versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.92 no.1 Porto Alegre jan./fev. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2015.04.006
A prevalência da obesidade tem aumentado de forma significativa nas últimas décadas tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. No Brasil, aproximadamente um terço das crianças entre cinco e nove anos apresentam excesso de peso.1 Entre os adolescentes do sexo masculino e feminino, a prevalência é de 21,7% e 19,4%, respectivamente.1
Com o aumento da obesidade, verificou-se o aparecimento, em crianças e adolescentes, de diabetes melittus tipo 2, esteatose hepática e problemas ortopédicos, bem como do maior risco para complicações cardiovasculares como hipertensão, dislipidemia, aterosclerose e doença coronariana, o que resultou na redução da expectativa de vida. 2 Em curto prazo, as principais repercussões da obesidade na faixa etária pediátrica ocorrem no âmbito psicossocial, como baixa autoestima, sintomas depressivos, maior exposição a discriminações e provocações e comprometimento da qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS).3
Vários estudos sublinham o impacto negativo na percepção de bem-estar tanto na dimensão física quanto psicossocial de crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade, referida pelas próprias crianças ou pelos seus responsáveis ou cuidadores. Essa avaliação da QVRS na população pediátrica pode ser problemática, dadas as possíveis dificuldades cognitivas relacionadas à interpretação dos itens.4 Nesse contexto, a percepção dos cuidadores configura-se uma opção muito útil para a avaliação da qualidade de vida de crianças e adolescentes.4
O Child Health Questionnaire - Parent Form 50 (CHQ-PF50) é um instrumento genérico validado para a língua portuguesa do Brasil e muito usado na literatura para a avaliação da qualidade de vida de crianças e adolescentes com doenças crônicas sob a perspectiva dos pais. Apenas um estudo usou o CHQ-PF50 para verificar a percepção de bem-estar de crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade. No entanto, a confiabilidade da consistência interna do instrumento não foi verificada, o que compromete a interpretação dos resultados.5
Este estudo tem por objetivo avaliar a QVRS de crianças/adolescentes com sobrepeso/obesidade e possíveis fatores associados, sob a perspectiva dos pais ou cuidadores, por meio do CHQ-PF50.
Trata-se de um estudo transversal aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (129/05).
Foram convidados para participar do estudo cuidadores (pais ou responsáveis) de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas e particulares, entre nove e 12 anos, em estado de sobrepeso, obesidade e eutrofia. A seleção de escolas públicas e privadas deu-se de maneira a permitir a inclusão de crianças e adolescentes de níveis socioeconômicos e culturais diversos, já que essa variável parece contribuir tanto para a prevalência de sobrepeso/obesidade quanto para a qualidade de vida.3 O início da puberdade foi escolhido por ser, geralmente, associado a maior vulnerabilidade física e psicológica decorrente das mudanças próprias dessa fase.6 Os cuidadores que concordaram em participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e responderam ao questionário sociodemográfico e ao CHQ-PF50 de forma autoaplicada.
Considerando-se uma prevalência de 2% para obesidade e de 10% para sobrepeso,7 um erro máximo de 5% e o número de crianças e adolescentes matriculados na primeira fase do ensino fundamental das escolas particulares e públicas da cidade do estudo, o número mínimo para o tamanho da amostra foi de 138 pais de crianças/adolescentes com sobrepeso/obesidade.
As medidas antropométricas foram tomadas conforme descreve a Organização Mundial de Saúde (OMS).8 Para verificação do peso, foi usada balança tipo plataforma da marca Marte(r) (Marte Científica, MG, Brasil), com capacidade para pesar até 200 kg e divisão de 50 g; a altura foi aferida com fita métrica de 150 cm de extensão, com precisão de 1 mm, e auxílio de um esquadro de madeira.
