua) e meio gestual (englobando os movimentos de corpo e face).
Avalia também as funções comunicativas, divididas em interpessoais e não interpessoais. As funções interpessoais são: pedido de objeto - PO, pedido de ação - PA, pedido de informação - PI, pedido de consentimento - PC, pedido de rotina social - PS, comentário - C, reconhecimento do outro - RO, protesto - PR, expressão de protesto - EP, narrativa - NA, jogo compartilhado - JC, exibição - E exclamativo - EX. As funções não interpessoais são: reativo - RE, não-focalizado - NF, auto- regulatório - AR, jogo - J, exploratório - XP, performativo - PE e nomeação – N. Esse protocolo investiga também, a ocorrência e o meio comunicativo em relação em relação a cada função comunicativa. A ocorrência pode ser classificada em: (sempre – S, muitas vezes – MV, raramente – R ou nunca - N).
O Programa de Orientações sobre Comunicação para Cuidadores (POCC) de crianças com TEA foi organizado e estruturado de forma contínua, através de cinco sessões de orientações comunicativas. Cada uma das sessões possuia um material de apoio para ser entregue aos cuidadores.
A proposta de orientações aos cuidadores foi dividida em cinco temas apresentados e discutidos com os pais em reuniões mensais. Os tópicos abordados buscaram facilitar o entendimento e o detalhamento do conteúdo, e o material impresso – que deveria ser levado para casa - visou incluir outros membros do ambiente domiciliar, favorecendo o compartilhamento das informações.
Dessa forma, em cada sessão de orientação foi entregue aos cuidadores uma brochura impressa, incluindo: uma parte teórica, uma parte sobre estimulação e uma parte sobre atividades para observações e relatos de experiência sobre suas rotinas.
Na primeira sessão discutiu-se sobre a importância do contexto para o desenvolvimento de habilidades e competências sócio comunicativas.
A segunda sessão, procurou fornecer noções sobre habilidades e competências de linguagem, ou seja, a capacidade de compreender símbolos e usá-los para interação em diferentes contextos. Além disso, discorreu-se sobre a importância dos diferentes meios e funções comunicativas.
Na terceira sessão, o tema foi a importância dos aspectos que envolvem o compartilhamento da atenção, os atos espontâneos e da possibilidade em seguir os interesses da criança para um engajamento ativo.
Na quarta sessão, foram discutidos importantes aspectos sócio comunicativos como a motivação, a validação das emoções, o respeito ao tempo de desenvolvimento de cada criança, a importância dos jogos e brincadeiras simbólicas e a independência. Foram também comentados aspectos mais desafiadores como a monopolização, os comandos excessivos, a distração e a falta de interesses compartilhados.
Na quinta sessão, foram oferecidas orientações sobre como ampliar as possibilidades de comunicação da criança, o suporte para melhorar o desenvolvimento sócio comunicativo e a qualidade da interação da criança na família e na sociedade.
Em todos os grupos as entrevistas foram realizadas pela pesquisadora para coleta dos dados do Perfil Funcional da Comunicação – Checklist de forma individual, com o mesmo cuidador e realizadas em três momentos.
Conforme mencionado, estes procedimentos foram realizados em três momentos, são eles:
1º) Marco zero: foi considerado como o primeiro momento ao qual iniciaram-se as coletas de dados. Foi realizada uma avaliação das percepções dos cuidadores através do protocolo de Perfil Funcional da Comunicação – Checklist;
2º) Intervalo de cinco meses: foi considerado para a primeira reavaliação. O Perfil Funcional da Comunicação – Checklist foi reaplicado logo após a realização das cinco sessões mensais de orientações;
3º) Intervalo de oito meses: foi considerado para a segunda reavaliação, sendo os últimos três meses um período sem orientações. Assim, o Perfil Funcional da Comunicação – Checklist foi novamente respondido.