O estado nutricional das crianças e adolescentes foi avaliado por meio do índice antropométrico Índice de Massa Corporal (IMC = Peso/Altura2) para idade, expresso como a diferença entre o valor observado e o valor de referência para idade e sexo, em afastamento da média quantificada em percentis, segundo a população de referência. O padrão antropométrico do Center for Disease Control (CDC) foi usado como referência, com as seguintes definições: eutrofia (IMC ≥ Percentil 5 e < Percentil 85), sobrepeso (IMC ≥ Percentil 85 e < Percentil 95) e obesidade (IMC ≥ Percentil 95).9 Apesar desse critério não ser usado no Brasil como referência para o diagnóstico nutricional, o padrão antropométrico do CDC é usado pela maioria dos estudos de qualidade de vida de crianças e adolescentes com obesidade10 e seu uso permite melhor comparação e universalização dos resultados. Além disso, em comparação com os critérios da OMS, o padrão do CDC apresenta menor sensibilidade e maior especificidade,11 mais apropriado para o presente estudo, pois seu objetivo não é avaliar risco ou prevenção.
Após a seleção das escolas integrantes do estudo por meio de sorteio, os respectivos diretores ou coordenadores foram contatados para o esclarecimento dos objetivos da pesquisa e para posterior permissão para a feitura do trabalho.
Foram tomadas as medidas antropométricas de peso e estatura e calculado o IMC para a classificação do estado nutricional das crianças e adolescentes do quarto ao sétimo ano do ensino fundamental, entre nove e 12 anos. Crianças e adolescentes com sobrepeso, obesidade ou eutrofia foram selecionadas por meio de sorteio de acordo com o plano amostral. A seguir, seus cuidadores foram contatados por telefone para receber explicações quanto aos objetivos do estudo e participar da pesquisa. Foram excluídas crianças e adolescentes com diagnóstico, segundo critérios do CDC,9 de baixo peso (IMC < Percentil 5) e de baixa estatura para idade (estatura < Percentil 3).
Questionário sociodemográfico
Instrumento com informações sobre a criança (data de nascimento, sexo) e informações pessoais dos cuidadores (idade, grau de escolaridade, estado civil, renda familiar).
Child Health Questionnaire - CHQ-PF50
Trata-se de um instrumento genérico de avaliação da Qualidade de Vida Relacionada à Saúde (QVRS), traduzido, adaptado culturalmente e validado para a língua portuguesa, destinado a crianças acima de cinco anos e adolescentes.12 O CHQ-PF50 tem caráter multidimensional e determina o bem-estar físico, emocional e social, sob a perspectiva dos pais ou responsáveis. O questionário consiste de 50 itens que compõem 15 escalas: saúde global, função física, limitações devido aos aspectos emocionais limitações devido à função física, dor corporal, comportamento, comportamento global, saúde mental, autoestima, percepção de saúde, alteração de saúde, impacto emocional nos pais, impacto no tempo dos pais, atividades familiares e coesão familiar. A avaliação de cada item usa o método de pontos somados - método de Likert. A pontuação final de cada escala varia de 0 a 100. Escores mais altos indicam melhor função ou sensação, consequentemente, melhor qualidade de vida. Os escores são usados para comparação entre grupos e não há um valor de corte.12 A maioria das escalas refere-se às vivências nas quatro últimas semanas, exceto a escala alteração de saúde, que se refere às experiências dos últimos 12 meses. Dez escalas são usadas para compor dois sumários: físico e psicossocial.12
A análise descritiva foi usada para a caracterização sociodemográfica e clínica das crianças e adolescentes e de seus cuidadores. Para a comparação dos dados sociodemográficos entre os grupos foi aplicado o teste t de Student (variáveis contínuas) e o teste do qui-quadrado (variáveis categóricas).
A confiabilidade da consistência interna foi verificada pelo coeficiente de a-Cronbach para cada escala multi-item e foi considerado 0,5 como valor mínimo aceitável para avaliação da consistência interna do instrumento.13 No presente estudo, o coeficiente de alfa-Cronbach foi maior do que 0,5 em todos os domínios do CHQ-PF50, exceto no domínio percepção de saúde (alfa Cronbach = 0,21), fato que tem ocorrido na versão brasileira do instrumento.13
O teste t de Student foi usado para a comparação dos escores médios dos domínios e componentes do CHQ-PF50 de crianças e adolescentes com sobrepeso/obesidade e eutrofia e também para a comparação dos escores do CHQ-PF50 de acordo com o sexo das crianças/adolescentes no grupo de sobrepeso/obesidade. A magnitude das diferenças estatisticamente significativas foi calculada a partir da determinação do tamanho do efeito (d de Cohen). Valores de d iguais a 0,2; 0,5 e 0,8 são interpretados como tamanhos de efeito pequeno, médio e grande, respectivamente. 14
As correlações entre os domínios do questionário e os dados sociodemográficos foram avaliadas pelo coeficiente de correlação de Spearman. Para a determinação do valor preditivo das variáveis estudadas para a os escores de QVRS da população estudada, usou-se a análise por regressão múltipla hierárquica.
Os dados foram analisados com o SPSS Statistics (IBM Corp. Released 2011. IBM SPSS Statistics para Windows, versão 20.0, NY, EUA). O nível de significância para a rejeição da hipótese de nulidade considerado foi de p < 0,05.
Foram convidados a participar do estudo 360 cuidadores de crianças e adolescentes. Foram excluídos 63 devido a dados incompletos no CHQ-PF50. Portanto, o estudo contou com 297 cuidadores de crianças e adolescentes eutróficos (n = 170) e com sobrepeso/obesidade (n = 127). A idade das crianças e adolescentes variou de nove a 12 anos (média de 10,6 anos para eutróficos e de 10,63 para sobrepeso/obesidade). A maioria dos cuidadores era mãe, com ensino fundamental completo (tabela 1).
Tabela 1 Características sociodemográficas de pais/responsáveis e crianças/adolescentes participantes
Características | Eutrofia n = 170 | Sobrepeso/Obesidade n = 127 | p valor |
---|---|---|---|
Crianças | |||
Idade média em anos (DP) | 10,62 (1,08) | 10,61 (1,40) | 0,98a |
Sexo feminino n (%) | 101 (59,4%) | 54 (42,5%) | <0,01b |
| |||
Cuidadores | |||
Idade média em anos (DP) | 36,78 (7,23) | 37,98 (6,85) | 0,15a |
Principal cuidador | |||
Mãe n (%) | 153 (90,0%) | 120 (94,5%) | 0,34b |
Escolaridade n (%) | 0,61b | ||
Analfabeto | 2 (1,2%) | 1 (0,8%) | |
Ensino fundamental | 69 (40,6%) | 51 (40,2%) | |
Ensino médio | 55 (32,4%) | 49 (38,6%) | |
Ensino superior | 44 (25,9%) | 26 (20,5%) | |
Estado Civil n (%) | 0,64b | ||
Casado | 106 (62,4%) | 83 (65,4%) |
aTeste t de Student.
bQui-quadrado.
Pais de crianças e adolescentes com sobrepeso/obesidade atribuíram menores escores do CHQ-PF50 nos domínios: função física (p < 0,01; d = 0,49), autoestima (p < 0,01; d = 0,38), impacto emocional dos pais (p < 0,05; d = 0,29), coesão familiar (p < 0,05; d = 0,26), sumário do escore físico (p < 0,05; d = 0,29) e sumário do escore psicossocial (p < 0,05; d = 0,25) (tabela 2).