Grupo 1: Composto por 15 cuidadores de crianças que estavam em terapia fonoaudiológica, por 45 minutos semanais, na rede pública de atendimento. Visando a participação, desempenho e conforto dos participantes, os cuidadores foram subdivididos em três grupos de cinco pessoas para o programa de orientações. Assim, cada grupo de cinco participantes recebeu uma sessão mensal de orientação sobre comunicação. As datas e horários foram pré estabelecidos, com duração de 90 minutos, durante o período de cinco meses;
Grupo 2: Composto por 24 cuidadores de crianças que estavam em terapia fonoaudiológica, por 45 minutos semanais, em clínica particular. Após quatro sessões de terapia fonoaudiológica com a criança, os cuidadores receberam uma sessão de orientação mensal, com 90 minutos de duração. As datas foram definidas no final de cada mês, durante o período de cinco meses;
Grupo 3: Composto por 23 cuidadores que estavam em fila de espera para atendimento fonoaudiológico para seus filhos. Eles receberam uma sessão mensal, de 90 minutos de duração, de orientação sobre comunicação. As datas e horários foram pré estabelecidos, durante o período de cinco meses.
Nas sessões de terapia fonoaudiológica foram estabelecidas situações e contextos comunicativos diversos, conforme as atividades (jogos, brinquedos e brincadeiras) propostas pelo terapeuta ou escolhidas pelas crianças.
Com relação às sessões de orientações, elas eram sempre iniciadas com a apresentação do tópico pela pesquisadora e a entrega de material impresso que incluía uma parte com informações sobre o tópico, uma parte abordando as possibilidades de estimulação e uma ultima parte com atividades para observações e relatos de experiência. Cada sessão era iniciada com o relato de um episódio de acontecimentos real e natural entre cuidador e criança, buscando a associação dos temas das orientações ao cotidiano natural da família.
Para a análise estatística foram utilizados os Modelos de Equações de Estimativas Generalizadas (GEE). Esses modelos foram calculados a partir da estatística de Wald, ao longo dos tempos marco zero, e intervalos de cinco e oito meses.
Os modelos selecionados foram definidos de acordo com a distribuição da variável dependente (Normal ou Poisson). A correção de Bonferroni foi aplicada aos valores de P em decorrência de múltiplos testes. Uma vez que um P foi significativo para um α=0,0009, foi realizada a análise Post Hoc também corrigida pelo método de Bonferroni. Os dados foram apresentados como média (desvio padrão) e intervalo de confiança de 95% (IC 95%) e n (%), conforme indicados nas legendas e nos rodapés das figuras e das tabelas.
Os resultados serão apresentados segundo a percepção dos cuidadores em relação às funções comunicativas interpessoais e não interpessoais expressas pelas crianças e quanto ao meio comunicativo usado para expressá-las, nas diferentes intervenções, ou seja, nos três grupos participantes, nos diferentes tempos analisados e estão representadas na Tabela 1 e nas Figuras 1 e 2 .
Tabela 1 Modelos de Equações de Estimativas Generalizadas na análise dos efeitos das intervenções ao longo do tempo na percepção dos cuidadores quanto aos meios comunicativos (gestual, vocal e verbal) usados para expressar funções comunicativas interpessoais e não interpessoais de seus filhos
Variáveis | Qui-quadrado de Wald |
gl | Valor P | Valor P Corrigido |
---|---|---|---|---|
Interpessoal | ||||
Gestual | ||||
Tempo | 39,8 | 2 | <0,000001 | <0,000001 |
Intervenção | 1,5 | 2 | 0,462361 | 1 |
Tempo*Intervenção | 7,7 | 4 | 0,104414 | 0,626484 |
Vocal | ||||
Tempo | 36,4 | 2 | <0,000001 | <0,000001 |
Intervenção | 1,5 | 2 | 0,467065 | 1 |
Tempo*Intervenção | 11,7 | 4 | 0,019399 | 0,116394 |
Verbal | ||||
Tempo | 32,9 | 2 | <0,000001 | <0,000001 |
Intervenção | 0,7 | 2 | 0,700892 | 1 |
Tempo*Intervenção | 4,8 | 4 | 0,312452 | 1 |
Não interpessoal | ||||
Gestual | ||||
Tempo | 14,5 | 2 | 0,000705 | 0,004230 |
Intervenção | 5,6 | 2 | 0,061443 | 0,368658 |
Tempo*Intervenção | 9,1 | 4 | 0,059810 | 0,358860 |
Vocal | ||||
Tempo | 3,9 | 2 | 0,140263 | 0,841578 |
Intervenção | 4,4 | 2 | 0,109048 | 0,654288 |
Tempo*Intervenção | 10,4 | 4 | 0,034489 | 0,206934 |
Verbal | ||||