Tabela 2 Escores de qualidade de vida obtidos por meio do CHQ-PF50 de crianças/adolescentes de acordo com estado nutricional
Escalas e | Média (DP) | ||||
---|---|---|---|---|---|
Sumários | Eutrofia | Sobrepeso/Obesidade | F | p a | db |
SG | 83,06 (18,29) | 78,78 (19,79) | 5,88 | 0,06 | |
FF | 95,16 (12,54) | 88,98 (20,97) | 27.51 | <0,01 | 0,49 |
LE | 90,39 (19,26) | 89,59 (19,23) | 0,06 | 0,72 | |
LFF | 94,61 (16,87) | 91,60 (17,68) | 4,51 | 0,14 | |
DOR | 83,71 (20,55) | 81,81 (22,59) | 2,76 | 0,45 | |
C | 72,26 (17,35) | 69,92 (17,05) | 0,24 | 0,25 | |
CG | 80,93 (20,54) | 78,74 (22,02) | 1,87 | 0,38 | |
SM | 74,35 (14,80) | 73,98 (14,98) | 0,49 | 0,83 | |
AE | 89,00 (17,66) | 82,32 (16,01) | 0,86 | <0,01 | 0,38 |
OS | 72,35 (14,45) | 70,77 (14,72) | 0,06 | 0,36 | |
AS | 74,12 (24,31) | 70,08 (25,79) | 3,34 | 0,17 | |
EP | 75,93 (22,67) | 69,36 (25,37) | 5,10 | 0,02 | 0,29 |
TP | 90,39 (17,13) | 87,05 (18,51) | 3,45 | 0,11 | |
AF | 88,43 (12,79) | 87,66 (15,00) | 5,40 | 0,64 | |
CF | 75,00 (22,31) | 69,17 (24,83) | 4,98 | 0,04 | 0,26 |
SEF | 51,86 (5,71) | 50,18 (7,70) | 7,37 | 0,03 | 0,29 |
SEP | 48,46 (7,46) | 46,56 (7,52) | 1,71 | 0,03 | 0,25 |
SG, saúde global; FF, função física; LE, limitações, devido aos aspectos emocionais; LFF, limitações, devido à função física; DOR, dor corporal; C, comportamento; CG, comportamento global; SM, saúde mental; AE, autoestima; OS, percepção de saúde; AS, alteração de saúde; EP, impacto emocional nos pais; TP, impacto no tempo dos pais; AF, atividades familiares; CF, coesão familiar; SEF, sumário do escore físico; SEP, sumário do escore psicossocial.
aTeste t de Student.
bd de Cohen.
Não foram observadas diferenças entre as médias dos escores dos domínios do CHQ-PF50 das crianças e adolescentes com sobrepeso/obesidade de acordo com o sexo (p > 0,05) (dados não demonstrados).
As correlações entre os dados sociodemográficos e os domínios do CHQ-PF50 foram fracas (r < 0,30), exceto entre estado nutricional (sobrepeso/obesidade ou eutrofia) e autoestima (AE) (p < 0,01) (tabela 3).
Tabela 3 Coeficientes de correlação de Spearman entre escores de qualidade de vida obtidos por meio do CHQPF-50 e variáveis sociodemográficas das crianças e adolescentes do estudo
EN | SG | FF | LE | LFF | C | CG | SM | AE | EP | TP | AF | CF | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
EN | 1 | ||||||||||||
SG | -0,1 | 1 | |||||||||||
FF | -0,2b | 0,2b | 1 | ||||||||||
LE | 0,0 | 0,2b | 0,4b | 1 | |||||||||
LFF | -0,1a | 0,2b | 0,3b | 0,6b | 1 | ||||||||
C | -0,1 | 0,4b | 0,2b | 0,3b | 0,2b | 1 | |||||||
CG | 0,0 | 0,4b | 0,1 | 0,2b | 0,1 | 0,5b | 1 | ||||||
SM | 0,0 | 0,3b | 0,2b | 0,2b | 0,1a | 0,5b | 0,3b | 1 | |||||
AE | 0,3b | 0,2b | 0,2b | 0,2b | 0,2b | 0,3b | 0,2b | 0,3b | 1 | ||||
EP | -0,1a | 0,3b | 0,3b | 0,3b | 0, 2b | 0,4b | 0,2b | 0,3X | 0,3b | 1 | |||
TP | -0,1 | 0,2b | 0,4b | 0,4b | 0,3b | 0,3b | 0,2b | 0,2 | 0,2b | 0,5b | 1 | ||
AF | 0,0 | 0,3b | 0,4b | 0,4b | 0, 3b | 0,4b | 0,4b | 0,4b | 0,3b | 0,5b | 0,5b | 1 | |
CF | -0,1a | 0,3b | 0,1 | 0,0 | 0,1 | 0,3b | 0,4b | 0,2b | 0,1 | 0,2b | 0,1a | 0,2b | 1 |
SG, saúde global; FF, função física; LE, limitações, devido aos aspectos emocionais; LFF, limitações, devido à função física; C, comportamento; CG, comportamento Global; SM, saúde mental; AE, autoestima; EP, impacto emocional nos pais; TP, impacto no tempo dos pais; AF, atividades familiares; CF, coesão familiar; EN, estado nutricional. Teste de Correlação de Spearman.
ap < 0,05.
bp < 0,001.