Tempo | 13,3 | 2 | 0,001322 | 0,007932 |
Intervenção | 3,2 | 2 | 0,201932 | 1 |
Tempo*Intervenção | 6,5 | 4 | 0,163600 | 0,981600 |
Legenda: gl = graus de liberdade
Legenda: POCC = Programa de Orientação sobre Comunicação para Cuidadores; TTOfono = tratamento fonoaudiológico; ns = não significativo
Figura 1 Efeitos das intervenções ao longo do tempo quanto à percepção do uso de funções comunicativas interpessoais, expressas pelos diferentes meios comunicativos, pelos cuidadores. As setas vermelhas sinalizam o post-hoc da variável “Tempo*Intervenção”, enquanto que a barra cinza sinaliza o efeito da variável “Tempo”. *P ≤ 0,050; **P ≤ 0,010; ***P ≤ 0,001. Os dados estão expressos como média e intervalo de confiança de 95%
Legenda: POCC = Programa de Orientação sobre Comunicação para Cuidadores; TTOfono = tratamento fonoaudiológico; n.s. = não significativo
Figura 2 Efeitos das intervenções ao longo do tempo quanto à percepção do uso de funções comunicativas não interpessoais, expressas pelos diferentes meios comunicativos, pelos cuidadores As setas vermelhas sinalizam o post-hoc da variável “Tempo*Intervenção”, enquanto que a barra cinza sinaliza o efeito da variável “Tempo”. *P ≤ 0,050; **P ≤ 0,010. Os dados estão expressos como média e intervalo de confiança de 95 %
A Tabela 1 apresenta a estatística das três variáveis: tempo, intervenção e interação (tempo*intervenção) testadas nos modelos de MEEG (Modelos de Equações de Estimações Generalizadas), demonstrando os efeitos principais para cada meio comunicativo usado para expressar as funções interpessoais e não interpessoais. Estes resultados também estão representados nas Figuras 1 e 2 .
Em relação à percepção das funções comunicativas interpessoais, os cuidadores relataram o aumento da ocorrência dos meios gestual e verbal em todos os grupos de intervenções, na primeira reavaliação, aos cinco meses, quando comparados ao marco zero. Na segunda reavaliação, aos oito meses, três meses depois do final das orientações, observou-se uma diminuição na utilização destes meios; mesmo assim essa proporção manteve-se maior que no marco zero. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre os grupos de intervenção.
Quanto ao meio vocal, não houve mudança ao longo do tempo no G1. No entanto, os cuidadores dos outros dois grupos G2 e G3, perceberam um aumento do uso do meio comunicativo vocal para expressar funções comunicativas mais interpessoais aos cinco meses quando comparadas ao marco zero. Na reavaliação dos oito meses notaram a diminuição da ocorrência deste meio, mas ela continuou maior do que no marco zero.
Em relação às funções comunicativas não interpessoais, os cuidadores notaram a diminuição do uso do meio comunicativo gestual na primeira reavaliação, aos cinco meses quando comparado ao marco zero, sem mudança para os oito meses. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos de intervenção.
Quanto à percepção do uso do meio comunicativo vocal para expressar as funções comunicativas não interpessoais, os cuidadores do G2 notaram um aumento na ocorrência na primeira reavaliação retornando aos níveis iniciais aos oito meses. Nos outros dois grupos, G1 e G3 não foram percebidas mudanças estatisticamente significativas ao longo do tempo. Os cuidadores perceberam o aumento da ocorrência do meio verbal quando comparado ao marco zero para os cinco meses e isso não mudou aos oito meses, nos três grupos, sem diferença estatística entre os mesmos.
O instrumento escolhido para o presente estudo frequentemente é empregado para complementar a avalição do Perfil Funcional da Comunicação das crianças com TEA. O PFC-Checklist tem sido utilizado essencialmente por terapeutas de linguagem como uma forma alternativa de avaliação das frequências de ocorrências de cada função comunicativa e sua forma de expressão (26).
Nesse estudo, o objetivo foi avaliar, na percepção dos cuidadores, a funcionalidade comunicativa de seus filhos, através do PFC-Checklist. Isso foi determinado pois o objetivo era verificar as mudanças nas perspectivas de pais de crianças com distúrbios do espectro do autismo, a respeito da comunicação de seus filhos, a partir de um conjunto de orientações dirigidas a esse tema.
Sabe-se que a utilização de procedimentos que possam avaliar a linguagem deve ser minuciosa e de preferência bidimensional(27). A avaliação da competência comunicativa inclui uma compreensão clara dos contextos onde a criança usa suas habilidades linguísticas. Por essa razão, como optou-se por investigar os cuidadores. Foram analisadas apenas as funções interpessoais e não interpessoais e os meios comunicativos: gestual, vocal e verbal, observados pelos pais ao longo do tempo.
É possível relatar que os cuidadores perceberam um aumento do uso do meio gestual para expressar as funções comunicativas interpessoais nos três grupos de intervenções propostas. Gestos como mostrar, apontar, entregar, trazer, alternados com o olhar, constituem formas não verbais de fazer convites, comentários, perguntas para obter informações ou esclarecimentos sobre objetos, como o que são e para que servem e todo esse movimento engendra complexas cadeias de interação social(9,14,15). É nessa conjunção, de troca de olhares, de gestos, de atribuições de significados e envolvimento mútuo entre cuidador e criança, que funciona como a base a partir do qual a criança aprende sobre si mesma, o outro e o mundo(20,28).
Por outro lado, após o período de três meses do término das orientações os cuidadores passaram a perceber uma diminuição estatisticamente significativa na ocorrência do meio comunicativo gestual em todos os grupos, porém ainda assim, as médias se mantiveram maiores quando comparadas ao marco zero.
Quanto à análise entre meio e função comunicativos, nota-se uma tendência contrária ao analisar-se o uso do meio gestual para expressar funções comunicativas não interpessoais. Em todas as intervenções os cuidadores perceberam uma diminuição estatisticamente significativa do uso do meio comunicativo gestual do marco zero para o intervalo de 5 meses.
Além disso, esses resultados podem estar relacionados com os tópicos abordados na segunda sessão de orientações, direcionadas às formas e meios comunicativos. Uma possibilidade é que os cuidadores tenham ficado mais atentos aos movimentos e gestos apresentados por seus filhos.
Notou-se que, tanto em relação às funções comunicativas interpessoais quanto às não interpessoais, o meio comunicativo vocal diferiu-se dos demais. Quanto às funções comunicativas interpessoais, identificou-se uma percepção de aumento significativo dos cuidadores quanto ao uso do meio vocal entre marco zero e o intervalo de 5 meses nos G1 e G3. Nota-se, no entanto, uma percepção estatisticamente significativa de diminuição desses relatos entre o intervalo de 5 e 8 meses, mas ainda com relatos de maior frequência do que no marco zero. No G1 não foi possível notar mudanças ao longo do tempo quanto à utilização das funções interpessoais expresso no meio comunicativo vocal.
Por outro lado, em todos os grupos de intervenção, houve uma percepção de maior frequência dos cuidadores na utilização das funções não interpessoais, ou seja, o meio comunicativo vocal foi estatisticamente significativo do marco zero para o intervalo de 5 meses, porém no segundo intervalo, retornou ao nível do marco zero.
Essas variações apresentadas no uso do meio comunicativo vocal remetem à ideia de Wetherby(26), no sentido de que a partir do conhecimento que os cuidadores têm a respeito das possibilidades de manifestações sobre a comunicação de seus filhos, passam a refinar suas percepções e, provavelmente, atos ou emissões consideradas tipicamente não comunicativas, foram avaliados de forma diferente, podendo ou não ser considerados interativos. Assim, pode-se inferir que os cuidadores parecem estar atentos às formas como seus filhos se comunicam. Ater-se a isso pode aumentar as possibilidades de comunicação e melhorar a sincronia da linguagem dos cuidadores com seus filhos(28).
Esses fatos são importantes, pois inúmeras vezes as crianças apresentam intencionalidade, entretanto, algumas delas de forma isolada; outras vezes, as crianças possuem iniciativa de interação, mas não conseguem dar continuidade após a primeira troca de turnos; ou ainda, respondem à interação, mas não se engajam numa atividade de trocas que envolvam vários turnos de comunicação (10,14,18,29). Assim, foi possível perceber o quão vigilante parecem estar os cuidadores para as formas como seus filhos se comunicam e estar atento a isso pode aumentar as possibilidades de comunicação e melhorar a sincronia da linguagem dos cuidadores com seus filhos(28).