Para as análises multivariadas dos domínios do CHQ-PF50, foram escolhidos os domínios de QVRS que diferiram entre si nas comparações de acordo com o estado nutricional como variáveis dependentes na análise de regressão múltipla. Como variáveis independentes, foram selecionados o estado nutricional (sobrepeso/obesidade/eutrofia) e os domínios de QVRS com coeficientes de correlação acima de 0,3 (r ≥ 0,3) com as variáveis dependentes. Para a variável dependente função física, obteve-se um modelo grande explicação da variância (R2 = 0,39; p < 0,05) para as variáveis estado nutricional, limitações devido aos aspectos emocionais, limitações devido à função física, impacto no tempo dos pais e atividades familiares. A variável que mais contribuiu para o modelo foi impacto no tempo dos pais (ß = 0,23; p < 0,05). Para a variável dependente autoestima, obteve-se um modelo com pequena explicação da variância (R2 = 0,10; p ≤ 0,01) com as variáveis estado nutricional, comportamento, saúde mental. A variável que mais contribuiu de forma negativa para o modelo foi o estado nutricional (ß = -0,18; p ≤ 0,01). Para a variável dependente impacto emocional nos pais, obteve-se um modelo com grande explicação da variância (R2 = 0,28; p < 0,05) para as variáveis estado nutricional, saúde global, comportamento, saúde mental, atividades familiares e impacto no tempo dos pais e a variável que mais contribuiu para o modelo foi impacto no tempo dos pais (ß = 0,31; p < 0,05). Já para o domínio coesão familiar como variável dependente, observamos resultados significativos nos dois modelos (p < 0,05), com moderada explicação da variância com as variáveis estado nutricional, saúde global, comportamento e comportamento global (R2 = 0,23; p < 0,05). A variável que mais contribuiu para o modelo foi o comportamento global (ß = 0,30; p < 0,05) (tabela 4). Os sumários físico e psicossocial foram excluídos das análises de regressão múltipla para evitar o fenômeno da multicolinearidade.
Tabela 4 Modelos de regressão linear múltipla para associações entre percepção de autoestima, estado nutricional e domínios psicológicos de qualidade de vida (continua)
Modelo 1 | Modelo 2 | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Função física | ||||||
R2 ajustado | 0,03 | 0,38 | ||||
pa | <0,01 | <0,01 | ||||
ß | p | CI 95% | ß | P | CI 95% | |
Constante | <0,01 | [92,65; 97,68] | <0,01 | [12,06; 35,17] | ||
Estado nutricionalb | -0,18 | <0,01 | [-10,04; -2,34] | -0,13 | <0,01 | [-7,69; -1,48] |
LE | 0,18 | <0,01 | [0,06; 0,27] | |||
LFF | 0,19 | <0,01 | [0,08; 0,30] | |||
TP | 0,23 | <0,01 | [0,12; 0,33] | |||
AF | 0,18 | <0,01 | [0,08; 0,35] | |||
| ||||||
Autoestima | ||||||
R2 ajustado | 0,03 | 0,09 | ||||
pa | <0,01 | <0,01 | ||||
ß | P | IC 95% | ß | P | CI 95% | |
Constante | <0,01 | [86,43; 91,56] | <0,01 | [54,92; 75,91] | ||
Estado nutricionalb | -,192 | <0,01 | [-10,60; -2,76] | -0,18 | <0,01 | [-10,10; -2,48] |
C | 0,14 | 0,03 | [0,01; 0,26] | |||
SM | 0,16 | 0,01 | [0,04; 0,33] | |||
| ||||||
Impacto emocional nos pais | ||||||
R2 ajustado | 0,02 | 0,27 | ||||
pa | 0,02 | <0,01 | ||||
ß | P | IC 95% | ß | P | CI 95% | |
Constante | <0,01 | [72,33; 79,53] | 0,22 | [-28,77; 6,58] | ||
Estado nutricionalb | -0,14 | 0,02 | [-12,08; -1,07] | -0,09 | 0,06 | [-9,28; 0,26] |
C | 0,11 | 0,06 | [-0,01; 0,32] | |||
SM | 0,06 | 0,26 | [-0,08; 0,29] | |||
AF | 0,19 | <0,01 | [0,13; 0,56] | |||