Com relação ao meio verbal, os cuidadores relataram uma percepção do aumento do uso, tanto para expressar funções interpessoais quanto não interpessoais entre o marco zero e o intervalo de 5 meses, nos três grupos.
Cabe ressaltar que, os cuidadores do G3 também perceberam seus filhos como mais eficientes na comunicação, assim como aqueles que receberam terapia de linguagem.
Com esses resultados, emergem algumas reflexões, pois dependendo da apreciação, esses dados assumem níveis diferentes de importâncias. Para este estudo, um dos dados mais relevantes é a movimentação da percepção sobre comunicação dos cuidadores, ou seja, mais importante do que o aumento ou a diminuição dessa frequência é a possibilidade de julgamento dos mesmos a respeito da comunicação apresentada por seus filhos, conforme os resultados apresentados. Segundo Wetherby(30), os atos e as funções comunicativas são carregados de informações em seus conteúdos podendo ou não ter um propósito no outro e, nesse sentido, os pais parecem ter atribuído significados a muitas dessas manifestações.
Como mencionado, sabe-se que as teorias pragmáticas, consideram o contexto extremamente importante para a comunicação desde o período pré verbal; ou seja, antes mesmo de emitir as primeiras palavras a criança é capaz de responder às iniciativas sociais, com a emergência de habilidades que subjazem as trocas conversacionais. Dados esses, que convergem com pesquisas(28,30) que demonstraram que o contexto, os comportamentos parentais atentos e responsivos, preveem, subsequentes ganhos de linguagem em crianças com TEA, como é possível observar através desses resultados, segundo seus cuidadores.
Refletindo o curso do desenvolvimento das funções e meios comunicativos, os cuidadores crianças do espectro do autismo demonstraram relativamente, entre os grupos estudados nessa pesquisa, um perfil homogêneo, qualitativamente e quantitativamente. Nesse sentido pode-se inferir, com base nos resultados, que, independente da abordagem, o espaço clínico pode ser compreendido como potencializador de transformações em relação às necessidades da família, uma vez que os cuidadores perceberam mudanças na análise do perfil comunicativo de seus filhos, ao longo do processo.
De uma forma geral, foi possível identificar aumentos nas médias obtidas a partir dos relatos dos cuidadores quanto as ocorrências dos meios comunicativos, principalmente nas funções comunicativas interpessoais. No entanto, não é habitual que essas crianças tenham uma evolução rápida em tão pouco tempo, sugerindo que provavelmente os resultados dessa pesquisa estejam relacionados aos olhares dos cuidadores. Independente das hipóteses levantadas, isso demonstra um efeito positivo nos três grupos de intervenções, ao longo do tempo.
Assim como descrito por diversos autores(19,28) e comitê em pesquisa(21) sobre intervenções dirigidas às alterações de linguagem, foi possível identificar progresso na percepção dos cuidadores quanto ao desenvolvimento da linguagem em termos de flexibilidade nos usos dos meios e funções comunicativas por todos os sujeitos da pesquisa. Esses progressos nas três intervenções propostas demandam outros estudos que busquem investigar não apenas a iniciativa comunicativa percebida pelos cuidadores, mas também o contexto e as respostas dadas a elas, além do desempenho efetivo das crianças e a relação entre esse desempenho e a percepção dos cuidadores.
Cabe ressaltar que uma limitação a ser considerada no presente estudo diz respeito aos intervalos de tempo. Na tentativa de minimizar a perda de sujeitos optou-se por antecipar a segunda reavaliação, adotando um intervalo de três meses ao invés de cinco meses.
A hipótese desse estudo, de que seria possível produzir mudanças positivas na perspectiva com que pais de crianças com TEA percebem a comunicação de seus filhos a partir de um Programa de Orientações sobre Comunicação para Cuidadores (POCC) de crianças com TEA pode ser considerada confirmada a partir da detecção de diferenças na percepção dos cuidadores a respeito da funcionalidade da comunicação de seus filhos. O fato de que resultados semelhantes foram obtidos a partir de diferentes estratégias de apresentação e discussão dos temas parece indicar que elas podem se constituir em alternativas que podem ser aplicadas em diferentes contexto e a diferentes realidades.