TP | 0,31 | <0,01 | [0,26; 0,57] | |||
| ||||||
Coesão familiar | ||||||
R2 ajustado | 0,01 | 0,22 | ||||
pa | 0,03 | <0,01 | ||||
ß | P | CI 95% | ß | P | CI 95% | |
Constante | <0,01 | [71,46; 78,54] | <0,01 | [6,60; 32,97] | ||
Estado nutricionalb | -0,12 | 0,03 | [-11,23; -0,42] | -0,08 | 0,11 | [-8,76; 0,91] |
SG | 0,13 | 0,02 | [0,02; 0,30] | |||
C | 0,15 | 0,02 | [0,04; 0,36] | |||
CG | 0,30 | <0,01 | [0,21; 0,47] |
SG, saúde global; LE, limitações, devido aos aspectos emocionais; LFF, limitações, devido à função física; C, comportamento; CG, comportamento global; SM, saúde Mental; AS, alteração de saúde; TP, impacto no tempo dos pais; AF, atividades familiar.
aANOVA.
bReferência: estado nutricional eutrófico.
No presente estudo, verificou-se que os cuidadores perceberam prejuízo físico e psicossocial na QVRS de crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade identificados nos domínios função física, autoestima, impacto emocional nos pais, coesão familiar e nos sumários físico e psicossocial. No entanto, os modelos de regressão múltipla hierárquica indicaram que o excesso de peso não foi o principal fator determinante para o impacto negativo na maioria dos domínios do CHQ-PF50. A presença de sobrepeso/obesidade foi o fator de maior contribuição apenas para o domínio autoestima.
Estudos prévios também identificaram que a presença de sobrepeso ou obesidade está relacionada com prejuízo multidimensional na QVRS de crianças e adolescentes.7and15
É crescente o preconceito sofrido por crianças e adolescentes obesas. O impacto já começa em tenra idade, resulta em menor quantidade de amigos, menos afeto proveniente dos pais e pior desempenho escolar. Com a experiência do sofrimento por meio do bullying, tanto da forma tradicional quanto o cyber-bullying, o adolescente com obesidade tem pouca motivação para fazer atividades físicas, evita estilos de vida saudáveis e pode apresentar ideação suicida. 16 Além disso, sabe-se que aqueles que permanecem obesos por mais de quatro anos e com baixa autoestima são mais propensos a desenvolver comportamentos de risco, como etilismo e tabagismo, quando comparados com seus pares obesos com autoestima normal.17
A adolescência é uma fase em que a aprovação dos pares é importante para o desenvolvimento da autoestima.17 Por isso, as provocações, críticas e o isolamento social que muitas dessas crianças e adolescentes vivenciam, seja pela família ou pelos amigos, prejudicam o desenvolvimento e consolidação da autoestima, resultam em problemas emocionais como depressão, ansiedade, baixa autoestima e baixa valoração do próprio corpo.15,17and18 Além disso, deve-se considerar, como indica o presente estudo, que outros fatores contribuem para o comprometimento da percepção de bem-estar psicossocial, como a perturbação no ambiente familiar (impacto emocional nos pais) e menor coesão familiar.19
Limitação no tempo dos pais também parece contribuir para pior percepção da QVRS relacionada à função física de crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade.20 No presente estudo, essa variável representou a maior contribuição para a variância do modelo da função física. Apesar de pais de crianças/adolescentes com sobrepeso/obesidade também atribuírem pior qualidade de vida à função física de seus filhos em estudos prévios,21 os resultados do presente estudo permitem inferir que o estado nutricional exerce menor influência nessa observação.
Embora se reconheça que geralmente os pais subestimam o peso de seus filhos e não reconhecem o sobrepeso ou a obesidade como uma doença,22 o presente estudo identificou impacto emocional nos pais. No entanto, estudo recente23 demonstrou uma maior conscientização dos pais sobre o peso real de seus filhos ao concluir que mães com sobrepeso apresentam maior preocupação com o peso futuro de seus filhos, mesmo quando esses são eutróficos. Além disso, pais com sobrepeso ou com a percepção de que o peso de seu filho é um problema de saúde apresentam maior prontidão em adotar mudanças para ajudar os filhos.24 Para esses pais, o estado nutricional dos filhos pode trazer preocupações com a saúde, o comportamento, o bem-estar e o desempenho escolar dos filhos.20 Além do impacto emocional observado em pais de crianças/adolescentes com sobrepeso/obesidade, a necessidade de envolvimento no tratamento dos filhos requer uma mudança em seus hábitos de vida. Esse envolvimento muitas vezes é difícil, já que muitos pais relatam falta de tempo para supervisionar a alimentação e feitura de atividades físicas de seus filhos.25 O comportamento dos pais é de grande importância para o tratamento dessas crianças e adolescentes, já que na primeira infância os pais atuam como modelos e provedores para os filhos.26 Por isso, pais muitas vezes são alvo de intervenções preventivas de saúde pública que visam a melhorar a dieta das crianças,26 já que, atualmente, a prevenção é considerada a medida mais eficiente para o controle da obesidade infantil.27 Programas de prevenção e tratamento da obesidade infantil que se baseiam no comportamento da família estão entre os mais eficazes e, por isso, têm colocado o envolvimento dos pais como a chave para o sucesso das políticas de saúde voltadas para crianças e adolescentes.28
Estudos prévios demonstram pior qualidade de vida entre crianças e adolescentes obesos do sexo feminino, sob a perspectiva dos pais.5 No entanto, tal diferença não foi evidenciada no presente estudo. O fato de a população do estudo estar no início da puberdade pode justificar esse achado. Nessa faixa etária, o adolescente ainda não vivencia de forma muito intensa as alterações próprias dessa fase, que geralmente, ocorrem a partir dos 12 anos (menarca e alterações hormonais),29 idade a partir da qual começam a ficar evidentes diferenças entre os gêneros.6
O presente estudo apresenta importantes contribuições ao valorizar a perspectiva dos pais sobre a QVRS dos filhos e ao avaliar a magnitude das diferenças encontradas na percepção da QVRS de crianças e adolescentes de acordo com o estado nutricional. Outra importante contribuição refere-se à construção de modelos abrangentes na tentativa de avaliar o comportamento de um número maior de variáveis estudadas na variação dos escores de QVRS das crianças e adolescentes do estudo.
No entanto, algumas limitações devem ser mencionadas. Trata-se de um estudo transversal que não possibilita a avaliação da relação de causa e efeito entre as variáveis estudadas. A redução do tamanho amostral do estudo devido à perda de dados pode ter mascarado possíveis diferenças nos escores de qualidade de vida dos grupos analisados. No entanto, perdas relativas a dificuldades inerentes ao CHQ-PF50 são comumente observadas em trabalhos que usam esse instrumento.5 Apesar de os resultados do presente estudo restringirem-se à faixa etária de nove a 12 anos, sabe-se que a adolescência é um período muito importante no desenvolvimento psicossocial dos jovens. O início da puberdade pode ser considerado o momento em que se tem uma maior consciência do tamanho do próprio corpo,18 além de ser descrito como um período de maior vulnerabilidade para o desenvolvimento da obesidade.30
A partir da percepção dos pais ou cuidadores, pode-se concluir que há impacto negativo na QVRS de crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade em aspectos físicos e psicossociais. O impacto no tempo dos pais foi a variável de maior contribuição para a percepção da função física dos seus filhos. O excesso de peso foi a variável de maior impacto negativo para a avaliação da autoestima das crianças e adolescentes do presente estudo. Conhecer a percepção dos pais sobre o impacto da obesidade na qualidade de vida de seus filhos e as variáveis envolvidas nessa percepção torna-se fundamental para o envolvimento desses cuidadores na prevenção e tratamento da obesidade.